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A Birmânia não é aqui

Este post foi originalmente publicado há seis dias. Pela actualidade que mantém, é de novo chamado à primeira linha. Com algumas pequenas alterações.

O desinteresse dos principais partidos da esquerda portuguesa pelas frentes do combate democrático que vão sendo sucessivamente abertas pelo mundo surge-nos como uma triste constante. Exceptuando-se, naturalmente, as «solidariedades» ocasionais escolhidas caso a caso. Mesmo quando os sinais evidentes da repressão e da revolta, ou os primeiros indícios de novos genocídios, nos entram em imagens brutais pelas casas adentro. Para o PCP e para o Bloco de Esquerda, o drama birmanês permanece distante, quase como se nada tivesse a ver connosco, como se não justificasse um estremecimento de emoção, uma palavra de protesto, uma clara reprovação. Que importa afinal o ruído que chega da rua distante quando mantemos o nariz mergulhado no prato da sopa e nas tristes agendas eleitorais? A despolitização da política e o sectarismo, cara e coroa da mesma moeda, castram e desumanizam a experiência da cidadania, questionando o próprio conceito de democracia de quem os pratica.

    Atualidade, Opinião

    Ernesto no aniversário da sua morte

    A imagem pública de Ernesto Guevara de la Serna manteve, praticamente desde a sua integração na guerrilha cubana, um grande destaque mediático. Parte importante da auréola de romantismo revolucionário que acompanhou a tomada do poder pelos barbudos da Sierra Maestra, deveu-se à forma como Fidel, Camilo Cienfuegos ou Guevara projectaram, para um público mundial, a representação de uma causa que se mostrava radicalmente jovem, igualitária e justiceira. Assim, pelos inícios da década de 1960, o argentino era já uma lenda viva, cuja importância simbólica transcendia até os sectores da esquerda que viam no regime cubano a materialização das suas utopias e a superação do já decaído modelo soviético do socialismo. Ainda que acidental, a fotografia de Alberto Korda, projectando uma imagem heróica e poética do Che, foi obtida em 1960, quando este ocupava já um lugar de destaque como protagonista da Revolución.

    Este realce ampliou-se logo após o seu desaparecimento físico, transformando-lhe o rosto – o do combatente vivo e o do mártir morto – em símbolo maior de uma rebeldia com causa que uma parte da intelectualidade da esquerda mais heterodoxa olhava então com simpatia, e que a juventude dos sixties politicamente mais activa reconhecia como sua. Em Portugal, ainda durante o período marcelista, textos seus foram publicados e o seu estilo pessoal glosado, enquanto posters com a reprodução da célebre fotografia rivalizavam nos escaparates com os aforismos sentimentais de Júlio Roberto, e decoravam instalações associativas e quartos de estudantes.

    Antes ainda da canonização, hoje reconhecível em Cuba e que omite as divergências que foi tendo com Fidel e o levaram a deixar Havana e a partir para o Congo e para a Bolívia – «a minha casa ambulante continua a ter duas pernas e os meus sonhos não conhecerão fronteiras» –, a universalização do Che começara já, impulsionada pelo próprio sentido internacionalista da sua concepção de socialismo, sinalizada com clareza na estrela de cinco pontas que usava na inconfundível boina. «Criar um, dois, três, muitos Vietnames» não era simples palavra de ordem, um mero slogan, mas todo um programa de enfrentamento do imperialismo americano que, como sistema mundial, deveria também ser combatido a essa escala, recorrendo-se para o efeito a uma guerra de guerrilha, descentrada em múltiplos focos rurais, que deveria tornar inoperacionais os regimes que colaboravam com o poder ianque, derrubando-os de seguida. E arrastando consigo as injustiças do próprio capitalismo.

    Esse percurso original do guevarismo, partilhado, apesar de algumas divergências tácticas, pelos grupos e grupúsculos partidários da guerrilha urbana da década de 1970, terminou com o recuo global do socialismo de Estado enquanto modelo. Na «era do vazio» dos anos 80, viu-se então confinado a núcleos de nostálgicos, de activistas ultra-radicalizados ou de militantes dos velhos partidos comunistas, carentes de símbolos atraentes e que não hesitaram em transformar num dos (agora) seus aquele que antes haviam tantas vezes reprovado (os textos que o comprovam existem, e as memórias também, por muito que o tentem camuflar as posteriores operações de cosmética).

