Toda a revolução

Revolution

Outubro é uma edição da Angelus Novus que resulta de uma série de posts – publicados originalmente neste blogue, mas entretanto revistos – sobre o impacto mundial da Revolução de 1917 e do seu mito. O livro estará à venda muito em breve. Adianta-se aqui, em pré-publicação, uma parte substancial do último capítulo.

A revolução, toda a revolução, é enunciada como ruptura mas propõe um regresso. A mudança que encena aponta desde a fundação para um restabelecimento, para um retorno, a uma ordem essencialmente antiga, primordial e benigna, que se crê ter sido corrompida algures e em algum momento. Mudar, mudar profundamente, mas para reverter. A «revolução» humana que permitiria aceder à cidade ideal, tal como a concebeu Platão, requeria um esforço de recuperação de uma ordenação primordial perdida: era uma métabolê, uma alteração radical, mas também um ponto de viragem que antecedia uma regressão. Nesta direcção, François Châtelet entende que «por paradoxal que pareça a afirmação, Santo Agostinho, Bossuet, Rousseau ou Engels são platónicos», uma vez que neles a superação radical da ordem do mundo visa sempre – entre a descoberta da Cidade de Deus e o triunfo final do comunismo – a recuperação de um passado perdido, a restituição de uma ordem utópica e edénica aniquilada por um declínio que remonta a tempos ancestrais, pontuadas ambas pela intervenção do pecado, pela ruptura do estado de natureza ou pela divisão social do trabalho.

Mas a «verdadeira revolução», aquela que sobrevive ao efémero, ao fluir simples dos acontecimentos, não envolve apenas a destruição de uma ordem política injusta e caduca. Ela implica também a desconstrução da organização social imperante e dos princípios que a governaram. Mesmo quando existe uma agenda política que admite medidas graduais, esta toma sempre por horizonte a mudança decisiva, não aparecendo como um desvio, uma cedência diante dos princípios, mas antes como um diferimento, um instante de preparação para a batalha definitiva apontada ao que importa, que é a demolição definitiva da ordem pré-revolucionária.

Marx e Lenine anunciaram a necessidade objectiva desta operação de devastação do real ao excluírem a capacidade regeneradora de qualquer «revolução parcial»: era necessário tudo mudar, inclusive de etapa histórica, ainda que em alguns dos momentos do aguardado «assalto aos céus» pudesse lançar-se o ataque apenas sobre um dos flancos do inimigo. Toda a atitude reformista se tornava inútil e abominável, salvo quando servisse como instrumento da mudança integral. Daí o desdém de Lenine pelo gradualismo reformador do marxista veterano Karl Kautsky ou do menchevique Julius Martov. Porém, aquilo que acontecerá após o instante crucial da viragem revolucionária, permanece sempre como algo de impreciso: por mais inevitável que se revele, toda a revolução é pobre, lacunar, uma vez que funciona mais como instrumento de demolição, operando sobre a realidade objectiva, do que como via para um horizonte tangível a alcançar. De Platão a Mao, passando por Rousseau, Robespierre, Marx ou Trotsky, a teoria da revolução aponta para um futuro mais afortunado e harmónico, mas jamais lhe define os contornos. Apenas declara que este chegará algum dia, como resultado de um processo que deposita nas mãos dos seus executantes as decisões sobre o caminho a percorrer. Num tempo longínquo e incorpóreo, apenas uma ideia de felicidade por cumprir.

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    Atualidade, História, Olhares

    Veias abertas

    Eduardo Galeano

    Quem possa ter interesse em conhecer a argumentação que Hugo Chávez acaba de oferecer a Barack Obama sob a forma de livro, pode encontrar aqui, em formato pdf, uma versão em português de As Veias Abertas da América Latina, do jornalista e escritor Eduardo Galeano. Originalmente publicado em 1971 e nesta versão com um posfácio de 1978. Naturalmente, a escrita de denúncia sob a forma de ensaio histórico pode sempre ser manipulada por cérebros messiânicos que nela buscam a sua própria legitimidade.

