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Boomerang

Apontamentos do Maio – 15

De vez em quando colhemos frases. Muitas delas riscadas na areia, durando apenas o tempo de uma emoção, de um desejo ou de uma pequena rajada de vento. Outras parecem-nos escritas sobre a pedra: aparentemente únicas, esplêndidas, imperecíveis. Usei há muitos anos um pequeno caderno de capa de oleado negro para guardar algumas, que acreditava perpétuas e depois se mostraram desleais, fugidias. Ou insensatas. Agora acredito sobretudo em frases-boomerang. Que passam por nós, e se vão, e depois podem voltar. Únicas e incólumes, irrompendo de novo nas nossas vidas distraídas. Como esta, proclamada por Raoul Vaneigem, que retiro do Aviso aos alunos do básico e do secundário: «Não queremos ser os melhores, queremos que nos caiba o melhor da vida, segundo o princípio da inacessível perfeição que revoga a insatisfação em nome do insaciável.»

    Atualidade, Memória, Recortes

    De livre e espontânea vontade

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    As autoridades chinesas do Tibete garantem que uma centena de pessoas se entregou à polícia, reconhecendo ter participado nos motins de sexta-feira passada em Lhasa, capital do território. (…) Este é o primeiro número divulgado pelas autoridades locais desde a meia-noite de ontem, fim do prazo dado (…) para que os participantes nas manifestações se entregassem. As autoridades prometiam clemência, avisando que quem ignorasse a ordem seria severamente punido pelos seus actos. (publico.pt)

    Os métodos continuam os mesmos. E os silêncios que os acompanham também. Admitindo que aquelas vozes das sombras, capazes de utilizarem nas suas proficientes análises expressões como «a promoção do feudalismo tibetano continua a desenrolar-se», «esse bandalho do Dalai-Lama» e «as tais ‘revoluções coloridas’ da Europa do Leste», já não contarão assim muito.

      Atualidade, Recortes

      Revolução de veludo

      Uma das conclusões pode surpreender-nos. A outra não.

      «Os professores são os profissionais em quem os portugueses mais confiam e também aqueles a quem confiariam mais poder no país, segundo uma sondagem mundial efectuada pela Gallup para o Fórum Económico Mundial. Os professores merecem a confiança de 42 por cento dos portugueses, muito acima dos 24 por cento que confiam nos líderes militares e da polícia, dos 20 por cento que dão a sua confiança aos jornalistas e dos 18 por cento que acreditam nos líderes religiosos. Os políticos são os que menos têm a confiança dos portugueses, com apenas 7 por cento a dizerem que confiam nesta classe.»
      Público, 25/1/2008 [os sublinhados são meus]

        Atualidade, Recortes

        Português nada suave

        Pacheco
        Luiz Pacheco, 1925-2008

        «Os Amigos são: simpáticos, afáveis, delicados, escondem-nos as verdades-verdadinhas, poupam-mos com hipocrisias e blandícias, são ambíguos às vezes, cobiçam-nos a fêmea (…). Os mesmos Amigos ouvem-nos com paciência, com ironia, disfarces, facadas ou bonacheiradas, promessas depois fáceis de não cumprir (esquecer ou iludir com outras inda mais tentadoras), fiteiros de uma figa que nos lixam na nossa máxima fraqueza ou dor como se, sim (e para dizer tudo), sim, como se a nossa queda desamparada na miséria ou no vício lhes servisse a eles, ou justificasse a eles, os auxiliasse a eles a vencer a eles nalguma coisa. Escutam. Fingem às vezes que acreditam. Com toda a compreensão.»
        «Os Amigos. Os Bambinos», Exercícios de Estilo, Estampa, 1971

          Memória, Recortes

          «Meia prostituta, meia freira»

          Como adenda ao post Outubro (7), um fragmento de Anna Akhmatova, essa «mulherzinha fanática», «meia prostituta, meia freira», «representante típica de uma poesia vazia e desprovida de ideias, estranha ao nosso povo», de acordo com as palavras públicas de A. Jdanov. Akhmatova seria excluída da União dos Escritores e proibida de publicar durante décadas. Muitos poemas seus circularam, todavia, em versões samizdat.

