Anticomunismo e poética do comunismo

Anticomunismo

Nos últimos anos, as tentativas de embelezamento desse «mundo a leste» que desabou em 1989 e de mitigação da memória e das consequências do sistema extremamente repressivo que nele germinou, têm atravessado fronteiras. Em Portugal, porém, essas tentativas têm tomado uma forma inusitadamente organizada e sistemática. A causa de tal originalidade é relativamente fácil de decifrar: aqui não se cingem à iniciativa de círculos diminutos e sectários de ativistas, mas contam com o suporte de um partido comunista militante que conserva peso social e detém um lastro histórico respeitável, reconhecido mesmo por pessoas que não partilham o seu ideário e não têm os seus objetivos.

Trata-se de um partido resistente a uma renovação ideológica que é observada como repulsiva traição a valores considerados intocáveis. De um partido que nunca reconheceu as consequências práticas e teóricas do movimento de desestalinização vivido ao longo das últimas décadas por quase todas as organizações homólogas, e que vive condicionado por uma animosidade atávica, inscrita na matriz leninista, contra uma «democracia burguesa» reputada como expressão de um mundo inferior. Comporta-se ao mesmo tempo como bastião tardio da «ordem socialista» que Gorbatchev e os seus cúmplices «capitulacionistas» se encarregaram de dissolver, e tem vindo – de uma forma cada vez mais veemente nos últimos tempos – a promover o reconhecimento, por vezes a defesa, de experiências e de princípios que o próprio PCUS pôs em causa há mais de cinquenta anos, logo após a morte de Estaline. É assim que a Queda do Muro, ao invés de se transformar num fator de reflexão, de ground zero para projetar a busca de alternativas, se transforma num ato de pura perfídia que pôs termo a um universo conceptualmente perfeito, enquanto os crimes do estalinismo internacional passaram a ser olhados como irrelevâncias ou a ser evocados, quanto muito, como «erros» menores e inteiramente justificáveis.

Partindo desta posição, muitos comunistas (do PCP, mas também fora dele) têm observado e comentado, quase sempre de forma crispada e depreciativa, por vezes com alguma violência, os argumentos de quem entende que os horrores do sistema repressivo e concentracionário imposto sobre o mapa do «socialismo real», tal como a punição brutal da dissidência e a gestão do sistema do Gulag e dos seus sucedâneos, não devem ser atenuados e muito menos silenciados. Aqui a palavra-chave é «anticomunismo». Quem critica frontalmente as certezas da direção do partido ou questiona uma certa «mitografia do comunismo» é então acusado de «anticomunista», quem insiste em apontar o falhanço do modelo burocrático e totalitário e em afirmar que foi horror o horror do Gulag é taxado de «anticomunista», quem questiona valores, princípios éticos e perspetivas políticas de uma esquerda autoritarista porque os considera perigosos, sugerindo que podem existir alternativas democráticas combativas, é qualificado sem apelo como impenitente «anticomunista».

A perversão é antiga e integra-se modelarmente na velha tradição dos comunistas russos, anterior à própria Revolução de Outubro – ela está presente, por exemplo, na cisão consciente e brutal com os mencheviques ou na rutura sem apelo com os socialistas-revolucionários –, que foi depois tomada em mãos por outros partidos-irmãos. Basta lembrar os epítetos lançados sobre centenas de milhares de militantes revolucionários perseguidos e abatidos durante as purgas estalinistas, indiciados todos, consoante a etapa da repressão, como «contrarrevolucionários», «fascistas», «provocadores», «capitulacionistas», «agentes da Gestapo», «espiões ao serviço do imperialismo», «lacaios do capital», e, frequentes vezes, «trotskistas», o que no jargão em vigor no Kremlin e no edifício moscovita da polícia política situado na Lubianka passou a significar, no mínimo, criminosos destinados à prisão ou mesmo ao pelotão de fuzilamento. Pode, aliás, estabelecer-se uma analogia moderada com o epíteto de «comunista» atribuído pelo Estado Novo a todo aquele que destoasse da ordem que este procurava impor, a quem discordasse ainda que só pontualmente do governo de Salazar, manipulando e diabolizando a palavra, num quadro que foi agravado com a propaganda da Guerra Fria.