      Atualidade, Democracia, História

      Corín e o amor

      Corin Tellado

      Vale a pena confirmar no El País de hoje aquilo que já se sabia: a Dona Maria del Socorro Tellado (1926-2009), poeta de tantas mulheres solitárias e de uns quantos homens não menos abandonados, mulher «muy lanzada, que montaba en bicicleta cuando estaba mal visto y que fumaba cigarrillos a escondidas», era uma grande fingidora.

      Me emocionan las cosas reales, las que palpo, las que tienen vida. No me seducen las puestas de sol, ni las estrellas, ni la luna llena. Yo nunca he dicho ‘te amo’, ‘te quiero’, ‘vida mía’. Sólo lo sugiero en las novelas para que se emocionen otros. A mí me conmueven los animales, los prados, las personas, la roca viva, los acantilados.

        Memória, Recortes

        Querem matar Monsieur Hulot

        Mon Oncle

        O cachimbo sinalizou repetidamente a imagem projectada por políticos (Estaline, Roosevelt, H. Wilson), escritores (Baudelaire, Joyce, Chandler), actores (B. Crosby, S. Tracy, J. Lemon), filósofos (B. Russell, Sartre), pintores (Van Gogh, Manet), músicos (Coltrane, Mingus), cientistas (Einstein, Oppenheimer) ou personagens de banda desenhada (Haddock, Mortimer). Sem o acessório tabaqueiro, nenhum deles teria sido quem os seus contemporâneos pensaram que foi. Jamais teriam sido quem a história nos conta que foram. Ninguém explorou porém as capacidades da pequena peça fumegante como o actor e realizador Jacques Tati. Em O Meu Tio, As Férias do Sr. Hulot e Há Festa na Aldeia, mais brevemente em Playtime, o cachimbo transformou-se num interlocutor capaz de alvejar o objecto, a situação, o personagem, que de seguida a câmara persegue sem piedade. A sua função não é sorver nicotina, mas antes interrogar, desaprovar, sublinhar. Serve sempre de ponteiro, de microfone, de auxiliar da invectiva, omnipresente e insubstituível no universo tatiano. Mas esse lugar incontornável não bastou para impedir que no poster que divulga em Paris uma retrospectiva da obra de Tati se tenha feito desaparecer do olhar dos cidadãos o «vicioso» cachimbo. Insatisfeitos com a instalação perversa da sua tirania sobre os espaços públicos, os maníacos higienistas querem também apoderar-se do nosso passado.

          Cinema, Democracia, Memória

          Made in Denmark

          Sesta

          O governo da Dinamarca prepara-se para transformar a sesta num direito dos trabalhadores das áreas da Saúde e da Assistência Social. Este será mesmo remunerado, embora não possa ultrapassar os vinte minutos diários. A medida foi já adoptada, a título experimental, em 1800 empresas privadas de outros sectores. O direito a um dia de baixa por morte de animais domésticos ficará também consagrado na lei geral do trabalho. Tanto por fazer e nós aqui a perder tempo com o não-sei-quantos rangel e o professor assertoado.

          Mais ou menos 24 horas depois – Recebo um mail da Joana Lopes, que, neste momento no Camboja, se choca com estas preocupações quase banais. Transcrevo uma frase sem lhe pedir autorização: «Será possivel, viável, um mundo em que se possa dormir a sesta sem que outros (aqui) trabalhem 364 dias por ano, nem se sabe quantas horas por dia? E em que os primeiros ainda se queixam se as empresas são deslocalizadas para dar de comer aos segundos?»

            Devaneios, Etc.

            Coimbra’69

            Coimbra'69

            17 de Abril. A maioria dos cidadãos que conservam reminiscências da Coimbra dos idos de sessenta – do meio pequeno, professoral, santacombadense, mas também universal, quimérico e inquieto – conhece aquilo que a data significa. As prestimosas autoridades locais, essas dormem na ignorância de uma parte da memória viva da cidade que vão gerindo. Por vezes na cumplicidade ao retardador com o lado mau do filme. Dia da audácia de uns quantos, das oportunidades conquistadas, do mito que enuncia parte da verdade e inventa e reinventa a outra. Primeiro dia do resto da vida da cidade salazarenta que um dia há-de morrer.

