# Uma vaga de civismo e de razoável tolerância dominou a campanha, se a compararmos com as batalhas apocalípticas travadas em 1998 entre cruzados e sarracenos. Não se verificaram grandes cenas de peixeirada (bom, a D. Laurinda Alves não conta, pois é uma senhora).
# Existem importantes correntes de opinião e de militância cívica que são absolutamente transversais na sociedade portuguesa. Os partidos políticos começam agora a entendê-lo, ainda que possuam uma tendência inata para o esquecerem depressa. Espero enganar-me.
# Uma parte da esquerda percebeu que uma outra, que não pensa tal e qual como ela, não é necessariamente composta por traidores do povo, adeptos da mesma Igreja metodista que frequenta George W. Bush e vis serventuários do capitalismo. Óptimo sabê-lo, camaradas e amigos!
# Como era de prever, a Igreja católica começa a recuar, em termos de influência. Principalmente junto dos jovens e nos ambientes urbanos. Renascerá, como sempre, mas para isso precisará ganhar uma outra cara. Aceitar a contracepção e a educação sexual nas escolas são já pequenos passos que folgo constatar.
# O problema do aborto não desapareceu, evidentemente. Nem o combate por vidas cada vez mais dignas e autónomas. Apenas existe agora um terreno mais limpo para os enfrentar.
Parece-me inegável a forma como, tomando a generalidade dos espectadores por parvos, a RTP tem vindo a transformar as suas «reportagens» diárias sobre o referendo, supostamente imparciais, em sessões de propaganda insidiosa do não. As estratégias são diversas, sendo a mais comum a subversão da própria questão a referendar. É preciso relembrar que ninguém nos vai perguntar no dia 11 de Fevereiro se somos taxativamente contra ou inequivocamente «a favor do aborto». Mas a RTP mantém o equívoco.
Outra das manobras consiste em utilizar de forma parcial o poder da imagem. Como aconteceu com os bonequinhos em plástico, prefigurando um feto com 10 semanas de vida, que uma das piedosas organizações favorecedoras do negócio da Clínica dos Arcos tratou de mostrar ao país num assomo de sadismo e mau gosto. Ou com a repetição da imagem de uma daquelas cadeiras – com óbvio mau aspecto, como tem qualquer móvel ou utensílio utilizado em cirurgia – na qual, nas melhores condições possíveis, é possível interromper voluntariamente uma gravidez. Porque não mostram as mesas de cozinha cobertas com uma toalha de linóleo ou com folhas de jornal utilizadas vulgarmente em abortos clandestinos? Provavelmente, será essa a linguagem que entendem muitas das pessoas que irão «deitar o voto». Sim, custa-me dizê-lo, mas talvez a campanha pelo sim o deva fazer. Chama-se a isso combater o inimigo no seu próprio campo. Neste caso, vale a pena.
Em artigo no L’Espresso, Umberto Eco aborda o medo de falar, e até de rir, com o qual somos hoje confrontados. Lembra que «os tabus não são todos imputáveis aos fundamentalistas muçulmanos» – os quais, aliás, considera não brincarem em serviço no que toca à susceptibilidade –, tendo começado, antes da vaga desencadeada pelos islamitas radicais e aceite complacentemente pelos órfãos de causas do ocidente, «com a ideologia do politicamente correcto». Inspirada, como se sabe, por um sentimento de respeito para com o outro e para com todos, ela limita-nos agora na prática de um dos melhores exercícios para a aceitação da diferença. Refiro-me ao humor, aquele humor capaz de jogar com as peculiaridades, manifestas ou caricaturadas, de cada pessoa ou de cada grupo. Quem tem mais de trinta e cinco anos recordar-se-á, com toda a certeza, da forma desinibida como no princípio da década de 1980 os simpatizantes portugueses da Frelimo contavam «anedotas do Samora» de mesma maneira terna e cúmplice utilizada por um tanoeiro de Vila Pouca de Aguiar para contar «anedotas do Bocage». Hoje isso seria muito difícil sem conflitos e autocensura pelo meio. E nos EUA, o constrangimento chega ao ponto de não apenas se evitar contar piadas sobre negros, loiras, gays, lésbicas, judeus, muçulmanos ou deficientes, mas igualmente de cada um isentar de tais brincadeiras, nota ainda Eco, «escoceses, genoveses, belgas, bombeiros, varredores do lixo e esquimós» (ou inuit, para não ofender ninguém). Tratar tudo com gravidade – o que não significa, obviamente, levar tudo a sério – passa cada vez mais por medir as palavras, algumas vezes até ao limite do caricato, por desviar a conversa, omitir, ou simplesmente calar-se. Mesmo em questões de princípio, uma vez que, acima de tudo, importa nesta lógica não ferir com qualquer insinuação a condição ou os valores de quem não pensa como nós. Num mundo cada vez mais colorido pela variedade das culturas e pelas formas de mestiçagem, poderemos por um dia destes, paradoxalmente, ver-nos forçados a deixar de contar anedotas e a falar apenas de vacuidades (o tempo e o piso das estradas são temas seguros, mas já a comida, o sexo ou o desporto, não sei…). Ou então a calar-nos de vez, não vá um telemóvel – provido de gravador de voz ou de câmara de vídeo – tramar-nos bem tramados.
Sem a expectativa de uma surpresa, mas esperando intimamente enganar-me, percorri hoje as páginas oficiais na Internet do PCP e do Bloco de Esquerda. Tão empenhadas na denúncia da política americana para o Iraque, nenhuma das organizações inclui ali uma palavra sobre a execução de Saddam Hussein, sobre a infâmia absoluta da pena de morte, sobre as consequências negativas para a paz na região – e para o próprio ajuste de contas com a história – que este acto bárbaro irá inevitavelmente suscitar. Preocupadas quase exclusivamente com o seu lugar simbólico na política autárquica e na actividade legislativa, ambas mostram, também por este indício, como para além da previsibilidade das suas agendas e das bandeiras do momento habitam hoje um deserto de causas. Como outras, igualmente esquecidas ou apenas ignoradas, até a campanha pelo sim no referendo sobre o aborto permaneceu no seu discurso, durante anos, em estado de semi-hibernação. O drama é que esse deserto tem secado tudo aquilo que poderia crescer fora dele. A indignação profunda perante a iniquidade, aquela que se não pode deixar atar pela lógica da oportunidade política, da contabilidade miserável das sondagens ou da ficção do pequeno poder, vive abandonada. Este caso é apenas um indício.