Ambas as escolhas foram e são, para além de potencialmente injustas, completamente incorretas e inapropriadas, voltando-se até contra quem as utilizou e continua a utilizar, uma vez que alienam quem pode, pelo menos em determinados contextos, tornar-se um aliado. Tratam-se, na realidade, de expressões ao serviço de «teorias da conspiração» destinadas a identificar «culpados» para dificuldades e incompreensões que, num quadro democrático, poderiam e deveriam ter sido debatidas ou partilhadas, mas que aqui servem, como referiu Lucien Boia em Pour l’histoire de l’imaginaire, de processos destinados à «redução da história e da política a um só princípio, fundado na crença de que a história avança e a política se faz à custa de conspirações sucessivas». Os conspiradores são seres apresentados como possuidores de uma inteligência degenerada, como génios malignos que é necessário desacreditar e destruir. Esta atitude diabolizante  é, aliás, uma das essências de todos os sistemas totalitários e das ideologias que os servem, e o anti-«anticomunismo» dos comunistas ortodoxos serve-se recorrentemente deste processo.

É verdade que enquanto movimento político e social, e também como atitude individual, o anticomunismo – aqui sem aspas – existe, possuindo um percurso histórico longo e complexo, como o mostra um recente estudo de Miguel Real incluído na obra coletiva Dança dos Demónios. Intolerância em Portugal (Temas e Debates/Círculo de Leitores), mas a generalização constitui um erro de tiro. Porquê? Desde logo porque contestar o dogma ou contrariar a cegueira não significa propor a destruição de quem o faz.

É este um erro flagrante. Para começar porque é inequívoco o direito do PCP à existência como partido democrático e, mais do que isso, é incontornável a relevância do seu papel como parte do passado, do presente e do futuro da nossa vida coletiva. Só que este papel necessário apenas pode ser cumprido de forma plena se nele ocorrer um processo de abertura antisectária à diferença no interior da esquerda anticapitalista, tendo em conta que esta abertura passará inevitavelmente pelo questionamento, doloroso, mas imprescindível, dos dogmas que foram prendendo o partido ao lado negro de um passado que insiste em invocar. Quando tal verdadeiramente ocorrer, quando a experiência da antiga União Soviética deixar de ser mitificada e a maioria dos comunistas aceitar os valores da liberdade individual como matriz constitutiva, ficará claro que o epíteto de «anticomunista» se aplicará apenas àqueles que recusam o direito de opinião e de intervenção aos que se batem contra a ordem capitalista indagando a possibilidade de uma alternativa.

Por isso a experiência histórica do «socialismo real», porque globalmente negativa, principalmente na materialização da sua vertente acentuadamente imobilista, intolerante e repressiva, deve ser olhada de frente, analisada, dessacralizada, criticada sem quaisquer complexos. Seguindo um processo revelado imperativo por três diferentes razões: por uma questão de justiça para com as suas inumeráveis vítimas; para que se perceba que a experiência não pode ser repetida; e para que fique claro que os projetos de mudança devem ter em consideração a defesa básica – a única que pode promover realmente uma atualização do conceito de comunismo – dos direitos humanos e das liberdades individuais, indispensáveis para um desenvolvimento harmonioso de todas as sociedades e para o aproveitamento da capacidade criadora dos seus cidadãos.

É por defendê-lo como especto essencial da vida democrática que muitos homens e muitas mulheres, que não são de direita ou «apologista do capitalismo», se dão ao trabalho – para os dogmáticos, quase criminoso – de exumar cadáveres injustamente esquecidos. Para que a memória da sua luta e do seu trajeto seja limpa de uma vez por todas. Para que se não esqueçam, e para que se não repitam, as injustiças que perverteram o princípio da utopia anticapitalista, cometidas em nome de um projeto igualitário que é, que foi, essencialmente justo ou necessário. Para que o ideal comunista – sinal vital de esperança e de compaixão para com os outros, mas também uma molda do combate pela liberdade – jamais pereça. Foi a comunista Rosa Luxemburgo quem escreveu que a verdade é revolucionária e deve ser sempre exposta, mesmo quando possa ser melindrosa. Negá-lo, isso sim, significará então ser-se contrarrevolucionário e anticomunista.