            Seguir o testemunho ocular do Marcelo Correia Ribeiro, a visão de retrovisor do Miguel Cardina e o olhar de viés do Luís Januário.

              Apontamentos, Cidades, Coimbra, História, Memória

              A haka dos impostos

              Haka

              A decisão da Direcção-Geral dos Impostos no sentido de chamar o actual treinador da selecção nacional de râguebi, Tomaz Morais, para numa intervenção sobre liderança motivar os seus funcionários, é uma mina para qualquer blogger com falta de assunto. E funciona para o cidadão contribuinte como um preocupante gesto de intimidação. Vou já regularizar os meus impostos antes que me apareça pela frente um funcionário hipermotivado, com espírito de liderança e espadaúdo.

                Devaneios, Etc.

                Contem-nos coisas de Cuba

                Cuba Libre

                É bem triste «La Revolución» não aguentar palavras que apenas irradiam uma perspectiva do mundo diferente da arremessada pelos artigos hiper-saudosistas, caluniosos ou ameaçadores do Granma e do Juventud Rebelde. O cerco americano a Cuba, que Obama começa agora gradualmente a levantar, sempre me pareceu uma medida injusta e desnecessária, resultado de uma política externa míope e influenciada pelos «gusanos» um tanto ressabiados de Miami, mas o cerco interno, praticado na ilha, à liberdade de opinião de quem é visivelmente desalinhado do discurso oficial, não é menos injusto e injustificado. Para além de um tanto paranóico. Que a havanesa Yoani Sánchez tenha de publicar o seu primeiro livro de crónicas em Itália é um sinal desse desajustamento.

                Es abril y no hay mucho que hacer, solo mirar desde el balcón y confirmar que todo sigue como en marzo o en febrero. La Plaza de la Revolución -un pirulí truncado que asustaría a cualquier niño- domina los bloques de concreto de mi barrio. Frente a mí, dieciocho pisos de hormigón llevan el cartel de Ministerio de la Agricultura. Su tamaño es inversamente proporcional a la productividad de la tierra, así que me dedico a mirar con mi catalejo las oficinas vacías y sus ventanas rotas. Vivir en esta zona “ministerial” me permite interrogar los altos edificios desde los que salen las directivas y resoluciones para todo el país. Manías de orientar el lente y pensar “ellos me observan, pues yo también los observo a ellos”. De esas inspecciones con mi telescopio azul he sacado bien poco, la verdad, pero una impresión de inercia traspasa el cristal y se cuela a través del hormigón de mi edificio modelo yugoslavo.

                  Apontamentos, Atualidade, Opinião, Recortes

                  Spartakus em Berlim

                  spartakus

                  Publicado no Manuel de Leitura de Tambores na Noite, de Bertolt Brecht. Encenação de Nuno Carinhas. No Teatro Nacional São João do Porto até 26 de Abril.

                  Brecht escreveu Tambores na Noite muito cedo. Em 1919, B.B. acabava de dobrar os vinte anos e não passava ainda de um rapaz bávaro com uma actividade não muito bem definida. Interessava-se pelas artes de palco, isso era certo, e havia já começado a redigir Baal – peça com uma forte componente autobiográfica sobre o velho tema do artista enquanto marginal, em boa parte inspirada pela frequência regular das aulas de Arthur Kutscher -, mas a guerra tinha-o apanhado sem projectos imediatos e no Outono do ano anterior fora mesmo incorporado no exército. A experiência militar seria breve – por ser estudante de medicina trabalhou algumas semanas como enfermeiro num hospital militar de Augsburgo, sendo desmobilizado com o fim do conflito – mas nem por isso deixou ela de perturbar o retorno à condição civil e a maneira de Brecht observar o mundo à volta. Em Munique, onde vivia, como em Berlim e nas outras grandes cidades alemãs, para a maioria das pessoas o ambiente era agora pesado, muito marcado pela realidade da derrota, pelo regresso em massa dos soldados, por conflitos sociais cada vez mais acentuados e também por uma activa luta pelo poder. «Os tempos que correm são inseguros. (…) a desmobilização está a fazer jorrar desordem, cobiça e desumanização animalesca para dentro dos oásis dos que trabalham em paz», proclama Frau Balicke logo no primeiro acto.

