Posso tornar-me suspeito de estar a fazer publicidade à editora que tem publicado alguns dos meus livros. E provavelmente estarei – embora não inteiramente, pois não a nomeio no texto do post nem colo aqui o link –, mas este cartaz justifica o regime de excepção.
Os sapatos e a queda
Uma das causas do descontentamento popular que fez ruir as experiências europeias do «socialismo real» teve provavelmente a ver com os ditames da indústria nacionalizada do calçado e com os escassos modelos impostos aos cidadãos. Afinal quem não desejaria alterar o estado das coisas?
Na imagem, uns sapatos Tisza Cipő fabricados em Martfű, na Hungria. Uma marca extremamente popular até aos anos oitenta, pois era a única disponível no mercado.
Na primeira pessoa
A história do 25 de Abril far-se-á sempre recorrendo aos depoimentos daqueles que participaram na sua preparação e que tiveram depois um papel interveniente nas sucessivas peripécias do «biénio revolucionário». Como todo o acontecimento da história recente, que conclama uma memória quente e os sentimentos ainda muito fortes de quem nela participou, os testemunhos dos seus artífices são sempre únicos e frequentes vezes polémicos. É o que acontece também com a longa entrevista de Maria Manuela Cruzeiro – efectuada entre 1992 e 1995 mas só agora publicada – ao coronel Vasco Lourenço, uma das mais relevantes e decisivas figuras do Movimento das Forças Armadas e do «Grupo dos Nove».
Aquilo que este conta é irrepetível, proposto a partir de uma perspectiva intensamente pessoal, inevitavelmente vinculada ao papel central e decisório que desempenhou em numerosos momentos que antecederam e seguiram a «revolução dos cravos». Mas é também polémico, pois contraria frequentes vezes, com grande frontalidade e uma aparente jactância, tanto o testemunho de outros actores do movimento, quase sempre bem identificados, quanto determinadas «versões oficiais» cuja veracidade por vezes contesta ou procura corrigir. Os historiadores do período deverão cruzar as diferentes leituras com as suas circunstâncias, mas esta entrevista de Vasco Lourenço será, sem dúvida, uma das referências a colocar na linha da frente do seu trabalho. [Vasco Lourenço – Do interior da Revolução. Entrevista de Maria Manuela Cruzeiro. Âncora Editora, 576 págs.]
Acto de contrição
De acordo com as palavras do engenheiro Sócrates em variante soft da entrevista de hoje à RTP, «talvez não tivesse havido da nossa parte a suficiente delicadeza na nossa relação com os professores». Demonstrar arrependimento, convenhamos, é sempre uma atitude meritória. Principalmente em campanha. E fazer o pino também. Ficamos à espera.
P.S. – Já depois deste post escrito, a ministra da Educação não fez o pino, mas rastejou, admitindo agora, já com o Juízo Final em andamento, «que existiram problemas de comunicação entre Governo e professores nos últimos quatro anos». É por estas e por outras idênticas que tantas pessoas honestas cospem para o chão e se benzem quando tal espécie de gente lhes passa por perto.
República em linha
Foi no República, no distante ano de setenta e um (seguindo o calendário gregoriano, naturalmente), que pela primeira vez publiquei alguma coisa fora do circuito escolar juvenil ou do alcance de tiro da imprensa regional. Gostei pois de saber que a Hemeroteca Municipal de Lisboa começou a disponibilizar em linha a colecção de exemplares que possui do histórico diário republicano. Já acessível o ano de 1956.
Há precisamente setenta anos
Soldados alemães guardam um grupo de judeus em Sanok, Polónia (Setembro de 1939)
«Quem foi a primeira vítima de uma guerra que viria a fazer mais de quarenta milhões delas? Um prisioneiro desconhecido de um dos campos de concetração de Adolf Hitler, com toda a probabilidade um criminoso de direito comum. Numa tentativa para apresentar a Alemanha como vítima inocente de uma agressão polaca, vestiram-lhe um uniforme polaco, levaram-no para a cidade fronteiriça alemã de Gleiwitz, e a Gestapo abateu-o na noite de 31 de Agosto de 1939, na estranha encenação de um «assalto polaco» à estação de rádio local. Na manhã seguinte, quando as tropas alemãs começaram a entrar na Polónia, Hitler apresentou, como um dos motivos que justificavam a invasão, “o ataque ao retransmissor de Gleiwitz por tropas regulares polacas”.»
(in Martin Gilbert, A Segunda Guerra Mundial, editado pela Dom Quixote)
O resto da história é conhecida. Ou melhor, vai sendo conhecida.