    Atualidade, História, Opinião

    O homem que não se opôs

    Chu En-Lai e Mao Tsé-Tung

    Enquanto aguardamos pela tradução do diário secreto do antigo primeiro-ministro chinês Zao Zyiang – afastado em 1989 em consequência da posição moderada que assumiu durante o episódio de Tien An Men –, Chu En-Lai. O Último Revolucionário Perfeito abre caminho para um conhecimento mais completo dos intrincados meandros pelos quais têm passado, na história recente da China, os equilíbrios e os desequilíbrios do poder. Mas não se trata de uma biografia no formato clássico, uma vez que o biografado raramente é olhado na complexidade da vida pessoal ou dos fundamentos que determinaram a sua acção pública, sendo visto apenas na medida, e nos actos, em que o seu trajecto se cruzou, sempre numa relação proximidade e de dependência com o de Mao Tsé-Tung, com a luta pelo poder na China comunista. A esta característica não é alheio o facto do autor, Gao Wenqian, ter sido ao longo da década de 1980 o biógrafo oficial de Chu junto do Gabinete Central de Investigação e Documentação do Partido Comunista Chinês. O método aplicado pela historiografia oficial num regime como o chinês exclui, de facto, uma abordagem individualizada do trajecto intelectual e vivencial do biografado, confinado obrigatoriamente à projecção aceitável da sua imagem pública. O material utilizado cerceou também a possibilidade de uma outra observação, uma vez que o livro foi escrito quase exclusivamente a partir da documentação que Gao reuniu e das entrevistas que fez enquanto trabalhou naquele gabinete, antes ainda de emigrar em 1993 para os Estados Unidos.

    A figura de Chu conserva um lugar especial no percurso da China contemporânea. Ao contrário da quase totalidade dos principais líderes do passado do PCC, que passaram por momentos de rápida ascensão e de abrupta queda, sobreviveu às depurações e manteve uma posição de contínuo destaque, apenas comparável à do próprio Mao. O que pode parecer estranho, sabendo-se, e Gao enfatiza este aspecto, como a relação entre ambos foi sempre difícil, e de que modo Mao – que concebia Chu como alguém que um dia poderia cumprir um papel idêntico àquele que Kruchtchev desempenhara na condenação post-mortem de Estaline – sempre desprezou os seus modos afáveis, tão diferentes dos seus, tendo esperado durante anos pelo momento exacto para o fazer cair, como o fez com o antigo presidente Li Chao-Chi no início da Revolução Cultural ou com o marechal Lin Piao. A explicação deste casamento de conveniência encontra-a Wenqian em três características de Chu que o tornaram incontornável: a sua capacidade para sobreviver aos conflitos através de um diplomático calculismo, o tom de moderação pública associado a um inusitado vigor aplicado à gestão do partido e do governo que lhe granjeou a fama de insubstituível, e a profunda convicção de comunista que manteve sempre e lhe forneceu, na actividade partidária como nas tarefas de primeiro-ministro, uma imagem de rectidão e um enorme prestígio público. Nos derradeiros dias, quando entrava na sala de operações da qual sabia que não sairia vivo ou capaz – pois Mao havia-o metodicamente impedido de receber a tempo o tratamento adequado –, as últimas palavras que pronunciou foram: «Sou leal ao Partido Comunista, leal ao povo!»

    Gao Wenqian, Chu En-Lai. O Último Revolucionário Perfeito – Uma Biografia. Tradução de Ana Barradas. Pedra da Lua, 328 págs. [Publicado na LER de Outubro]

      História

      Palavras para quê?

      Há cerca de um ano circulou pelos jornais e suplementos de economia uma notícia que cotava Angola como o principal cliente do mercado português de imóveis de luxo. Hoje mesmo o Expresso noticia que 30% dos produtos para ostentação vendidos em Portugal são adquiridos por cidadãos angolanos. Existe até um perfil do cliente-padrão: «Homem, 40 anos, empresário do ramo da construção, ex-militar ou com ligações ao governo.» Veste habitualmente Hugo Boss ou Ermenegildo Zegna, compra relógios de ouro Patek Philippe e Rolex, desloca-se em automóveis topo de gama. Já o investimento angolano aqui no rectângulo rondou os 800 milhões de euros apenas entre 2005 e 2008, contando à cabeça com a participação da laboriosa empresária Isabel dos Santos, filha do presidente angolano, com uma intervenção decisiva em empresas como a Galp, a Zon, o BPI, o BES e a Sonae. Dados notáveis para o país do mundo com maior taxa de mortalidade infantil, situado em 224º (penúltimo lugar, apenas acima da Suazilândia) na classificação da esperança média de vida e em 114º na do rendimento anual per capita.