                  Tambores na Noite, obra de juventude ainda sem as marcas do teatro épico que o autor desenvolverá na maturidade, foi primitivamente redigida nesse período de adaptação a uma paz podre, aparecendo muito marcada pela sublevação espartaquista ao dramatizar o ambiente que conduzira à revolta, as suas diversas ocorrências, a repressão e depois o refluxo do movimento. A personagem de Friedrich Murk, o anti-herói que não combatera, fizera fortuna com os lucros de guerra e ainda por cima se preparava para roubar a noiva do proletário que fora mobilizado, expõe de certa maneira o sentimento de traição e de frustração que os trabalhadores fardados, constrangidos durante anos a combaterem, sentiam naquele tempo de regresso a casa na condição de vencidos. A peça anuncia também a definição vitoriosa de uma nova ordem contra-revolucionária, manifesta quando Andreas Kragler, o soldado que fora dado como morto e tornara à pátria para a ver acabrunhada, e a casa para ver quase destruído o seu futuro, decide no final optar pelo confortável refúgio da vida privada.

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                    Artes, História, Olhares

                    Aracnologia

                    Aracnologia

                    Tenho andado a divertir-me um pouco com as possibilidades técnicas que a autonomização do servidor de A Terceira Noite trouxe consigo. Algumas delas são visíveis ao leitor habitual do blogue, outras porém servem apenas a quem o gere.

                    Uma das informações curiosas, agora tornada possível, refere-se aos spiders que aqui entram. Para quem não esteja familiarizado com o termo, os spiders são uma espécie de robôs que se movem na web. Eles procuram os links que detectam no código-fonte e é depois a partir destes que entram no site para vasculharem o seu conteúdo. Saltam então de link em link, relacionando a informação da página de acordo com o algoritmo a que obedecem, enviando a informação ao seu senhor, que lá bem longe a pode utilizar das mais variadas maneiras. Pois bem, os spiders mais activos por aqui são os do todo-poderoso Google e os do novíssimo Cuil, respectivamente com 56,6% e 8% dos acessos. Mas encontram-se muito bem colocados, num honorável 3º lugar, os do chinês Baidu, com cerca de 7% e quase 500 espreitadelas em menos de uma semana.

                    Levado cá por umas suspeitas – e intrigado principalmente pelo facto de A Terceira Noite não ser escrita em mandarim –, resolvi cruzar este tipo de informação com um outro: aquele que permite saber quais são as palavras mais pesquisadas dentro do próprio blogue. Aquelas que o leitor digita na caixinha que encontra no topo da barra da direita antes de carregar no botão procurar. Pois sabem os leitores qual a palavra mais pesquisada neste momento? Nada mais nada menos que Tibete (ou Tibet). Julgo não ser preciso mais nada para ter todo o direito a poder ficar com algumas suspeitas. Mesmo sem ser propriamente um entusiasta das teorias da conspiração ou ter a mania das grandezas.

                      Atualidade, Cibercultura, Democracia

                      O dress code e a política do corpo

                      In the sixties

                      Quando falo em algumas aulas das grandes alterações dos anos 60, recorro muitas vezes ao exemplo do vestuário diverso que todos usam na sala, à atitude física que mantemos dentro e fora daquele espaço, ao modo informal como falamos uns com os outros, olhando-nos nos olhos e defendendo os nossos pontos de vista sem receio de estarmos a ofender alguém, para mostrar de que maneira existiu um tempo – para a maioria dos alunos o dos seus pais, ou mesmo o dos seus avós; para muitos destes, porém, algo que jamais conheceram – no qual o mundo como eles o observam, este mundo, se formou, rompendo abertamente, assumidamente, com um tempo-outro que o precedeu e que para muitos é hoje inimaginável. No centro da mudança uma nova política do corpo, que terá sido talvez o eixo em volta do qual as transformações políticas, culturais e vivenciais que marcaram aqueles anos – e que todos herdámos, mesmo aqueles de nós que hoje as procuramos desvalorizar – se organizaram. Por vezes sob a forma de combates duros e prolongados, que requeriam coragem e tenacidade.