Pós-nota: tomo como minhas as palavras directas do Luís Mourão
Completado o esclarecimento acerca da intenção que o Bruno, a meu ver de forma um pouco equívoca, pôs nas minhas palavras, passo agora a algumas ideias avulsas que se prendem, directa ou indirectamente, com o post dos Avatares.
Parece-me estar muito mais próximo do posicionamento do Bruno do que suposto seria diante de uma questão tão séria quanto aquela que ele coloca ao demarcar-se daquilo que eu possa ter escrito. Essa aproximação advém, principalmente, do facto de, ainda que contaminado por algumas opiniões que tendem a tornar-se mainstream no campo de uma certa esquerda, ele recusar acepções maniqueias a propósito de «bons» e «maus», de «nós» e «eles», de «ser por» ou de «ser contra». Creio, sem qualquer hipocrisia, que só a inteligência, o conhecimento e a honestidade – para mim, reclamo apenas a terceira destas características – permitem, como acontece com o Bruno, o assumir de posições complexas, bem mais difíceis de sustentar do que aquelas que identificam os pastores e orientam os seus rebanhos.
1 – Como nesta altura se terá percebido já, o «discurso do nós e eles» não o partilho, de forma alguma. Mas sei que dificilmente podemos fugir-lhe, uma vez que ele é constantemente avançado sobretudo por uma das partes da contenda (sim, trata-se de uma contenda, e bem grave). E essa parte é precisamente aquela que tomou a ofensiva. Falo, claro, do extremismo islâmico, que não me parece representar uma consequência do embate, ou um sintoma dele, mas ser antes a sua causa mais imediata (embora não a mais profunda). São precisos discernimento e coragem para escapar ao separar das águas.
2 – É inegável, ao contrário daquilo que algumas boas consciências proclamam ou que leituras posteriores têm tentado estabelecer, que o Islão nasceu historicamente como religião de guerra e o cristianismo apareceu como religião de paz (começando ab ovo pelo conhecido distanciamento do próprio Cristo em relação às intenções subversivas dos zelotas). Se a tradição islâmica viveu depois momentos de aceitação e de diálogo – o que, sem dúvida, aconteceu (pelo menos desde o quinto califa Harun al-Rachid, correspondente de Carlos Magno e senhor da ficcionada Scheherazade) – também o cristianismo conheceu, como todos sabemos, o mais atroz estado de barbárie. Mas as matrizes são distintas, independentemente das nossas vontades ou desejos.
3 – Já não sei onde se pode chegar com a recorrente exaltação do «Islão moderado». Admito que essa moderação exista, e sobretudo que existam muçulmanos sensatos e amantes da paz, pelo menos entre sectores da débil classe média dos países islâmicos e entre alguns dos seus intelectuais, mas penso que ela jaz calcada na rua pelos gritos de «Allahu akhbar!» e pela defesa intolerante da jihad como essência do Islão. E, no caso de existir, se não será a compreensão ou a mudez diante dos seus algozes o pior serviço que lhe podemos prestar.
4 – Não me parece que seja ineficaz ou incorrecta, perante o fundamentalismo, uma defesa tenaz e sem concessões de conquistas do género humano, como sejam a liberdade de culto e de opinião, o laicismo, a igualitarização da mulher, o reconhecimento dos direitos e da diferença das minorias étnicas ou sexuais. Argumentar – sei que o Bruno não o faz, mas fazem-nos alguns dos que vivem obcecados com o velho «remorso» ocidental que o marxismo fez florescer à escala planetária – que se devem «respeitar», na sua «diferença», atrocidades e violações de conquistas essenciais apenas porque elas se inscrevem numa tradição cultural outra, parece-me alguma coisa de politicamente inaceitável.
5 – O relativismo cultural permitiu, sem dúvida, grandes passos em frente, como o reconhecimento de um importante espírito de tolerância civil e religiosa. Infelizmente, deixou-se perverter pela impossibilidade de colocar limite à permissividade absoluta que, implicitamente, acabou por integrar. Gostava de saber, assim apenas num parágrafo, o que pensam os seus defensores de um diploma como a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 1948. É só uma dúvida que tenho.
Concluo estes parágrafos um tanto dispersos – embora nada vagos, e que já ultrapassaram em muito a pequena divergência com o BSM – com um citação de Samir Kassir, executado em Beirute (veja-se este post) por defender, como «desgraça árabe», a destruição de uma tradição de aceitação, que os regimes teocráticos e antidemocráticos que dominam a generalidade do «mundo árabe» se têm esforçado por apagar da face da Terra. De forma a continuarem a oprimir a grande massa de pessoas pobres, ignorantes e crédulas que dominam sem qualquer controlo.
«Enquanto resistência à opressão, [a ascensão do Islão político] resulta também do fracasso do Estado moderno e do igualitarismo das ideologias do progresso, e, neste sentido, aparenta-se à ascensão dos fascismos na Europa. Com efeito, uma vez despojados do véu religioso que os reveste, os comportamentos sociais dos movimentos islamitas apresentam muitas analogias com as ditaduras fascistas.»
Estaremos nós, aqueles a quem esta possibilidade jamais será indiferente, e ainda que pelo silêncio, ou por tacticismo, dispostos a pactuar com essa emergência?
Nos Avatares de um Desejo o Bruno Sena Martins leu-me de uma forma que merece um reparo. Aproveito a boleia para algumas reflexões complementares.
Começo pelo reparo. O Bruno deixa implícito que uma pergunta minha, introduzida num texto com funções retóricas, corresponderia, explícita ou implicitamente, a uma posição pessoal. Essa pergunta definiria uma certa cumplicidade com aquele que teria sido o gesto de «coragem» materializado por Bento XVI na lição de Ratisbona.
Relendo-se com atenção a frase sublinhada – «Terá sido então um acto de coragem, uma forma de enfrentar o recuo das democracias perante um lado do Islão que exige cada vez mais, que aspira ao pagamento do tributo e à humilhação do infiel?» – parece-me claro que o futuro do indicativo, seguido de uma interrogação, coloca uma possibilidade, não produz uma afirmação. Porém, importam-me mais outras coisas que o Bruno diz no seu comentário.
Não vou fazer aqui considerações sobre a forma como considero a figura de Ratzinger ou a identidade profunda de um Islão que ele pretenderia, de acordo com as leituras apressadas feitas por alguns dirigentes islâmicos, diabolizar e combater. Aquilo que o papa fez – leia-se, na íntegra, a tradução de «A Fé e a Razão» que saiu ontem na edição portuguesa do Courrier International – foi, de facto, algo que teve muito menos de enfrentamento do que de recolocação, embora de forma conservadora, da necessidade imperiosa de um diálogo de religiões.