        Atualidade, Olhares

        Pê-ésse-dê forever

        A gravata

        Nada de realmente surpreendente nas palavras chistosas, assistidas por um delicado sorriso de desdém, de José Sócrates ao investir na Assembleia da República contra José Pacheco Pereira invocando o passado rebelde deste: «uma vez revolucionário, revolucionário toda a vida». Posso garantir que conheço de contacto directo pelo menos quinhentas pessoas que um dia foram revolucionárias e que, apesar de hoje estarem maioritariamente «instaladas na vida», não sentem necessidade alguma de renegar esse lado inconformista do seu passado. Ainda que muitas tenham alterado as suas convicções, ainda que atribuam agora ao conceito de revolução, associado a um princípio de vida, uma conotação negativa, elas sabem – mesmo que não tenham lido Rimbaud – que «on n’est pas sérieux, quand on a dix-sept ans». Ou seja, que ninguém que mereça viver pode passar a juventude sem, pelo menos durante umas horas, ter pensado na possibilidade de o mundo ser aquilo que não é. Sabem que são o que são devido a essa experiência, geralmente partilhada. Sabem também – meio-mundo sabe-o – que foi ela a despertar o regime democrático. Muitas votam mesmo PS, algumas apoiaram Sócrates publicamente, umas quantas colaboram até com o governo. É por isso uma verdadeira tristeza que o primeiro-ministro português, com o dever de fazer pedagogia democrática ainda que seja historicamente um parvenu da democracia, tenha afirmado o que afirmou e da forma como o fez. Dir-se-á que foi da adrenalina, que se tratou de uma irrelevância, mas são irrelevâncias destas que definem um carácter. Mário Soares, por exemplo, jamais diria tal coisa. Como exclamou uma amiga minha indignada com o episódio, «apetecia responder-lhe: uma vez PSD, para sempre PSD».

          Apontamentos, Atualidade

          Bibliocausto

          Queimar

          Fernando Báez, especialista venezuelano em história das bibliotecas, esteve em 2003 no Iraque para investigar os danos causados no património cultural do país pela Segunda Guerra do Golfo. Foi aí, confrontado com a destruição sistemática e o saque incontrolável de obras de arte e de livros, que decidiu escrever esta História Universal. Desde a Suméria até à Bagdad actual, da antiguidade grega ao universo islâmico, dos códices pré-colombinos atirados ao fogo na época colonial ao bibliocausto organizado pelos nazis e às actuais disposições censórias vividas na China ou em Cuba – onde ocorre mesmo um «discurso duplo» sobre a conservação e as purgas culturais que a contradizem –, a ruína do livro tem sido sempre feita em nome de dispositivos de poder que nele vêm «objectos de memória» capazes de funcionarem como entraves ao triunfo e à afirmação de uma ordem nova e dominadora. Com uma dimensão enciclopédica, este estudo de Báez não deixa de fora processos utilizados por alguns regimes democráticos contemporâneos, nos quais o trabalho de corte e apagamento recorre a métodos mais insidiosos. Apenas lhe escapa o processo de devastação, não menos aniquilador, que hoje se estende já ao digital. [Fernando Báez, História Universal da Destruição dos Livros. Trad. de Maria da Luz Veloso. Texto, 448 págs.]

            Democracia, História

            A verdade deles

            Pravda

            Não há volta a dar-lhe: a redacção do Avante! atesta pendularmente a sua visão bicromática do mundo. É-lhe insuportável uma realidade intrincada que escape à cartilha amarelecida e maniqueísta da «luta de classes». É verdade que a Queda do Muro de Berlim e o fim das «democracias populares» não trouxeram a felicidade à maioria daqueles que sob elas viveram. É verdade que muitos dos antigos cidadãos dos países que as experimentaram recordam com ostalgie, perante o desenvolvimento descontrolado de um capitalismo selvagem e agressivo imposto de cima para baixo, a antiga segurança de uma aparente paz pública (apesar de assente na repressão da liberdade e na agressão militar), de um sistema de saúde em regra gratuito (embora antiquado e com escolhas trágicas), de uma educação organizada e exigente (se bem que sectária e confundida com a propaganda), de um emprego garantido (muitas vezes associado a trabalho improdutivo e tecnologicamente obsoleto), de uma autoproclamada grandeza nacional (apoiada em manifestações de força e completamente invisível de fora para dentro). Mas torna-se profundamente patético invocar este descontentamento efectivo e legítimo para defender, uma vez mais sem qualquer exercício crítico, práticas de governação absurdas e regimes despóticos que a história felizmente enterrou. Todavia, é precisamente isso que o jornal do PCP acaba de fazer num artigo, com direito a longa citação do falecido «camarada» Erich Honecker, destinado a denegrir o resultado prático e o valor simbólico da Queda do Muro e a defender a caricatura do socialismo que este supostamente defendia. Ler aqui para crer.