                      Nascido nos fifties, num país fechado e manietado, vivendo até aos dezassete ou dezoito anos num ambiente pequeno, isolado e bastante preconceituoso – embora nas cidades as coisas não fossem então, é preciso reconhecê-lo, substancialmente diferentes -, travei um combate complicado por coisas que hoje certamente parecem ridículas, e das quais agora até prescindo, como usar o cabelo comprido e despenteado, vestir umas calças de bombazina grená se me apetecesse vestir umas calças de bombazina grená, ou passear à noite com uma amiga sem ter de casar com ela. Coisas que nunca me impediram, que eu saiba, de tratar mais ou menos bem as pessoas com quem fui convivendo, de cuidar da higiene pessoal, e de ir cumprindo o melhor que sei e sou capaz o meu trabalho, mas que me permitiram, com toda a certeza, estar no mundo, e projectar-me nele, de uma feição mais livre, individualizada, de alguma forma cosmopolita, que os meus pais, e os pais deles, jamais sonharam viver. Foi essa área da luta pela liberdade que me fez então – pude na altura dar-me a esse luxo, admito, e o facto de ser homem ajudou um pouco – recusar uma profissão que me constrangeria a um «código de apresentação». Muitos daqueles que o não puderam fazer iriam bater-se – na escola, no trabalho, na rua, por vezes dentro das suas próprias casas – por uma liberdade que passava também pelo reconhecimento da sua forma própria, não necessariamente padronizada, de estar no mundo. Uma luta hoje silenciada, mas não silenciosa, bastando para a reconhecer um apelo à memória de quem a viveu e uma consulta da imprensa da época (incluindo nesta, um aspecto muito importante, a regional).

                      Estou certo de que me acompanham nesta evocação muitas pessoas que viveram ou que conheceram, ainda que apenas dos livros, experiências idênticas. As mesmas pessoas que viram com um pequeno arrepio este episódio – patético, é verdade, mas sintomático e talibanesco – em redor do dress code aplicado às funcionárias da tal Loja farense do Cidadão. Episódio que indicia um retorno a uma ordem política das aparências agressora da liberdade pessoal. Ou então um salto rumo a uma sua versão mais aperfeiçoada. Não fala de cor Zygmunt Bauman quando afirma, em Modernidade Líquida, que «a demarcação entre o corpo e o mundo exterior está entre as fronteiras contemporâneas mais vigilantemente policiadas».

                      P.S. – Claro que não vivemos num regime totalitário, onde estas coisas acontecem de forma sistemática e sem apelo. Vivemos sob a ditadura informal do realismo político, na qual tudo é normal e aceitável se em prol da boa gestão. Inclusive a agressão a direitos e a liberdades conquistados a pulso pelos cidadãos.

                        Atualidade, Democracia, História, Memória

                        Extravagância

                        Mais um recorte neste domingo de Páscoa, para mim de trabalho. «Antigamente, a Igreja julgava saber o que era necessário à nossa alma, com os resultados que se conhecem. O Estado e a medicina julgam hoje saber o que é necessário ao nosso conforto e felicidade física, com resultados cada vez mais intoleráveis.» As palavras são de Vasco Pulido Valente. Em dia-sim na crónica dominical do Público.