Bento XVI, que jamais pretendi «defender» – aliás, nem católico sou, e muito menos «ratzingueriano» – argumentou ali, principalmente, contra a impossibilidade da conversão pela violência, afirmando que «agir de maneira não racional é contrário à natureza de Deus». Se tal contraria alguns princípios corânicos, ou algumas intenções actuais dos islamitas, isso já é outra questão. No exercício das suas funções, aparentemente, o papa pode não ter sido oportuno. Mas lendo com rigor aquilo que ele disse, parece-me um texto coerente com uma posição não-defensiva, por parte da Igreja católica, perante a agressividade que, como o Bruno reconhece, transparece de certas leituras, actualmente dominantes, dos textos corânicos. Como gostava de dizer um velho professor meu, «são dois mil anos de manha».
A «perigosa deriva civilizacional de confrontação totalizante», da qual sou acusado, não estava, pois, presente no meu texto. O meu ponto de vista é muito mais equilibrado – como, embora diferente, me parece ser também o do Bruno Sena Martins – e isso pode ser percebido em outros textos que aqui tenho escrito sobre o problema do confronto que tem vindo a ser requerido pelo islão «fundamentalista» e ao qual, em regra, o «ocidente» tem respondido de forma atabalhoada e quase sempre profundamente criticável.
Neste caso, teria preferido que a frase citada tivesse sido aquela com a qual fechei o parágrafo onde se encontrava a interrogação: «No fundo, aquilo que me importou não foi propriamente o que disse Bento XVI, os motivos pelos quais o disse naquele lugar e naquele momento, mas antes a tenebrosa consideração de ele não ter o direito de o dizer.»
Num comentário aparecido no Esplanar sobre a breve conversa que por interpostos blogues tenho mantido com Luís Mourão, Carlos Leone faz notar que ela enuncia um «desentendimento incurável, mas amigável». E liga esta benignidade com aquilo que pode, de facto, ser essencial: tal é possível apenas por seremos, não se sei ambos, «não-crentes». Talvez seja verdade no que me toca: os amigos católicos – não me dou com muçulmanos, juro sobre qualquer livro que apenas por uma sucessão de acasos -, mesmo os mais tolerantes, «progressistas» (como se lhes chamaria noutra época), cultos e afáveis, deixam-me sempre de pé atrás. Quando, por um descuido da fala, digo alguma coisa que lhes toca o santo dos santos (há dias disse a um que considerava ter o actual papa «uma insuportável voz de padreca», o que é uma triste verdade), capto então, por uma fracção de segundo, um olhar que me deixa gelado. Só entre os não-crentes consigo, de facto, dizer aquilo que me vem à cabeça a propósito do sagrado sem qualquer recriminação.
Temo-nos servido desta conversa, Luís Mourão e eu, não para opor ideias, mas como pretexto para discorrer sobre as nossas. Julgo que ambos entendemos as razões do outro, como sabemos que ao privilegiar-se uma forma de abordar os textos e as ideias, jamais se exclui a seguinte. Por isso, que posso fazer senão concordar uma vez mais com ele quando se diz «contra a estupidez das ideias feitas e das vidas vividas por imitação»? Ou apoiá-lo de novo quando recorda, a quem ande um pouco distraído, que toda a leitura é única? Só que se trata aqui do acto de ler, de decifrar, não da acção de papaguear imposta aos simples para lhes domar os impulsos e os conduzir à acção alienada. E o papagueamento existe, rodeia-nos, ameaça-nos, e, por muito que nos repugne, não o podemos ignorar. Porque, entre outras coisas, é sobre ele que se fundam os poderes que nos submetem e a incapacidade para os contrariar. E porque o seu ruído nos pode levar ao silêncio. Daí o interesse que mantenho, procurando estendê-lo a outros – a começar pelos que têm o dever de ouvir-me… – por essa forma activa de sobrevida em estado cataléptico.
«O antiamericanismo só acaba com novo presidente.» A frase foi pronunciada por Bill Emmott, antigo director do The Economist, em entrevista que a Visão publica hoje. A afirmação pode ser lida de três formas que se não sobrepõem necessariamente. A primeira é como boutade, antigo costume de privilegiados, transformado em hábito neste tempo de verdade tão fugazes que o quer que se diga tem sempre o álibi de ter sido dito num contexto que a seguinte realidade torna incompreensível. A segunda será mais linear: Emmott deixa implícito que o relacionamento formal dos EUA com a União Europeia e a generalidade do mundo, neste momento tão frágil nas expectativas, poderá mudar se uma figura mais cordial e inteligente puder ajudar a demolir o estado de exasperação a que conduziu – ele não diz isto, mas fica implícito – o convívio com o rústico George e a repulsiva madame Condoleezza.
A terceira forma reporta-se, porém, a um problema que se não pode resolver com um simples delete. A América, pelo que representa na ordem mundial, pelo lugar ainda ocupado pela poderosa máquina industrial, financeira e militar de que dispõe, pela agressividade da sua elite dirigente – mas também, e muito, pela intervenção da história de intervenções estúpidas e desastradas – permanecerá, por muito tempo, com lugar reservado enquanto Grande Satã. Do qual continuam a precisar – para usar uma frase vulgar e certeira, «como de pão para a boca» – os todos os maniqueus da religião e da política. Como se sabe, estes carecem sempre de um inimigo sólido, capaz de ampliar as suas capacidades, de camuflar as suas hesitações, e, acima de tudo, de desenhar uma luta essencialmente comum. Da frente antiamericana não se esperam assim grandes novidades: seja qual for o rosto do momento na peanha da Casa Branca, o comum objecto de ódio jamais aceitará humilhar-se. E o impasse irá servindo a uns e aos outros.
Duas notas sobre o que diz Luís Mourão a propósito de «Caricaturas – Parte 2». Claro que um papa da igreja romana não afirma aquilo que este afirmou independentemente do seu lugar. Poderíamos dizer que foi um impulso, um repente, um instante de pathos determinado pela emoção do reencontro com o lugar do erudito e do professor que fala ex cathedra. Mas não o creio: quem é dado a repentes não chega tão longe entre sotainas e cabeções, não assoma com aquele à-vontade e trajado de branco às janelas do Vaticano. Terá sido então um acto de coragem, uma forma de enfrentar o recuo das democracias perante um lado do Islão que exige cada vez mais, que aspira ao pagamento do tributo e à humilhação do infiel? Estranho, num sucessor de Pio IX, inspirador do infame Syllabus. Nunca saberemos se assim foi, pois Ratzinger jamais escreverá as suas memórias, e parece-me tão legítimo considerar a segunda hipótese quanto a primeira. No fundo, aquilo que me importou não foi propriamente o que disse Bento XVI, os motivos pelos quais o disse naquele lugar e naquele momento, mas antes a tenebrosa consideração de ele não ter o direito de o dizer.