              Atualidade, Devaneios, História, Memória

              Os sons do silêncio

              Shmiel, Ester e a filha Bronia

              As circunstâncias que determinaram Daniel Mendelshon a escrever Os Desaparecidos são relatadas: a sua parecença física com Shmiel Jäger, um tio-avô assassinado pelos alemães, juntamente com a mulher e as quatro filhas, na cidade polaca, hoje ucraniana, de Bolechow, provocava de imediato a consternação dos familiares mais velhos sempre que em criança lhes surgia à frente. Foi essa memória incómoda que o levou a procurar esclarecer o que acontecera. Descreve então os trabalhos e os dias na complexa perseguição desse objectivo. Conforme avançava na leitura, e como se de obra de ficção se tratasse, fui-me deixando levar por uma trama policial, comovi-me com os encontros e os desencontros, exasperei-me com certos desvios de percurso e algumas resistências. Mas vi-me também perante uma proposta de releitura circunstanciada da memória do Holocausto. Na realidade, esta obra é muito mais do que uma história dramática de família, representando uma meditação pessoal sobre o modo como o passado se esconde para vir subitamente ao nosso encontro.

              Vencedor do National Book Critics Circle Award, escrito num registo intimista e sedutor, Os Desaparecidos revelam um autor envolvido numa sucessão de acasos e de circunstâncias que o impelem a ir cada vez mais longe. O trabalho de casa foi feito muito cedo – percorrendo bibliotecas e arquivos, consultando milhares de sítios na Internet, recuperando objectos e papéis preservados pela família – mas o objectivo foi materializado no terreno, percorrendo o planeta para entrevistar os sobreviventes que o ajudaram a recuperar a sua história. Estranhamente, estes foram bem mais do que seria de prever, e, apesar da passagem do tempo, quase todos pareciam conservar uma recordação vívida do mundo que haviam conhecido mais de seis décadas antes. Esta lembrança intensa introduziu um factor paradoxal: se é verdade que ela parece ampliar desmedidamente o volume de informação, evidencia também um dos problemas característicos da história oral, que se traduz na intromissão de uma nostalgia intensamente ficcional capaz de sobrepor a imprecisão à materialidade dos factos. Parte do trabalho de Mendelsohn consistiu, pois, na depuração de factores óbvios de fantasia e embelezamento do passado, arbitrando a inevitável tensão verificada entre o registo histórico e a evocação pessoal. No termo, como um investigador policial, o único na posse de todos os elementos do puzzle e com capacidade para separar o falso do verdadeiro, é no seu trabalho de interpretação e relato que reside a chave da trama que procurou.

              Destaca-se ainda uma percepção impressionante: a de sermos lembrados ao longo da leitura, quando confrontados com os vestígios materiais do passado reencontrado – os papéis, as casas, as ruas, objectos, roupas –, de que o nosso presente é também feito de uma redução compassada ao silêncio dos milhões de pessoas que, como Shmiel e a sua família, foram privados para sempre de um futuro. «Não conseguimos tirar isso da nossa cabeça», escreve Mendelsohn. Por isso, e como uma redenção, se foi tornando cada vez mais importante para ele, não tanto o modo terrível como aquelas pessoas morreram – era esse o seu objectivo inicial – mas a forma como tinham vivido o tempo que lhes estivera destinado.

              Daniel Mendelsohn, Os Desaparecidos. À procura de seis em seis milhões. Trad. de Margarida Santiago. D. Quixote, 552 págs. [Publicado na LER de Outubro]

                Democracia, História

                Merci beaucoup, Professor Claude

                Claude Lévi-Strauss

                Escrevi este post há perto de um ano, quando Claude Lévi-Strauss fez os 100. Hoje que soube do seu desaparecimento, fui buscá-lo ao arquivo, limpei-o do pó e trouxe-o de novo para a parte mais visível do blogue.

                Quero recordar os 100 anos que o antropólogo, professor e filósofo Claude Lévi-Strauss completa neste 28 de Novembro. Mas começo pelo fim: pelo esquecimento. Hoje, quando menciono numa aula de licenciatura o nome de Lévi-Strauss, para tornar mais clara a identificação preciso dizer que não me estou a referir àquele senhor de origem alemã que em 1853 fundou em São Francisco a primeira fábrica de blue jeans. E preciso começar por recomendar, para evitar grandes choques, a leitura mais facilmente sedutora desses apontamentos de trabalho de campo na terra amazónica, aparecidos em 1955 e por vezes apresentados como um mero exemplo de literatura de viagens, que são os Tristes Trópicos. Lévi-Strauss, como o estruturalismo, está fora de moda.