                          Apontamentos, Recortes

                          A Praga de Sudek

                          Sudek

                          A propósito de uma exposição sobre a obra do fotógrafo checo Josef Sudek (1896-1976), aberta ao público até 17 de Maio no Círculo de Bellas Artes de Madrid, Antonio Muñoz Molina deixou no Babelia de ontem uma prosa bela e comovente, «El caminante de Praga», que – como acontecera já com a evocação de John Banville no seu livro precioso sobre a cidade das duas margens do Vltava – faz justiça ao trabalho único de um homem que viu o seu destino como artista determinado, aos vinte anos, pela amputação do braço direito. Josef, que estivera destinado a encadernador, passaria então a percorrer Praga em todas as direcções, dia após dia, muitas vezes pela noite fora, carregando pelo resto da vida, apenas com um braço, a pesada máquina Kodak de 1894 e o seu enorme tripé. Fotografando, sempre num tempo lento, praticamente imóvel, quase inabitado, os espaços e as coisas que não poderiam ser mostrados abertamente, «mas apenas dando pistas, revelando apenas o justo, para que o olhar completo pudesse permanecer na imaginação do espectador». Existe uma Praga, desolada como um eremitério, infinitamente poética, que habita apenas a fotografia do tímido e solitário Sudek.

                            Cidades, Memória, Olhares

                            De fato

                            De fato

                            Na Loja do Cidadão, proclamada «de segunda geração», inaugurada em Faro no passado dia 3 com a presença do primeiro-ministro, as funcionárias estão proibidas de usarem em serviço blusas com decote, saias curtíssimas, vestuário de ganga, perfumes com uma fragrância agressiva, roupa interior preta, saltos altos e, claro, sapatilhas. Calculo que aos funcionários sejam prescritas também algumas normas, relacionadas com o tom da gravata, a sobriedade das peúgas, o risco ao lado no penteado e o uso obrigatório de pochette. E se o não são, deveriam sê-lo. Por motivos de «postura pessoal», seguindo o raciocínio avícola de uma tal D. Maria Pulquéria. O provincianismo corresponde sempre, por definição, a uma forma excessivamente mesquinha e tristonha de estar no mundo. Piora bastante quando se encontra associado a um bocadinho pequenino e bem guardadinho de autoridadezinha.

                            Adenda – Uma coisa vale a pena dizer ao ouvido de quem considere este episódio irrelevante ao ponto de não se justificar sequer que seja notícia: são gestos destes que nos lembram o que foi o «salazarismo real» e o que ele fez – e continua a fazer – às cabeças das pessoas. Muito mais grave e profundo do que os lances fugazes do caso Freeport.

                            A leitura de alguns blogues que abordaram o assunto trouxe também mais duas nuances. Uma refere-se ao sexismo boçal das considerações supostamente engraçadas sobre «os direitos dos utentes». A outra é o fétiche dos parvenus a respeito daquilo que insistem em chamar de «dress code». Que nada tem a ver com normas básicas de asseio e civismo, obviamente admissíveis e até desejáveis.

                            (Dizem-me que entretanto o pormenor da roupa interior preta foi desmentido. Muito bem, mas essa era a parte cómica. O resto fica tudo na mesma. Isto é, mal.)

                              Apontamentos, Cidades, Olhares

                              Falsos berberes

                              Piratas

                              Conhecia já, de leituras antigas, a relativa autonomia política, face aos regimes islâmicos, daqueles a quem a tradição histórica europeia chama desde há séculos de piratas berberes. Sensivelmente desde os finais do século XVI até por volta de 1830, a sua presença temível e destruidora fez-se sentir muito para além das costas do Norte de África, de onde partiam e onde se abrigavam. Portugal e os portugueses sentiram com regularidade os ataques e razias que sistematicamente praticavam, existindo notícias de incursões suas até na Irlanda, na Islândia e mesmo na Groenlândia. Tanto nas suas actividades marítimas quanto nas maneiras de viver quando em terra, estes piratas conservavam uma independência que se mostrou particularmente notável e duradoura na chamada república de Salé, situada já na região costeira atlântica, frente a Rabat. Em larga medida povoada por repatriados muçulmanos de Espanha, o que me surpreende é que, durante séculos, foi local eleito de refúgio para inúmeros europeus rebeldes convertidos ao Islão, os quais, de acordo com Peter Lamborn Wilson em Utopias Piratas, forneceram em larga medida o saber técnico e a iniciativa que permitiram aos «berberes» ir tão longe e com tanto êxito nas suas acções de pilhagem e devastação. A ser provada, eis uma revelação surpreendente: o tão temido «berbere» era afinal, numerosas vezes, muito mais vezes do que o suposto, um europeu converso ou em dissídio, que conhecia bem as águas que cruzava e os territórios aos quais se dirigia.