A segunda parte do apontamento requer um exame menos apressado. Conto voltar ao assunto. Para já, apenas uma nota: LM parece-me ter, talvez por sensibilidade, ou por formação, ou por escolha, ou por tudo isto junto, um interesse particular no desdobrar dos textos, no encontro do «simples» dentro do que parece impenetrável, na multiplicidade de leituras de uma frase que na aparência parece ao vulgo como linear e absoluta. Trata-se de uma escolha que quase sempre me agrada, embora me custe aceitá-la como a única legítima, mesmo que possa ser a mais completa. Tenho-me interessado cada vez mais – observando a capacidade que o processo tem de imprimir vida útil a determinados textos – justamente pelo inverso. Pela transformação de proclamações literais em imperativos. De ideias gerais em correntes de opinião. De vulgatas – recordo uma daquelas que mais influenciaram o nosso comum destino: O materialismo dialéctico e o materialismo histórico, de Josif Vissarionovitch Stalin – em programas ou filosofias de vida. Sejam elas amáveis, apenas perturbantes, ou, como me parece ser o caso, meu deus, assassinas.
Nesta controvérsia, a propósito das palavras de Bento XVI na Universidade de Ratisbona, somos nós os verdadeiros ofendidos. Aplicando-se este «nós», bem entendido, a todos os que defendemos o carácter absoluto e inalienável das liberdades de opinião e de expressão. Neste caso, no terreno do debate teológico e filosófico. E, de uma forma geral, no da reflexão académica.
Lendo o discurso – que pode ser encontrado aqui – afigura-se óbvio que o papa utilizou palavras de Manuel II Paleólogo como citação erudita, num texto especulativo a propósito das relações entre fé e razão. O teólogo, e último imperador independente de Constantinopla, escrevera também, e Bento XVI citou-o nestes passos, que «a fé é fruto da alma e não do corpo», que «aquele que levar alguém à fé deve ser capaz de pensar bem e pensar justamente sem violência nem ameaças», e ainda que «para convencer uma alma razoável, não temos necessidade do seu braço, nem de armas». Paleólogo adiantou igualmente, e na sua especulação Ratzinguer limitou-se a citá-lo, que Maomé trouxe «o mandamento de defender pela espada a fé que ele pregava». Mas precisamente para contrariar a justeza desta ideia. É que basta folhear o livro sagrado do Islão para se constatar que, independentemente de outras acepções da exegese corânica, esta ideia se encontra de facto ali: «Matai aqueles que não crêem em Deus, nem no Dia derradeiro, aqueles que não consideram proibido o que Deus e o Seu Profeta proibiram, aqueles de entre os homens do Livro que não professam a crença da verdade», proclama o Corão, que sublinha a necessidade de ser tal acto levado às últimas consequências, sem qualquer piedade dos adversários, até que estes «paguem o tributo, todos sem excepção, e fiquem humilhados» (Sura Nona, 29). Não faz qualquer sentido negar o preto no branco.
É claro que, neste campo, a tradição da Igreja católica tem enormes telhados de vidro. Ratzinguer sabe-o bem e, pelo seu percurso de vida, nem é daqueles que mais contestam a tradição de intolerância e violência que a Santa Sé foi aceitando ou promovendo. Mas é claro também aquilo que, em mais este caso, pretendem os manipuladores da «rua islâmica» (como, entre nós, chamou Pulido Valente aos que sob condições de opressão e indigência cultural se deixam facilmente manipular por qualquer mulá mais exaltado). Querem «apenas» que as citações da tradição cultural da humanidade que possam ser consideradas inconvenientes para os seus propósitos e o seu proselitismo sejam rasuradas, omitidas, apagadas. E, acima de tudo, não querem perder mais um pretexto para incendiarem as praças, reforçando a indiscutibilidade do seu poder e aproximando-se um pouco mais das suas metas.
P.S. 1 – Sugiro ainda a leitura de um post recente do Luís Januário.
P.S. 2 – Admito que a intervenção de Bento XVI possa ter sido «pouco diplomática», e aparentemente estranha, no contexto da habitual prudência vaticana. Mas o que está em causa é bem mais grave que os contornos de uma eventual gaffe.
Apareceram no blogue Branco Sujo alguns posts, reunidos com o título comum «INDYvagações amadoras sobre Imprensa», a propósito do fim do Independente e da importância desse jornal na imprensa (e na sociedade) portuguesa dos últimos vinte anos. Sublinho algumas ideias que me interessaram mais.
Dizendo estranhar que na sua área política, com pouquíssimas excepções, se não tenham apercebido daquilo que o semanário trouxe de novo, José Quintas afirma ali que «dessa ignorância resultou a aceitação generalizada que o discurso típico da esquerda é aborrecido, escrito de modo seco, limitado à enumeração inócua dos pés de barro do capitalismo». E adianta: «Admita-se publicamente: há muito mais pessoas conotadas com a direita a escrever bem». Para depois acrescentar: «Para quem detém um edifício ideológico coerente (…), a ‘graça’ pode parecer ‘graçola’ inconsequente de miúdos’», lamentando ainda que «a esquerda, de um modo geral, nunca tenha entendido essa particularidade da natureza humana». São afirmações que me parecem lúcidas, mas levantam questões difíceis de tratar em três ou quatro dúzias de linhas. Ficam pois algumas anotações, com a intenção de voltar ao assunto.
Reconheço também o facto do discurso-padrão da esquerda ser, por via de regra, não só desprovido de humor como militantemente resistente a quem tente perturbar esta orientação. Existe uma base histórica para este facto, uma vez que ele parte da tradição de um verbo protestativo, que fala em nome do injustiçado, do sofredor, do oprimido – herdeiro de um outro, recolhido no romantismo, que falava em nome do «homem» e da história – e que não tem motivo algum para se rir deste (e neste) mundo. Produziu-se, desde o início, um «fundamento de classe» que determinou a aridez da fala matricial da esquerda. A grande dificuldade em superá-lo mantém-se na mesma medida em que também se verifica, por parte desta, uma enorme dificuldade em superar a tradição das suas experiências, mesmo as mais negativas, que sempre se fundaram na consideração de uma escusa ao combate «em estado de ódio» como forma de traição. Entre nós, a linguagem do PCP funciona como testemunho duradouro desta característica, mas a fala, principalmente a mais recente, do Bloco de Esquerda, não me parece substancialmente diferente. E até a generalidade dos «independentes» situados à esquerda a conserva no essencial. Mesmo no interior do pequeno universo dos blogues, naturalmente mais aberto a alguma desenvoltura nas ideias e nas maneiras de falar.