                No entanto, quando reentrei na universidade logo após a revolução de Abril, a primeira obra cuja leitura me foi recomendada, e que tenho agora aqui mesmo à minha frente na edição velhinha da Presença, foi o Raça e História, um livro publicado pela primeira vez em 1952 que naqueles anos setenta sublinhei conscienciosamente. Retenho dele – numa altura em que volto a ouvir na televisão os apresentadores falarem de povos «mais» ou «menos» civilizados – fragmentos da sua reapreciação das culturas ditas «arcaicas» ou «primitivas». E sobretudo da sua crítica radical e refundadora do etnocentrismo: «Preso entre a dupla tentação de condenar experiências que o chocam afectivamente e de negar as diferenças que ele não compreende intelectualmente, o homem moderno entregou-se a toda a espécie de especulações filosóficas e sociológicas para estabelecer vãos compromissos entre estes pólos contraditórios, e para aperceber a diversidade das culturas procurando suprimir nesta o que ela contém, para ele, de escandaloso e de chocante.»

                O ponto final na hipótese da existência de uma «mentalidade primitiva», posto definitivamente em causa, no ano de 1962, em O Pensamento Selvagem – numa defesa dos «saberes indígenas» que ainda hoje desagrada a muitos porque queima um certo sentido da história construído ao longo de séculos – já se encontra ali, seguindo um método de observação do social e uma filosofia para a vida que procuro praticar e que tento ainda partilhar com quem me vai ouvindo: «A tolerância não é uma posição contemplativa dispensando indulgências ao que foi e ao que é. É uma atitude dinâmica, que consiste em prever, em compreender e em promover o que quer ser. A diversidade das culturas humanas está atrás de nós, à nossa volta e à nossa frente. A única exigência que podemos fazer valer a seu respeito – exigência que cria para cada indivíduo valores correspondentes – é que ela se realize sob formas em que cada uma seja uma contribuição para a maior generosidade das outras.» Muito obrigado, Professor Claude.

                  Apontamentos, Memória, Olhares

                  Auschwitz Gulag | 2. A sentença

                  Varlam ShalamovNascido em 1907 na cidade russa de Vologda, durante a juventude o escritor, poeta e jornalista Varlam Shalamov participou das actividades do grupo literário esquerdista LEF. Em Fevereiro de 1929, quando era estudante da Universidade de Moscovo, foi detido pela primeira vez sob a acusação de difundir o «testamento político» de Lenine. Tratava-se de uma das últimas cartas do dirigente bolchevique, na qual este apontava a necessidade de afastar Estaline do cargo de secretário-geral do Partido Comunista. Nos anos trinta, a difusão do documento, considerado apócrifo pelas autoridades, iria custar a vida a diversas pessoas. O escritor passou então cerca de três anos em campos de concentração nos Urais. Em 1937 foi novamente detido e enviado para a Sibéria Oriental, para Kolima, um dos mais mortais campos do Gulag. Primeiro como prisioneiro e depois como deportado, ali permaneceu até 1953. Seria completamente reabilitado em 1956, após o XX Congresso do PCUS. Os Contos de Kolima, de um dos quais se transcreve aqui um fragmento, foram escritos entre 1954 e 1973 com um cunho acentuadamente autobiográfico, mas só começaram a ser publicados em revistas e jornais literários nos anos da perestroika. Durante a vida, Shalamov apenas conseguiu publicar cinco colectâneas de poesia, tendo morrido sozinho, cego, surdo e sem meios pessoais em 1982.

                  Os homens surgiram do nada, uns atrás dos outros. À noite, um homem desconhecido deitava-se na minha tarim­ba, encostava-se ao meu ombro ossudo, transmitindo-me o seu calor – gotas de calor – recebendo o meu em troca. Havia noites em que nem sequer uma gota de calor chegava até mim através dos farrapos de um casaco, de um jaquetão acolchoado. E, de manhã, olhava para o vizinho como para um cadáver e ficava admirado quando via que o cadáver estava vivo, se levantava ao som dos gritos, se vestia e cum­pria obedientemente as ordens. Eu tinha muito pouco calor. Nos meus ossos restava muito pouca carne. Bastava apenas para ter raiva, o último dos sentimentos humanos. O último dos sentimentos humanos, o mais próximo dos ossos, não é a indiferença mas a raiva. O homem, que aparecia do nada, desaparecia de dia: na mina de carvão havia muitos sectores, e desaparecia para sempre. Não conheço as pessoas que dormiram ao meu lado. Nunca lhes fiz perguntas, não porque seguisse o provérbio árabe: não perguntes para que não te mintam. Era-me indiferente que me mentissem ou não, eu estava para além da verdade, para além da mentira. Sobre isto os criminosos têm um ditado severo, claro e gros­seiro, cheio de um desdém profundo para quem faz a per­gunta: se não acreditas, pensa que é um conto de fadas. Eu não perguntava e por isso não ouvia contos.