                                História, Memória, Olhares

                                Ó Pátria amada!

                                Patriotismo

                                Como resultado da uma incompreensível falta de concertação com o absolutamente vital candidato Moreira, o primeiro-ministro afirmou hoje que apoiará a recandidatura de Durão Barroso para presidente da Comissão Europeia mesmo que o Partido Socialista Europeu vença as próximas eleições. O patriotismo, declara en passant e cem citar autoria a página da Academia Militar, é isso mesmo, «o amor à pátria, reconhecer que somos mais solidários a uma parcela da humanidade, os nossos compatriotas». Este padrão de «socialismo democrático» com sete palmos de terra acima da cabeça, que se passeia, «realista» até ao tutano, pelas passadeiras lusas do poder continental, exprime a consagração desse nobre princípio.

                                  Atualidade, Olhares

                                  Um sentido para a esquerda

                                  Nuages

                                  Publicado originalmente na revista LER de Março

                                  Celso Cruzeiro é reconhecido principalmente pela sua actividade como advogado e por ter sido um dos rostos principais da «crise estudantil» coimbrã de 1969. Conhece-se-lhe o activismo constante em alguns dos combates da esquerda geralmente não-alinhada, bem como o interesse por uma leitura interpretativa dos episódios de militância pelos quais passou, mas era-lhe até agora ignorado o gosto persistente e actualizado por uma reflexão teórica aprofundada sobre as circunstâncias, as coisas e as causas da esquerda. Este A Nova Esquerda retoma no título a designação utilizada para definir politicamente alguns dos movimentos radicais das décadas de 1960-1970, mas nem por isso se ocupa em excesso com uma busca retrospectiva das referências que naquele tempo moldaram o percurso do autor. Ao invés, a actualização das leituras e dos debates aos quais este se reporta conferem ao livro uma dimensão exemplar, rara entre nós, de adequação do reconhecimento da mudança do mundo ao pulsar mais contemporâneo do pensamento crítico e da intervenção política.

                                  Esta é, no entanto, uma daquelas obras das quais é habitual dizer-se que valem pelo todo. Não é possível lê-la de forma fragmentada, pois resultaria quase indecifrável um discurso erudito que não se compraz com sublinhados ocasionais. Trata-se de facto de um texto denso, consistente, resultante de um trabalho aturado de cerca de treze anos, através do qual Celso Cruzeiro conduz o leitor por quatro inquietações com correspondência noutros tantos capítulos. A primeira delas diz respeito à busca de um sentido, no domínio da epistemologia das ciências e da reflexão filosófica, para um mundo que hoje, mais que nunca, se revela instável e desconforme os grandes sistemas explicativos da modernidade colapsados a partir do segundo pós-guerra. A segunda ensaia um trabalho de compreensão da realidade actual do capitalismo, da renovação das suas vias e métodos, das consequências da ordem injusta que materializa para a vida das pessoas comuns. A terceira inquietação prende-se com a busca de indícios que permitam entrever a construção de uma teoria revolucionária capaz de fazer frente às novas realidades, à desesperança e às carências impostas pelo actual processo de mudança histórica. E, por fim, o quarto problema conduz o autor ao vasculhar das consequências mais nefastas da presente ordem económica mundial e do aparecimento de algumas das vozes e das tendências capazes de lhe fazerem frente no terreno.

                                  Quando, a dado momento, recorre à voz do economista e filósofo neoliberal Friedrich von Hayek onde este declara não existir actualmente «critério algum através do qual nós possamos descobrir o que é socialmente injusto», Cruzeiro aponta justamente para o inverso: para a necessidade de perceber as causas da injustiça de modo a que se torne possível combatê-la e aniquilá-la. Uma obra marcada, por isso, mais pela esperança que pelo desencanto.

                                  Celso Cruzeiro (2008). A Nova Esquerda. Raízes teóricas e horizonte político. Porto: Campo das Letras – Âncora Editora. 250 págs.

                                    Música, Opinião