A constatação de que existe agora um número maior de pessoas conotadas com a direita a «escrever bem» põe outra hipótese que parece fazer todo o sentido. Principalmente, porque tempos houve, há três ou quatro décadas atrás, nos quais a direita era um deserto de ideias mais do que gastas, de linguagens esclerosadas, de fortes bloqueios, enunciando os seus discursos um certo agastamento, e uma clara incompreensão, em relação às transformações profundas que ocorriam no mundo. Quase todos os melhores escritores, os jornalistas mais capazes, os artistas mais originais, as pessoas mais cultas, activas e optimistas, integravam-se então – em Portugal era essa, sem dúvida, a tendência dominante – inequivocamente na área da esquerda. Hoje, porém, a esquerda continua a pensar-se essencialmente a mesma, continuando tolhida na posição meramente defensiva do discurso exclusivo do protesto – apenas temperado, ocasionalmente, por alguns sinais de marketing eleitoral – sendo por isso facilmente ultrapassada por sectores menos complexados, por vezes conotáveis de facto com uma certa «direita», que passaram as últimas duas décadas a reformular as suas causas, a ensaiar uma nova língua para as enunciar, a transportá-la sem complexos por todos os meios de comunicação, incluindo-se neles, e com um grande peso, a Internet.
A resistência «tenaz» da esquerda face a uma criatividade sem entraves, que passe pela falta de humor, pela fuga ao uso da ironia, pela desconfiança diante da dimensão lúdica do acto de comunicar, é uma das peças obsoletas de um discurso dirigido a um «grande ghetto» e que, por isso, dificilmente rompe o isolamento (acto no qual, por vezes, nem interessada parece estar). Reduzindo – tal como, inversamente, o Independente dos melhores tempos o demonstrou pela positiva – as vias de empatia com sectores sociais cultos e informados, que já não partilham de uma consciência essencialmente colectivista e sofredora da vida e do próprio combate social. A direita, com muito menos traumas e complexos, vai aproveitando.
Deixei aqui um pequeno texto no qual afirmava que o impacto local do renovado ambiente da cultura popular, ou «de massas», internacionalmente definida ao longo dos vinte anos que duraram os sixties, preparou – apoiado sobretudo na juventude estudantil, nas novas gerações de profissionais liberais e numa classe média urbana em expansão – um clima de rejeição do regime que veio a cair em Abril de 1974. Outros textos, aparecidos essencialmente em blogues, têm entretanto levantado a questão em idênticos termos, ainda que com nuances naturais na abordagem de uma realidade da história das últimas décadas que, sobretudo por ter grande parte dos seus actores ainda vivos e atentos, e também por dela ainda se recolherem as ondas de choque, permanece bastante quente. Surge hoje no Público um texto, assumido como resposta à tendência interpretativa que tem dominado esta polémica, no qual o dirigente do PCP Vítor Dias recoloca a questão em termos muito diferentes daqueles que anotei.
Desde já uma ressalva. Ao contrário do que infere VD, nenhum dos textos sobre o assunto que eu tenha lido – nem mesmo o inaugural de Vasco Pulido Valente, pelo que se vê saudavelmente provocador – desvaloriza aquilo a que ele chama «a luta popular e democrática». Vinda de muito antes, esta continuou, à margem de modas e epifenómenos, no meio da dura repressão salazarista, mas também das purgas internas e das reviravoltas tácticas, a ser essencialmente organizada pelos comunistas, tendo sido pautada por iniciativas, sobretudo de natureza reivindicativa, que procuravam combater, sempre na expectativa de um amanhã melhor, as injustiças e as desigualdades instaladas na sociedade portuguesa. Ela foi essencial, sem dúvida, para a redução de muitas arbitrariedades e para a afirmação de uma resistência que chegou ao poder após o 25 de Abril e que viveu depois, em liberdade, a instalação da democracia representativa. Nada disto parece questionável ou foi sequer questionado.
Já o mesmo não posso dizer em relação ao que se passava no tal universo urbano habitado por uma juventude com anseios radicalmente novos e por uma classe média sedenta de autonomia, ambas crescentemente adversas às práticas do regime e ao seu código de valores. VD, ao dizer, com o objectivo claro de relativizar a importância deste sector nos processos de mudança, que na época «os estudantes universitários andavam por 30.000 ou pouco mais», o que é verdade, faz por esquecer de que se falou de um arco temporal de cerca de 15 anos, e que, durante todos esses anos, a multiplicação de estudantes e ex-estudantes, portadores de uma experiência de oposição cultural e vivencial, ter-se-á ampliado, no todo, a várias centenas de milhares de pessoas, às quais podem ainda associar-se, frequentes vezes, muitos dos seus familiares, os amigos chegados, os conterrâneos… Por outro lado, o lugar deste amplo sector, numa altura em que a dinâmica social fazia recuar o peso dos operários e dos camponeses – que integrariam prioritariamente a «luta popular» da qual fala VD – era de um cada vez maior destaque, na definição de comportamentos de natureza anti-disciplinar tal como na organização dos processos de mudança. Estou em crer que o próprio regime o acabava por reconhecer, ao mostrar-se incapaz de reprimir a contestação ou as iniciativas de resistência desses sectores com a mesma inflexível brutalidade com a qual, anteriormente, reprimira a luta operária, as revoltas campesinas ou a dissidência intelectual.
Um livro de entrevistas, feito a activistas estudantis da época, que organizei em conjunto com Maria Manuela Cruzeiro e que estará muito em breve disponível (Anos Inquietos. Vozes do Movimento Estudantil em Coimbra (1961-1974), ed. Afrontamento), mostra documentalmente, com razoável clareza, a emergência dessa noção, geracional se se quiser, de uma incontornável desafectação em relação ao Estado Novo, a qual nasceu, para quase todos os seus actores, como experiência natural de resistência a um poder que viam como caduco, injusto e fora do seu tempo. A militância partidária, nos casos, muitos, em que aconteceu, ocorreu sempre razoavelmente depois dessa tomada de consciência e dessa predisposição para se afirmarem como sendo «do contra». Incluindo – sublinho isto – aquela que aconteceu dentro do próprio movimento estudantil.