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                    Democracia, História, Memória

                    Pesadelo ibérico

                    Numa esquina, não da vida mas da Internet, reencontrei um som do passado. Inesquecível o pesadelo que foi, no início dos anos 70, uma viagem quase inteira entre Lisboa e Madrid, à boleia, ao som de sucessivos cartuchos (cartuchos mesmo, esses antepassados voluminosos da velhas cassetes) da orquestra e coros de Ray Conniff. Ainda não me recompus.

                    [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=wasO6jFpbuE[/youtube]
                      Etc.

                      Um Napoleão suavizado

                      Napoleão Bonaparte

                      O nome de Napoleão evoca invariavelmente o ruído da bota militar. Nesta direcção, a maioria das obras que lhe são dedicadas ocupa-se sobretudo da sua intervenção como chefe supremo do exército francês ou com o vigor real e simbólico da sua iniciativa imperial. O que propõe um texto sedutor como este de Steven Englund é algo de diverso, enfatizando principalmente a actuação política do genial corso, e procurando transformá-lo – é esse o propósito visível de um autor fascinado com o seu objecto – no arquétipo do homem político moderno, comparável, em termos de exemplaridade e de influência, ao de um príncipe do Renascimento. Seguindo de um modo muito próximo a vida do imperador – da infância na Córsega ao exílio de Elba e à morte em Santa Helena, passando pelos anos de formação em França, pela fulgurante carreira militar e pelo excepcional trajecto político – este trabalho enciclopédico tudo faz para modificar, junto da opinião pública e no interior do universo académico, a imagem repetidamente exagerada desse Bonaparte «que nos intimida e nos repugna há demasiado tempo». Revelando, ao invés, como nos anais do Primeiro Império que fundou é impossível, por mais que rebusquemos, encontrar exemplos arbitrários de pura maldade. Uma tese que surpreenderá alguns, projectando uma outra luz sobre uma parte da história que julgávamos fixada de uma vez por todas. Mas Englund é americano e talvez por isso menos permeável ao longo rasto de ódio e pavor que Napoleão foi deixando pela Europa. [Steven Englund, Napoleão. Uma Vida Política. Trad. de Pedro Elói Duarte. Edições 70, 648 págs.]

                        História

                        Israel num Moleskine

                        Israel

                        Um sketchbook é isso mesmo: um livro de impressões gráficas, de observações desenhadas num movimento de passagem, colecção de rascunhos rápidos e por isso fatalmente intensos. Começa assim: «São 7H00 da manhã… Chego ao Aeroporto Internacional Ben Gurion muito mais tarde do que o previsto.» Israel Sketchbook, de Ricardo Cabral (ASA) é um belo livro de BD que não é bem BD: induz, na forma, uma aproximação ao mesmo tempo documental e ficcionada a um dos países do mundo que concentra um volume particularmente anormal de juízos absolutos e contraditórios, passionais, por vezes demenciais. E não desilude. Por todo o lado uma cor arenosa, muita luz e uma coloração forte, impactos de bala visíveis, e principalmente gente, muita gente diferente, de diferentes cores e credos, que dê por onde der seguirá em conjunto para sempre. Sabemos que assim será porque, como observou a psicanalista e historiadora Elisabeth Roudinesco em entrevista aparecida há dias na revista Inrockuptibles, «não podemos reduzir Israel ao seu exército e aos seus líderes políticos.» Muito bom e incandescente este álbum.

                          Atualidade, História

                          Olá/Hola Ibéria/Iberia!

                          Iberia

                          Aquilo que os esforçados iberistas de Oitocentos não conseguiram através do publicismo, nem Franco obteve por se haver gorado o projecto de invasão de Portugal, está o futebol em vias de materializar. Segundo o jornal A Bola o primeiro passo está dado com a candidatura luso-espanhola à realização do Mundial de Futebol de 2018 (ou de 2022) e agora com a apresentação do logótipo da mesma, «inspirado na obra de um artista luso e outro castelhano (no caso, José Guimarães e Miró)» (sic). Gilbero Madaíl diz ao Record que este «transmite a ideia de união e vontade entre dois países que estão entrelaçados.» Sugere-se assim, graficamente, a hipótese de uma fusão que não deixaria de comover Seribaldo de Mas e Latino Coelho, de exaltar Xisto Camara e Henriques Nogueira, de deixar optimistas Pi i Margall e Oliveira Martins. A Señora Del Pilar e a Virgem de Fátima coligadas nos defendam do que aí vem.