          Fiquei a saber como murcham os rostos
          como das pálpebras o medo assoma,
          como o sofrimento escreve nas faces
          rijas páginas de escrita cuneiforme,
          como se tornam súbito prateadas
          as madeixas ruças, madeixas pretas,
          murcha o sorriso nos lábios subjugados
          e no risinho seco tremem medos.
          E estou a rezar não só por mim, mas
          por todas que estiveram ali comigo
          no calor de Julho e no frio cruel
          junto ao muro vermelho e cego.
          (…)
          Porque receio esquecer, na morte calma,
          o ribombar dos carros negros, o estalido
          da porta odiosa, e como uivava
          uma velha, tal um animal ferido.
          Que das pálpebras imóveis de bronze
          corra, como lágrimas, derretida neve
          e a pomba da prisão arrulhe ao longe
          e naveguem lentas as naves pelo Neva.

          De Só o Sangue Cheira a Sangue (Assírio & Alvim)
          Trad. de Nina Guerra e Filipe Guerra

            História, Recortes

            Nostalgia vermelha

            ODiario.info – uma revista electrónica apostada em ressuscitar, a partir das profundezas da memória, o espectro do antigo jornal da «verdade a que temos direito» –, acaba de editar, entre outros textos igualmente delirantes, um pedaço de prosa sobre a «revolução bolivariana» que se revela bastante pitoresco. Assinado pelos editores (José Paulo Gascão, Miguel Urbano Rodrigues e Rui Namorado Rosa), tem a particularidade de afirmar, preto no branco, aquilo que muitos dos membros da sua família política pensa, ou sonha, mas não tem o atrevimento de escrever. Nele se proclama entusiasticamente que «na pátria de Bolívar avança com ímpeto uma revolução que empolga os povos da América Latina e alarma o imperialismo pela sua meta assumida: o socialismo» e se lembra que a existência de desafios durante a «transição do capitalismo para o socialismo» constituirá sempre «um ensinamento inesquecível» desse «andamento maravilhoso e dramático da Revolução de Outubro de 17». Quando falam de uns malvados «trotskistas, anarquistas e toda uma chusma de intelectuais pseudo revolucionários – os pequeno burgueses enraivecidos de que já falava Lenine» que «somam agora as suas vozes às do imperialismo para profetizar o fim da revolução bolivariana» tenho a impressão que os autores se estão a referir a alguém mas não tenho a certeza de quem seja.

              Devaneios, Recortes

              Lumière e Companhia

              Cheguei lá através do PFNews, o blogue pescador de pérolas. «Lá» é a colaboração entre 41 realizadores com o objectivo de produzir 41 pequenos filmes recorrendo à câmara cinematográfica original, tal qual a inventaram os irmãos Lumière. As três únicas regras requeriam que o filme não demorasse mais de 52 segundos, não contivesse mais de três takes e não utilizasse som sincronizado. O resultado encontra-se aqui.

                Cinema, Recortes

                Inimigos da rede

                Por causa das medidas tomadas pelo governo ditatorial da Birmânia no sentido de cortar as comunicações com o exterior, o suplemento Digital (do Público) desta semana incluiu um artigo sobre «Quando os governos preferem que o seu país fique offline». Particularmente elucidativa é uma caixa na qual se inventariam os processos utilizados em dez dos Estados cujos governos são colocados entre os piores inimigos do uso livre da Internet.

                Na base desta lista negra, encontram-se o Panamá (as centrais telefónicas conseguiram ali que o governo impedisse o acesso à tecnologia VoiP utilizada pelo Skype) e os Estados Unidos (onde o Ministério da Defesa bloqueou o acesso, nos cinco milhões de computadores dos seus serviços, a sites como o YouTube, o Hi5, o Myspace, a MTV ou o Pandora, entre outros). Subindo na escala da actividade censória, surgem países islâmicos como a Arábia Saudita, o Irão, a Síria e o Egipto. Nos dois primeiros, são invocados principalmente os conteúdos «imorais» ou «inaceitáveis», ao passo que nos outros dois são as posições políticas dissidentes as principais atingidas.