A «festa», a ruptura pelo lado da vivência do quotidiano, da sensibilidade, da estética, da experiência individual, que, hoje como ontem, aqui como noutras partes, incluindo na Paris ou na Praga de 1968, os comunistas essencialmente desvalorizaram e desvalorizam – utilizando-a apenas como chamariz de alguns sectores juvenis incapazes hoje de viverem sem ela – não significava, como VD insinua e como Álvaro Cunhal deixou claro no texto sobre o «radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista» com o qual, em parte, pretendeu riscar de alto a baixo o livro Maio e a Crise da Civilização Burguesa (publicado em 1970 por António José Saraiva), um néscio alheamento da realidade. Mas antes uma reacção natural perante um mundo que ruía sem que se percebesse muito bem que outro mundo dali poderia emergir. Coisa que a «ideologia da classe operária», bem como os seus presumíveis oficiantes, jamais serão capaz de abarcar ou simplesmente de aceitar.
VD conclui o texto, afirmando, para diminuir o valor dos testemunhos daqueles que interpretam aquele passado mais a partir da sua experiência vivida do que das cartilhas que lhe pretendem atribuir um sentido meta-histórico, que «o nosso umbigo é o pior e mais limitado horizonte para conhecer o país, a vida e a sua história». Eu poderia dizer a mesma coisa, ainda que, a partir das conquistas do vocabulário político da geração de 60 – que, ao contrário de Vítor Dias, não coloco entre aspas – o prefira fazer com palavras menos previsíveis.
O rendimento médio per capita é, no Líbano, de cerca de 3.700 US dólares anuais. Um número muito grande de libaneses ganha, pois, muitíssimo menos. Os pagamentos feitos pelo Hezbollah aos milhares de famílias xiitas que perderam as suas casas durante os bombardeamentos israelitas, destinados a que estas possam pagar a reconstrução ou o seu realojamento, varia entre 10.000 e 12.000 dólares, entregues de imediato e em cash, nas conhecidas notas verdes com um retrato de George Washington. Calculo que, de acordo com algumas teorias circulantes a respeito da condição de «movimento de massas» do «Partido de Deus», se considere que tais somas resultem de uma extraordinária capacidade de solidária liquidez da parte dos militantes islamitas e das populações que dizem representar. Existe também quem acredite ainda no Pai Natal. Ou, em versão melting-pot, quem afirme a pés juntos que Elvis Presley há-de regressar numa manhã de nevoeiro. Há crenças para tudo.
Ainda sobre Cuba, vale a pena ler este texto de Elísio Estanque, escrito depois deste outro artigo – absolutamente revisionista na relação com a história recente de um certo lado da esquerda, mas que, para já, parece ter passado algo despercebido – publicado na revista Visão por Boaventura de Sousa Santos. Talvez um pouco mais agreste, mas não menos questionador, veja-se também este eco. O silêncio a propósito do tema que se nota na generalidade dos blogues ditos «de esquerda», sempre prontos a questionarem as vozes independentes (por vezes até mais, e com maior virulência, do que aquelas que chegam da margem direita), não deixa de ser coerente. E lamentável.
Stalin Martínez, irmão de Lenin e Lenina Martínez, estomatologista no romance Conta-me coisas de Cuba, do exilado Jesus Díaz, viveu uma situação que o levaria ao desespero e à fuga da ilha. Pepa, a velha ventoinha Westinghouse, avariara-se irremediavelmente, deixando-o, sem dinheiro ou influências para conseguir uma nova, confinado ao calor constante, insuportável, de um quarto solitário em La Habana.
Confunde-nos a variedade de metáforas negativas usadas por muitos escritores cubanos para se referirem ao habitat que conformou as suas vidas, deslocando o mal-estar para relatos aparentemente laterais. Karla Suárez insiste na mudez como veículo expressivo e como processo de compreensão do mundo em redor (Os Rostos do Silêncio). Zoe Valdés aborda a sobrevivência esgotante, sem horizontes, daqueles que não procuraram o exílio (O Nada Quotidiano). Pedro Juan Gutiérrez transforma o sexo obsessivo numa cadência que exige concentração de energia, que esgota, não deixando espaço para o pensamento e para a vida social (na Trilogia Suja de Havana, sobretudo). Daína Chaviano, ergue universos mágicos numa cidade arruinada, sobre vidas com senhas de racionamento, filas, polícia política, ininterrupta propaganda oficial (no ciclo La Habana Oculta). Nem os mais obstinados na negação do manifesto podem ignorar a forma como o relato ficcional da Cuba contemporânea – o relato do dissídio, naturalmente – descarta a vivência colectiva de praças e reuniões, a propaganda visível nos outdoors do regime e em folhetos para turistas.
Cuba: Imagens & Testemunhos (2002), um álbum organizado por João Vilar e Alfredo Duarte Costa, é diferente. Alinham-se fotografias e relatos do que da ilha, da sua vida e do seu futuro pensam (ou dizem) figuras como Maria Barroso, Jorge Sampaio, Luís Represas, Rui Veloso, Américo Amorim, Pedro Lamy, Miguel Urbano Rodrigues, Edite Estrela, Eusébio, entre outros nacionais e alguns estrangeiros inseridos na conexão cubana (como o cardeal D. Jaime Ortega ou a obrigatória Aleida Guevara). As imagens são belas, revelando tipos únicos na paisagem luminosa em cinemascope, numa espécie de pobreza limpa e honrada, numa decadência de charme que nos habituámos a reconhecer. Os textos não passam do lugar-comum, do elogio previsível, numa justificação pela negativa – a crítica do bloqueio americano, a resistência do regime apoiada em palavras esvaziadas do sentido original (como rebeldia ou revolução), o bricolage como arma dos necessitados – daquilo que, fora dos meios de comunicação estritamente controlados, é um país sem a marca de projectos mobilizadores. Vivendo um quotidiano que apenas para os estrangeiros, e mais moderadamente para alguns naturais mais humildes sitiados pela propaganda, parece marcado ainda pelo júbilo. Pedro Lamy, o piloto de automóveis, fascinado, como seria de prever, pelos Pontiac e Chevrolet «que se mantêm como novos», fala da gente que aos seus olhos «vive num constante momento de alegria e boa disposição». Miguel Urbano Rodrigues, histórico da mais impoluta ortodoxia comunista lusitana, adensa a ideia, tratando os cubanos como semi-heróis homéricos, capazes, na paisagem devastadora de uma «crise global da civilização», de afirmarem uma inigualável «atmosfera marcada por intensa alegria de viver».
Observando à distância, afinal que outro estado de espírito deveríamos presumir num povo que conhece uma inflação próxima do zero, a quase completa literacia, um sistema de saúde gratuito e razoavelmente avançado? Que outra sensação poderia legar ao turista o perfume adocicado dos inigualáveis charutos, o calor contagiante das pessoas, a sensualidade dos corpos, a omnipresente música tão característica da casa comum caribenha? Elementos dispersos de uma mitografia da felicidade erguida também sobre a herança do lugar privilegiado que a Cuba revolucionária tem ocupado, em particular na Europa e América Latina, no imaginário da esquerda ocidental.