Pf não esquecer
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=dey3HRTJKEM[/youtube] |
Jean Ferrat – Nuit et Brouillard |
O fatela de Tripoli
Grande festa em Tripoli neste 1º de Setembro para comemorar 40 anos de Muammar Abu Minyar al-Khaddafi à frente da Jamahiriya Líbia. O destacado predador da liberdade de imprensa, déspota responsável por atentados sistemáticos contra os direitos humanos, ex-terrorista e antigo paladino do extinto «socialismo árabe», mas com dinheiro suficiente para comprar cumplicidades por todo o planeta, não consegue, no entanto, fugir à suprema ignomínia: o ter sido designado pela revista Time como um dos líderes mundiais mais mal vestidos da actualidade (embora, reconheça-se, a seguir a Kim Jong-Il e a Vladimir Putin).
O erro
Existe um erro básico na apreciação que o PS e alguns dos seus apoiantes fazem do actual papel do Bloco de Esquerda. Consiste ele em meterem no mesmo saco o Bloco e o PCP, quando, de facto, apesar das franjas radicais e proto-marxistas que ainda resistem no BE, este tem vindo a afirmar-se cada vez mais como uma força-charneira. Enquanto partido política, cultural e sociologicamente localizado entre um «socialismo» de direita, assumidamente defensor de uma lógica gestionária, clientelar e desenvolvimentista de tipo neoliberal, e um «comunismo» de museu, activo mas sitiado, cada vez mais radicalizado e quase incapaz de dialogar com quem não siga a sua verdade histórica e fale a sua língua de madeira.
Mais tarde ou mais cedo, PS e Bloco estarão condenados a entender-se como solução governativa de um tipo novo. Não quero com isto dizer que seja essa a solução na qual me revejo (aliás, aquela que Daniel Oliveira volta a defender na crónica publicada este sábado no Expresso). Continuo a pensar que é útil e até necessária a existência de uma força radical representativa, capaz de assumir com algum impacto uma presença de reivindicação e denúncia sem a qual a democracia pode derivar para uma lógica de gabinete ou para o autoritarismo. E que essa força já não pode ser o BE. Mas sei que a governação não se faz apenas da proclamação de princípios abstractos com os quais eu possa eventualmente simpatizar: faz-se de conciliações e de iniciativa. De algum realismo também. E será por aí que passará a aproximação da qual falo. Daí que os violentos ataques ao Bloco lançados pelos socialistas (e por alguns dos «independentes» que os apoiam) só possam voltar-se contra os próprios. Como? Simples (ou «simplex»): concorrendo para fornecer a muitos cidadãos a percepção de que tal solução de alternativa e diferença apenas poderá ser projectada se ocorrer uma votação bastante significativa no Bloco. Não sei se, para o poderem compreender, têm passado o suficiente pelo outro lado da realidade.
O caroço da JS
Um dos aspectos que mais impressiona na indicação da moça Carolina como «mandatária para a juventude» da campanha do PS é o sereno assentimento da Juventude Socialista perante escolha de tal densidade. Ou a invisibilidade pública de uma posição crítica que de algum responsável da JS tenha emanado. Esta organização, que em tempos terá funcionado, pelo menos formalmente, como «consciência crítica» do partido em relação aos seus adultos patronos, tal como acontecia com a JSD e até com a JC – mas não com a JCP, pois aí a juventude da idade foi e é temperada pela fidelidade aos «imutáveis» princípios –, parece ter perdido completamente a capacidade para definir uma voz própria e introduzir dinâmicas de reflexão. Justamente aquilo que a tornava razoavelmente respeitada fora do aparelho partidário. Hoje toda aquela precocemente responsável gente se concentra no seu papel de actores da propaganda e de rosto um pouco menos rugoso de um «modelo de modernidade» que a direcção do partido lhe destina. Afirmar por entre um chorrilho de tolices e de banalidades, como o fez a Carolina, que mais vale fazer batota do que perder, não lhes parece já constituir uma inqualificável ignomínia ética, uma distorção completa dos ideais socialistas mais elementares. Sobretudo porque, como calculam, o rosto público da jovem conquistará votos, votos significam poder, e o resto é conversa. Uma lógica muito natural, na qual só não alinham esses empedernidos radicais que dão demasiado valor aos princípios.
O Milagre de S. Cristiano
Cristiano Ronaldo providenciou há dias um milagre que não foi devidamente divulgado fora da Região Autónoma da Madeira. Uma britânica com mais de 80 anos perdera-se do grupo em que seguia quando participava num passeio turístico junto à levada do Caminho dos Balcões, no Ribeiro Frio. A tentativa de resgate foi rapidamente lançada, mas não estava a resultar. A noite aproximava-se e o temor de que ela pudesse ser fatal para a turista começava a crescer. O desânimo instalava-se já quando, subitamente, se ouviu de uma ravina uma voz que bradava: «Cristiano Ronaldo! Cristiano Ronaldo! Cristiano Ronaldo!». Era mesmo a senhora que estava perdida, assim reencontrada. Não conhecendo uma única palavra de português, servia-se do nome do jogador de futebol para procurar salvação.