                Por último, entramos no universo do «socialismo real» supervivente, onde, para além dos conteúdos, é o próprio acesso que é severamente limitado ou totalmente impedido. A Coreia do Norte é o caso mais conhecido, pois ali só alguns altos dignitários do regime possuem acesso à rede mundial. Vem depois a China e a Bielorrússia, onde são banidos os conteúdos contendo quaisquer comentários, mesmo os estritamente privados, que possam ser desfavoráveis aos regimes vigentes. Na China, quando os acessos são estabelecidos a partir de empresas, o bloqueio pode surgir disfarçado aparecendo no ecrã uma mensagem a avisar da existência de «problemas técnicos». Para o final fica o caso de Cuba, o 2º país do mundo no qual maior número de restrições são colocadas ao uso livre da Internet e que é por vezes apontado como «modelar» no que respeita ao exercício das «verdadeiras liberdades»:

                «Apenas dois por cento da população tem acesso à Internet. E os que têm são cuidadosamente vigiados para perceber se se embrenham em actividades «contra-revolucionárias». Não há ligações privadas à Net. Os cubanos têm de se deslocar a pontos de acesso públicos, como cibercafés, universidades ou «clubes de computadores» para poderem ver o seu e-mail. Estes locais têm software instalado que faz disparar o alarme na polícia de cada vez que palavras-chave «subversivas» são escritas. De igual modo, todos os cubanos classificados pelo Estado como dissidentes ou jornalistas independentes têm imensas dificuldades em aceder à rede.»

                A propósito, leia-se isto.

                  Atualidade, Cibercultura, Recortes

                  A manhã estava bonita

                  «Estamos em Junho de 1961. No Cais da Rocha do Conde de Óbidos, em Lisboa, a multidão reuniu-se para ver partir um dos primeiros contingentes de soldados a partir para a Guerra Colonial. Há fanfarra, hino e ambiente de festa. O repórter lança-se no seu discurso, previamente revisto, onde fala da grandiosidade do império e do céu azul na partida, despedindo-se com um ‘boa viagem rapazes e até breve’. Mas o microfone da rádio, que não obedece a ordens, não conseguiu fazer calar os gritos de dor de mulheres e mães que se ouvem de fundo, ao longo de toda a reportagem.» [do Público online]

                  [audio:http://static.publico.clix.pt/docs/media/tropas.mp3]
                    História, Memória, Recortes

                    Les amis du peuple

                    Acabava de rever em DVD, muitos anos depois da primeira vez, La Chinoise, de Jean-Luc Godard. E, de repente, na pacatez da minha noite suburbana e burguesa, um monólogo que chega do passado:

                    «Sabemos que a revolução social não está ao virar da esquina e que as lutas a travar em cada momento são aquelas que o estado de consciência das massas permite. É através da luta pelos seus interesses imediatos e objectivos parciais que os explorados se unirão e organizarão para lutas superiores. Exige-se-nos um trabalho paciente, que não se compadece com radicalismos verbais. Porém, ao empenharmo-nos nessas lutas diárias, por reivindicações muitas vezes modestas, não perdemos de vista que a sua utilidade é incutir gradualmente nos trabalhadores a confiança nas próprias forças, o repúdio pela ordem capitalista, a consciência e determinação revolucionárias. São positivas as lutas que contribuem para pôr explorados e exploradores em confronto, não as que semeiam ilusões na colaboração de classes. Alertamos os trabalhadores contra a miragem de que uma espiral infinita de reformas transformaria gradualmente o inferno capitalista num paraíso socialista. Dizemos que conquistas verdadeiras só com lutas superiores podem ser alcançadas e que tudo depende de se criar um campo resolutamente anticapitalista.»