2.
Após a tomada do poder pelos insurrectos da Sierra Maestra, os tropos que integravam a sua gramática fundadora – revolução, rebeldia, anti-imperialismo, colectivização, socialismo – foram afixados nas paredes, proclamados diariamente, ampliando uma simpatia mais imediata do que aquela que se poderia sentir pelos distantes, previsíveis e nada modelares aparatchiks moscovitas. E ainda que Cuba tenha rapidamente começado a copiar o modelo centralista das «democracias populares», tal não fez diminuir, mesmo na área da social-democracia, e principalmente entre os intelectuais e alguma juventude, o «tropismo cubano» manifestado perante um regime dotado do fulgor impossível de vislumbrar nos desfiles rituais diante do Kremlin. Imagem ampliada ainda pelo efeito carismático de políticos sem rugas, possuidores de um estilo novo, directo, rebeldes com causa desprovidos dos maneirismos e da linguagem estereotipada dos estadistas da época. Sartre, de visita logo em 1960, sentiu-se imediatamente seduzido pela «lua-de-mel da revolução», vivida num clima de aparente euforia geral. Foi essa a atraente Cuba – do Che, de Cienfuegos, de Castro, cuja conjunção a verdadeira história rapidamente separaria – que, entre muitos outros jovens e menos jovens de todo o mundo, então procurou Annie, a romântica única filha do major Silva Pais, último director da PIDE, «portuguesa na revolução cubana» recordada no romance-livro de memórias de José Fernandes Fafe.
Mas nada disto transparece na palavra dos actuais escritores e exilados, para os quais a expressão da tristeza é inevitável. Guillermo Cabrera Infante, ex-companheiro de Fidel, sentiu, por isso, a necessidade de escrever a crónica pessoal de uma cidade aberta, sonora, plural, que fora a da sua infância, adolescência e parte da idade madura (Havana para um Infante Defunto). A descrição da opressão, feita pelos numerosos dissidentes – nem todos eles iguais, nem todos «canalhas» e «criaturas da CIA», como pronunciam os epígonos do regime e os seus bajuladores – já fazia notar esse distanciamento. Lê-se Antes que Anoiteça, autobiografia impressionante, indesmentível e indesmentida, do suicidado Reynaldo Arenas, guerrilheiro castrista aos quinze anos de idade, assumido gay, e percebe-se como o regime procurou conter, normalizar a criatividade sem limites, o sentido do risco e a paixão da desordem, a busca da beleza e o frisson da perdição, tudo fazendo para submeter os comportamentos culturais e o viver comum às «metas da Revolução» definidas, sem recurso algum, no estreitíssimo conclave do partido único.
No conto «Delito de dançar o Chá-Chá-Chá» (incluído na colectânea É Tudo um Jogo de Espelhos), é ainda Cabrera Infante que coloca uma poderosa interrogação face a uma futilidade: que fazer socialmente com esta dança que teve «a desgraça de o seu nascimento coincidir com a ditadura de Batista» e, por isso, «como a poesia hermética, como o jazz», se tornou culpada de uma alegria ilegítima e decadente? A revolução distinguirá por tempo demais – aproxima-se agora do meio século de sentido único – o bom do mau, o justo do injusto, o conforme do disforme, e, também por isso, toda a diferença em relação a um hipotético padrão de perfeição é condenada.
Não surpreende assim o número considerável de intelectuais – jornalistas, escritores, professores, artistas plásticos, cineastas, fotógrafos, músicos, estudantes – envolvidos com o universo da oposição. Ou que fazem por viver a sua vida à margem dos favores e das sugestões do regime. Recorrentes vagas repressivas têm empurrado para a proscrição, o cárcere ou o paredão um conjunto de pessoas, diferentes sem dúvida nas motivações e formas de agir, unidas pela recusa do único, fonte dessa imensa tristeza produzida pela ausência de um lugar para o exercício descomprometido da diversidade. E nem mesmo um escritor em relativa paz com o governo, como Lisandro Otero, Prémio Nacional da Literatura de Cuba de 2003, se eximiu, no discurso pronunciado quando da entrega do galardão, de deixar implícita essa carência, essa insatisfação: «Se não se tomam medidas restauradoras a paixão converte-se em rancor, o entusiasmo torna-se indiferença, a fé é destruída pelo cepticismo. Não obstante, há que continuar alentando sonhos». Do que falava afinal Otero?
«Morre-se de nostalgia em Cuba», afirmou Karla Suárez numa entrevista publicada pelo Diário de Notícias. É provável que sim. Não a nostalgia do miserável passado pré-revolucionário, sobrevivente na memória da geração que o conheceu ou nos manuais de história concebidos como hagiografias. Mas, é legítimo suspeitá-lo, a dessa alegria perdida que apenas a liberdade sem adjectivos, incandescente, pode trazer.
[retomando…] Como se sabe, é nas ocasiões difíceis que se mostra o melhor e o pior de nós. As emoções tolhem-nos então a consciência, falamos sem controlar as palavras, gritamos juras que reconhecemos logo serem um pouco exageradas. Diz o povo que «é do vinho!» Nessas alturas, é necessário aplicar um esforço suplementar para se evitar que o mais fundo de nós – os fantasmas, as raivas, os desejos, as expectativas – tolha os nossos actos. Infelizmente é isto que acontece com muitos dos «argumentos» de uma esquerda quase exclusivamente orientada para um espaço mítico cujos reflexos reverbera sem pensar duas vezes. O resultado é, para além do espectáculo triste de uma esclerose exposta em público, a oferta de argumentos aos sectores neoconservadores, cedendo-lhes o espaço de manobra que fora historicamente da esquerda e lhe facultara, durante décadas, a afirmação de uma efectiva superioridade moral.