Provavelmente ainda voltaremos a ouvir falar deste caso, quando um dia se tratar da canonização do futebolista madeirense. Sim, que Aurélio Agostinho, o bispo de Hipona, também tivera a reputação de levar uma vida de devassidão e intemperança, com muita espetada em pau de louro e fímbria de manto pelo meio, antes de reconhecer que a sua missão terrena era outra: a de transportar o mais comum dos mortais até à Cidade de Deus. E acabaria canonizado.
♪ Melodia de sempre.5
Woofer
Admito que não mantenho a melhor das relações com o Twitter. Sei que pode ser uma arma estupenda, particularmente em regiões do planeta – como o Irão, a China, Cuba ou a Bielorrússia – nas quais o controlo da informação exige a quem procura fazer correr uma informação livre que se sirva de meios menos convencionais. Pode também ser útil ou até divertido na partilha diária de informação específica ou mesmo para a conversa informal. Mas não vou muito à bola com o dito.
As razões da minha desconfiança têm uma origem dupla. Desde logo porque o padrão das intervenções obriga a que só possa manter uma conversa com algum nexo quem disponha de muito tempo para estar ligado, o que não é manifestamente o meu caso. Este condicionamento prende-se com o número de pessoas que é capaz de escrever diariamente 30, 50, 100 mensagens sucessivas, tornando quase instantaneamente invisíveis os outros «seguidores» de quem os segue. E depois porque ocorre neste território um tipo de intervenção que sinceramente me aborrece: o das pessoas que dizem qualquer coisa para encherem os 140 caracteres e fazerem um, mais um e outro «update». Ainda que essa «qualquer coisa» seja recomendarem diariamente dezenas de livros, filmes, sites, discos, que obviamente jamais leram, viram, seguiram ou ouviram com um mínimo de atenção. Ou escreverem a alguém, em canal aberto, o mesmo que escreveriam num mail ou numa vulgar sessão de chat.
Por isto me parece interessante o aparecimento de uma nova rede social, o Woofer, que exige mensagens com um mínimo de 1.400 caracteres, não aceita operações de copy-paste consecutivas, e requer assim, pelo menos em princípio, uma conversa muito mais pausada e substantiva. A página principal do Woofer diz-nos aquilo que poderemos então fazer com os 1.260 caracteres mínimos que podemos agora somar aos indigentes 140 que o Twitter nos permite digitar: «evitar abreviaturas», «usar advérbios», e sobretudo ter condições para «ser eloquente». Talvez valha a pena ficarmos atentos a esta experiência, apenas a começar.
♪ Melodia de sempre.4
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=Y2jxjv0HkwM[/youtube] |
Nick Drake – Day is Done |
Religião e Moral
Foi criado o NaqaTube, uma versão árabe do YouTube, que se declara regida pelos princípios do islamismo. Música, mulheres e notícias desfavoráveis ao governo saudita são alguns dos temas censurados no projecto. «O nosso objectivo», assume um dos seus criadores, «é reduzir o número de visitantes do YouTube». Apenas serão admitidos «vídeos seguros», adequados a qualquer internauta interessado «na religião muçulmana e na moral». Uma fonte próxima sublinhou entretanto que os criadores do NaqaTube estão a dar voz «ao islamismo moderado, nada extremo».
Conversa adiada
Tão concentrada tem sida a atenção lançada neste período pré-eleitoral sobre as querelas mais ou menos individualizadas entre PS e PSD, e sobre a campanha dos socialistas pelo «voto útil» e contra essa «esquerda radical» que «serve a direita», que permanece por fazer um outro tipo de confronto, essencial para que a escolha de muitas pessoas faça sentido. Refiro-me à necessidade de se mostrar com toda a clareza que votar no Bloco de Esquerda ou no Partido Comunista Português não pode resultar de uma escolha fortuita ou sectária.
O PCP percebeu-o mais cedo, radicalizando o discurso – consequente com as características da tendência obreirista que domina o partido – e atacando, em público ou no contacto directo, a actividade «pequeno-burguesa», para si falsamente «de esquerda», do Bloco. Já este continua a esquivar-se a este tipo de combate, confinando-se sempre a posições defensivas ou mesmo ao sepulcral silêncio de cada vez que o problema se põe. Existem, naturalmente, divergências profundas – de programa, de organização, de substância política, de atitude ética e mesmo de percursos pessoais – que tornam impossível, e até incompreensível para a generalidade das pessoas, qualquer aproximação formal entre uns e outros. Mas existe também uma real incompatibilidade de propostas que é preciso observar.