                      Cinema, História, Olhares, Recortes

                      Plagiu

                      A descoberta de sucessivas pistas de plágio no blogue pessoal de Luís Filipe Menezes não me espanta. Trata-se de uma prática muito comum no universo da política local (e não só, convenhamos), coincidente com a ausência de ideias ou a baixa densidade cultural de muitos dos seus protagonistas. Se percorrermos o país através das páginas pessoais (ou de textos reproduzidos) de algumas das suas figuras mais ou menos públicas, em inúmeros artigos de uma boa parte da imprensa regional, mesmo em intervenções públicas supostamente originais, encontraremos exemplos constantes de corta-cola-e-cala. Mas LFM não é apenas um político local, pois pretende presidir a um dos dois maiores partidos institucionais e ser primeiro-ministro de Portugal. E ou a coisa está pior do que eu pensava ou uma prática desta natureza é indesculpável, não valendo atirar agora com as culpas para as costas de um qualquer «assessor», supostamente responsável pelos sucessivos actos de cópia não declarada (assinados de facto por LFM, «autor» ou autor do blogue em causa). Numa prova académica, quando detectado, o plágio equivale imediatamente a uma reprovação (e na generalidade das escolas inglesas, por exemplo, corresponde até a uma expulsão): será que, por estes lados, as boas práticas destinadas a combater a fraude e a desonestidade intelectual não se aplicam também aos políticos profissionais? Suspeito que conheço a resposta.

                      Para quem ainda possa ter dúvidas sobre a gravidade deste tipo de acto, aqui se copia a entrada Plágio da Wikipédia em português (acedida em 22.08.2007, às 14h30, e, sendo de origem brasileira, adaptada aqui ao português europeu):

                      O plágio é o acto de assinar ou apresentar uma obra intelectual de qualquer natureza (texto, música, obra pictórica, fotografia, obra audiovisual, etc.) contendo partes de uma obra que pertença a outra pessoa sem colocar os créditos para o autor original. No acto de plágio, o plagiador apropria-se indevidamente da obra intelectual de outra pessoa, assumindo a autoria da mesma.

                      A origem etimológica da palavra demonstra a conotação de má intenção no acto de plagiar; o termo é originário do latim plagiu que significa oblíquo, indirecto, astucioso. O plágio é considerado antiético (ou mesmo imoral) em várias culturas, e é qualificado como crime de violação de direito autoral em vários países.

                      Plágio não é a mesma coisa que paródia. Na paródia, há uma intenção clara de homenagem, crítica ou de sátira, não existindo a intenção de enganar o leitor ou o espectador quanto à identidade do autor da obra.

                      Para evitar a acusação de plágio quando se utilizar parte de uma obra intelectual na criação de uma nova obra, recomenda-se colocar sempre créditos completos para o autor, seguindo as normas da ABNT, especialmente no caso de trabalhos académicos onde normalmente se utiliza a citação bibliográfica.

                        Atualidade, Opinião, Recortes

                        Geração rasca

                        Sem a repercussão do artigo de Manuel Alegre, passou quase despercebida a entrevista de António Arnaut ao semanário Visão. No entanto, desprovida do tom aparatoso e plangente de Alegre, ela parece-me muito mais pedagógica e, ao mesmo tempo, capaz de evidenciar o profundo desencanto da geração dos fundadores com os caminhos que vem seguindo o actual PS. Uma abordagem desiludida, mas de certa forma sábia, que não soa a ressentimento, assumindo o que lhe parece ser a inevitável transitoriedade da geração agora no poder. Descreve-a assim Arnaut: «É um produto das circunstâncias. Noto falta de cultura cívica. É gente sem reflexão sobre os comportamentos, a arte, a literatura e a história do nosso povo. (…) Muitos deles não têm uma ideia para Portugal, não reconhecem o país. Vivem do imediatismo, da conquista do poder. Conquistado, vivem para aguentá-lo. Esta geração vale-se mais da astúcia que da seriedade. E aprendeu os ensinamentos de Maquiavel.» Vale a pena ler a entrevista completa.

                          Atualidade, Opinião, Recortes