Recorro, para ilustrar esta situação, a dois extractos da crónica de Constança Cunha e Sá saída no Público de hoje (citações algo longas mas necessárias): «A esquerda, naturalmente, depois de perder o seu “sol na terra” e de ter assistido à destruição sistemática dos seus principais mitos, descobriu no antiamericanismo primário, não só a sua grande bandeira, mas principalmente o seu último (e único) combate. Falhada a gloriosa aventura do comunismo e desfeitos os sonhos da ideologia, resta à esquerda aprender a viver num mundo que a contraria e escolher um inimigo que lhe restitua a identidade perdida. O resultado deste duvidoso exercício é conhecido: um delírio teórico que despreza a realidade e um moralismo sem moral que leva à defesa dos pobres e dos oprimidos e ao elogio de regimes que sobrevivem (e sobreviveram) à custa de uma imensidão… de pobres e de oprimidos.» Mais adiante, CCS refere-se a Miguel Portas, criticando o facto de este ter andado «pelos bairros destruídos de Beirute de braço dado com os heróis do Hezbolah», e lembrando que «este seria prontamente liquidado, se fosse exportado para o Irão, o principal patrocinador dos seus corajosos “resistentes”». E acrescenta: «Mas não é isso que impede este defensor da igualdade entre os géneros, dos direitos dos homossexuais e da separação entre o Estado e a Igreja de apoiar implicitamente um regime teocrático que se distingue pela violência com que trata as mulheres e pela intolerância fatal que nutre pelos homossexuais. O antiamericanismo militante, potenciado pelos erros da Administração Bush, supera qualquer tipo de incoerência e junta, na mesma causa, os mais improváveis parceiros.» Não havia necessidade de dar assim o flanco.
Publiquei há cerca de 5 anos uma pequena crónica sobre a questão do «antiamericanismo como dogma» [ver nota no final deste post], o qual justifica actos espúrios como aquele corporizado por MP (pessoa que prezo como sinal animador, espero que para continuar, de uma «esquerda que pensa» prospectivamente). Não sendo suspeito de simpatias para com as políticas de Bush, gostaria, todavia, de deixar à reflexão algumas palavras de Jean Baudrillard escritas há cerca de duas décadas atrás: «Não consigo deixar de achar que este universo completamente apodrecido de riqueza, de poder, de senilidade, de indiferença, de puritanismo e de higiene mental, de miséria e de desperdício, de vaidade tecnológica e de violência inútil, tem ar de manhã do mundo. Talvez por o mundo inteiro continuar a sonhar com ele, enquanto ele o domina e o explora.» Talvez, acrescento, por, antes ainda da revolução jacobina, ter nascido ali a «erva daninha» da melhor liberdade.
A esquerda que não integrou completamente a lógica neoliberal do sauve qui peut precisa reflectir sobre isto. Como atitude democrática, solidária e construtivamente utópica sobreviverá à usura do tempo e a esta dramática perda de capacidade para compreender o mundo de forma dinâmica e preparar os processos de mudança. Espera por uma refundação que, como todas as refundações, implica a observação dos alicerces e a eclosão de uma série de explosões. Gostaria que não fossem necessárias também umas quantas implosões.
No último número do Courrier Internacional, o dossier «Líbano: escrevem os intelectuais» integra testemunhos de escritores de Israel, da Síria, do Iraque e do Líbano. Todos eles procuram, com o êxito possível, permanecer lúcidos debaixo do fogo da artilharia e do rumor dos brados da rua. Natural de Beirute, Wajdi Mouawad – não interessa esclarecer aqui em que família nasceu ou a que deus é suposto orar – conclui a sua colaboração com um grito de dor que deveria ser ouvido por todos aqueles que se apressam a colocar o bem e o mal inteiramente de um dos lados. «O que é aterrador não é a situação política», diz ali Mouawad, «é a ratoeira em que a situação nos coloca e nos obriga, face à impotência de agir, a fazer uma escolha insuportável: a do ódio ou a da loucura.» Num outro artigo, o poeta sírio Adonis fala-nos do espectro de «uma regressão de três mil anos», determinada pela possível destruição do oásis cultural libanês e pelo triunfo previsível dos extremismos religiosos: «O perigo que hoje se corre é o de um regresso ao tempo dos profetas, dos apocalipses, das guerras e do desespero. Um regresso ao absolutismo.» Coisa que não parece incomodar muito as certezas dos nossos analistas estrábicos a propósito de quem são os bons neste conflito decisivo. Vale a pena comprar este número do CI e lê-lo com os olhos abertos.
Concordo muitas vezes com as observações jornalísticas de Vasco Pulido Valente. Muitas vezes, divirjo também do seu tom azedo e, em alguns momentos, gratuitamente provocatório. Para além de uma atenção crítica ao que se passa à sua volta – o que corresponde, actualmente, a uma atitude relativamente rara na imprensa diária – percebe-se uma grande capacidade para se dirigir directamente ao essencial das questões, contornando as meias-tintas próprias de quem tem pavor de chegar a uma conclusão dolorosa ou de levantar problemas que se metam com os fantasmas pessoais. Não posso, porém, deixar de discordar da posição de Pulido Valente quando há dias, em crónica saída no Público, resolveu levantar-se contra o movimento que tem procurado impedir que se destruam ou desvirtuem espaços e edifícios que, de alguma maneira, sinalizam a memória do país que era o Portugal dos anos do Estado Novo.
VPV referia aí, e bem, uma verdade que algumas pessoas insistem em negar, ou sequer em aceitar ouvir: o país de Salazar e de Caetano jamais viveu um fascismo típico, com a dose de violência e a dimensão totalitária que se sabe ter acontecido em países nos quais este fundamentou a razão de Estado, ou junto de movimentos que não lograram alcançar o poder mas lutaram por governos anti-democráticos, chauvinistas e intransigentes. O salazarismo foi essencialmente um conservadorismo autoritário, beato e pacóvio, que temeu sempre a febre de violência e de expansionismo do Estado que nas décadas de 1920 e 1930 envolveu principalmente a maioria dos cidadãos da Itália e da Alemanha (se aceitarmos o nazismo como um «fascismo» germanizado). A repressão e a censura, tal como a mobilização das consciências através da propaganda e da educação, foram de facto, entre nós, muito mais «benévolos» do que naqueles lugares. Nisto, VPV tem pois toda a razão.
Só que, apesar dessa «benignidade», o regime salazarista conformou, em Portugal, uma sociedade fechada, desigual, desumanizada, repressiva, arcaizante, cujos sinais aparentemente incorpóreos permanecem em muitos dos nossos atavismos, mas cuja conformação visível se situa nas práticas objectivas e na herança cultural que nos legou. Basta – recomendo-a a quem para tal tenha paciência – uma leitura atenta dos interesses e dos códigos evidenciados todos os dias pela maioria da nossa imprensa regional. Aí, sobrevive ainda o nosso «fascismo» caseiro. É nesse sentido que, enquanto «lugares da memória» e nichos de resistência, as prisões políticas ou os edifícios da Pide – em conjunto com todos os espaços simbólicos que despertam para a lembrança daquela época – merecem ser preservados. Ficarão como sinais de que por aqui existiu, legando ao presente as suas marcas repulsivas, um tempo de ordem e barbárie.