Os comunistas têm mostrado qual a sua escolha, extremando as palavras de ordem (falam agora de «Ruptura e mudança», uma vez mais sem apresentarem alternativa de poder por falta de condições «objectivas e subjectivas»), enquanto o Bloco opta por se mostrar um pouco mais construtivo, com assomos apenas pontuais de radicalismo. A alternativa dos eleitores passa assim, na larga franja de cerca de 20% do eleitorado onde se trava esta luta, por uma escolha tão simples quanto esta: preferem uma força que se assuma como trincheira, juntado forças para «a luta» pelos seus improváveis «amanhãs que cantam», ou optam pela construção de uma base política capaz de obrigar a uma inflexão a cegueira do «socialismo gestionário» no poder? Por mim, a escolha está feita, mas acredito que ela seja ainda pouco clara para um grande número de pessoas. Por isso, e para que não se vote apenas no «contra», ou por uma questão de simpatia por Jerónimo ou por Louçã, este debate deveria também ter lugar. Embora eu desconfie que seja melhor esperarmos sentados por ele.
Narrativa do Portugal contemporâneo
Ainda não desapareceu totalmente a desconfiança perante uma História assumidamente narrativa que dominou a historiografia portuguesa entre os finais da Segunda Grande Guerra e os inícios dos anos oitenta. Por isso, e apesar desta tendência ter vindo a recuar no contexto de uma prática recente mais assumidamente polifónica, a obra de Vasco Pulido Valente permanece entre os da sua geração como um caso raro de opção por aquele modelo. Foi todavia esta preferência que lhe permitiu transformar-se num raro caso de mérito académico associado a aptidão para uma abertura, sem preconceitos, a um público alargado e não-especialista de amantes da História. A Pulido Valente se deve, por isso, a disponibilização a um arco alargado de leitores – sem concessões de maior ao rigor e de um modo simultaneamente atraente e romanesco – de uma abordagem crítica dos últimos dois séculos de vida dos portugueses e de alguns dos seus principais intérpretes. O que não significa uma obra historiográfica metodologicamente incontroversa, por vezes vinculada a interpretações francamente polémicas.
Portugal – Ensaios de História e de Política é uma colectânea de artigos dispersos, publicados entre 1983 e 2006 em revistas e jornais, que confirma esta tendência, disponibilizando um conjunto de viagens literárias através das quais podemos tomar contacto com momentos e ambientes nucleares para um reconhecimento do nosso trajecto comum nestes últimos dois séculos. Sobressaem três estudos mais extensos: um sobre as vicissitudes do liberalismo português no período que antecedeu a Regeneração, um outro sobre as circunstâncias, as voltas e os desvios da «República Velha», desde 1910 até ascensão meteórica mas fugaz de Sidónio Pais, e um terceiro, já antes parcialmente publicado em livro, sobre a vida e o trajecto político de Marcello Caetano. Os restantes textos têm um carácter mais avulso, atravessando a biografia e a autobiografia. Em todos eles, um lugar destacado atribuído a personalidades reconhecidamente nucleares do século XX português: Afonso Costa, Sidónio, Salazar, Marcello, Spínola e Cunhal. Apenas Mário Soares – que surge recorrentemente em artigos e crónicas do autor de um modo tão fugaz quanto Hitchcock nos seus filmes – permanece aqui numa imerecida penumbra.
Como comum marca de água, o tom por vezes irónico, outras vezes quase impiedoso, reconhecido no autor também da sua actividade como cronista, que pode suscitar de imediato a contradição, ou desagradar aos resistentes adeptos de uma história supostamente «neutra», mas que sugere sempre interpretações incapazes de nos deixarem indiferentes. O artigo sobre o «25 de Abril», divulgado aquando do trigésimo aniversário da revolução, e provocatoriamente provido de aspas, é disso claro exemplo. A História que Vasco Pulido Valente nos vai oferecendo não deixa ninguém indiferente.
Vasco Pulido Valente, Portugal – Ensaios de História e de Política. Alêtheia Editores, 336 págs. [Publicado originalmente na revista LER de Julho-Agosto]
Lembrar
Direcção da Associação Patriótica das Mulheres (1922-1932). Farrokhroo é a primeira sentada à esquerda.
Palavras de Farrokhroo Parsa, antiga ministra persa da Educação condenada à morte e fuzilada em 1980 pelo regime do ayatollah Khomeini – que em 1968 considerara a actividade política das mulheres equivalente a prostituição – escritas na prisão em carta dirigida aos filhos: «Estou disposta a receber a morte de braços abertos em vez de viver na vergonha e ser forçada a usar o véu. Não vou ceder aos que esperam que eu lamente 50 anos de esforços pela igualdade entre homens e mulheres. Não estou disposta a usar chador a recuar na história.»
[A partir do artigo sobre a activista iraniana Mahnaz Afkhami saído no caderno P2 do Público.]