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                            Atualidade, Devaneios

                            Auschwitz Gulag | 1. A abrir

                            O campo

                            Preludiando Auschwitz Gulag, uma sucessão de posts documentais sobre a experiência concentracionária imposta pelos regimes totalitários do século 20.

                            Inocentar ou justificar a dimensão ferozmente repressora do «socialismo real» em nome de uma repressão maior, de crimes forçosamente mais graves praticados pelos diversos cães de fila do capitalismo, não tem qualquer sentido. Em ambos os casos falamos de coerção, de tortura ou de morte que são absolutas, não possuindo cor ou ideologia salvo na sua forma exterior. Não existe uma tortura «boa», aceitável ou desejável porque praticada sobre quem merece, e outra «má», inadmissível porque exercida sobre quem tem a razão do seu lado. Se alguma disjunção pode ser traçada, será precisamente aquela que admite como perversão aquilo que outros defendem como uma necessidade, aquela que separa os crimes terríveis que podem ser denunciados dentro do sistema, que podem ser parados pela pressão da opinião pública, como sucede nas democracias, daqueles outros recorrentemente praticados e invariavelmente silenciados sob os regimes totalitários. Onde o silenciamento funciona também como instrumento de anulação do individuo e dos seus direitos.

                            Pelos relatos daqueles que sobreviveram aos Lagern nazis e ao Gulag percebemos que a caracterização do encarceramento concentracionário, «a experiência do século» como lhe chamou Heinrich Böll, diverge entre eles num aspecto crucial. Nos campos alemães, o detido era-o num tempo que antecedia a previsível inevitabilidade do fim. E sabia-o, uma vez que pertencia, em regra, a um grupo destinado a ser erradicado de forma mecânica e implacável. Uma inflexibilidade revelada até na impiedade nazi diante das crianças, rara nos campos soviéticos. A norma nos redutos do Holocausto era a da luta mais extrema do prisioneiro, permanentemente imerso no medo, no horror, na disciplina, no tormento mais intolerável e na antevisão da morte, por um estreitíssimo limiar de sobrevivência. Apenas mais uma noite, só mais uma hora, um minuto, um breve instante. É o que evocam os relatos memorialistas de Élie Wiesel ou de Primo Levi quando enfatizam dramaticamente a ausência de limites na mais brutal luta pela vida. Em Se isto é um homem, Levi recorda como logo pelo segundo dia em Auschwitz os homens do seu grupo se olhavam já como fantasmas: «não há espelhos para nos vermos mas o nosso aspecto está diante de nós, reflectido em cem rostos lívidos, em cem fantoches miseráveis e sórdidos.» Um pequeno mundo, o único mundo possível, onde em pouco tempo o combate pela sobrevivência transformará cada um no chacal do seu próximo.

                            Já com as vítimas da Administração Geral dos Campos de Trabalho Correctivo, projectada logo na época do Terror Vermelho pelo poder bolchevique – em Gulag. Uma história, Anne Applebaum relembra que o primeiro estabelecimento foi aberto logo em 1918 –, não era necessariamente a origem étnica ou a condição social a determinar a pena e o encarceramento. Detidas e deslocadas pelos mais diversos motivos, eram genericamente classificadas como irrecuperáveis representantes do «inimigo de classe», sobreviventes incómodos de um tempo a ultrapassar, obstáculos vivos que apenas embaraçavam a caminhada triunfal do homem novo e deveriam ser banidos da sociedade. Por isso, a desumanização e a demonização do prisioneiro, sendo reais, foram em regra circunscritas ao seu lugar de alvo a ferir no combate por uma necessidade histórica que a ditadura do proletariado pretendia forçar. Nestas condições, o essencial do esforço carcerário era aplicado na erradicação dessas pessoas do convívio social normal, ou, em certos casos, na sua «reeducação» pela disciplina e pelo trabalho. Não na mecanização do extermínio, que foi quase sempre mais uma consequência do que um fim em si mesmo.

                            (continua)

                            Parte deste post adapta um fragmento de um artigo extenso a publicar na LER de Novembro.

                              Democracia, História, Memória