    A última década do século passado reconheceu, no entanto, um manifesto «regresso do Che», reunindo simpatizantes e activistas de diferentes causas que, enquanto ícone e fonte de inspiração, transportaram para um novo quotidiano a sua imagem. A resistência ao unilateralismo e os movimentos antiglobalização recuperam então, reconstruindo-a, a dimensão rebelde e planetária de Guevara, não hesitando em ignorar ou em justificar o seu papel, comprovadamente marcado pela intolerância e pela defesa de actos de extrema «violência revolucionária» pelos quais foi responsável na fase de lançamento do regime cubano, e que foram recentemente lembrados num livro de Alvaro Vargas Llosa (Che Guevara Myth and the Future of Liberty).

    Ao mesmo tempo, a revolução da informação e do consumo de massas, passaram também a aproveitar a sua imagem como produto de compra e venda, fazendo-a transportar na rua, por muitos daqueles que o Che sem dúvida desprezaria ou combateria, em t-shirts e pins, como gadgets e em tatuagens, como Homer Simpson ou Cristo. Numa mesma capa de revista, ao lado de Maradona ou Paris Hilton, o seu rosto passou a anunciar paraísos tropicais ou uma «revolução» transformada, ela própria, como produto de moda, em agente dinamizador do mercado de vestuário e bebidas. Em Che: Market and Revolution, a crítica inglesa Trisha Ziff reconhece mesmo, em cerca de trezentas peças assinadas ou anónimas, o aproveitamento comercial – se quisermos, a corrupção – da velha imagem obtida por Korda.

    É esta «domesticação» do Che que Rui Ramos glosa no artigo da revista Atlântico («O desprezo de Che Guevara»), mas pegando-lhe, a meu ver, de uma forma equívoca. Ou antes, fazendo-o através de uma leitura que tende a depreciar o papel histórico de Guevara e a ridicularizar, de uma forma parcial, politicamente comprometida e a-histórica, as leituras contemporâneas que atribuem um valor positivo e dinâmico ao seu legado. Efeito do qual a própria revista se serviu, reproduzindo na capa um desenho que o assemelha a Adolf Hitler. Se, como estratégia de marketing, pode ser uma boa ideia, este expediente tende a acentuar uma distorção essencial que o artigo promove, através de um processo de «descontextualização» da actividade e da influência do Che, de incompreensão perante as metamorfoses da sua figura, e de impaciência em face da sobrevivência visível dos ecos do seu legado.

    Dois aspectos, que materializam duas divergências, separam aquela que me parece ser uma abordagem objectiva do tema na relação com aquela que é a leitura do autor do artigo.

    A primeira tem a ver com a inscrição da acção de Guevara na história do seu tempo. Neste sentido, avaliar o Che como um falhado ou um oportunista, quase um louco, para quem «os males do mundo não o levavam a compadecer-se pelos outros, mas a desprezá-los», como o faz Rui Ramos, é tão pouco rigoroso como entendê-lo, à maneira das hagiografias, como ser perfeito ou semideus. No seu tempo, foi sim um agente transformador, integrado no fluxo mundial de expectativa de mudança vivido no decurso dos «longos anos 60», e, ao mesmo tempo, integrador de solidariedades e de projectos de emancipação que cumpriram o seu papel histórico. Incluindo-se neste, para além da sobrevivência do castrismo, a própria transformação do funcionamento dos regimes democráticos do ocidente e a valorização política e moral dos movimentos de emancipação do então chamado «terceiro mundo».

    A segunda discordância tem a ver com a desvalorização da sobrevivência – naturalmente adaptada a diferentes circunstâncias – do legado simbólico do argentino. Em artigo aparecido há dias no El Pais, Iván de la Nuez, o ensaísta cubano que vive em Barcelona, autor de Fantasia Roja. Los intelectuales de izquierdas y la Revolución cubana, coloca a questão em termos que me parecem correctos, ao considerar que, se para a direita o «fetiche do Che» é «uma derrota cultural após uma vitória política», ao invés, para a esquerda, sobretudo para a actual esquerda radical, a manipulação desse fetiche significa «uma vitória cultural depois de uma derrota política». Quer se queira ou não, quer se goste ou não – e independentemente da imputação fundamentada de actos de barbárie que tem vindo a ser feita ao Che-homem de Estado – a verdade é que a sua auréola de idealista e de herói, a capacidade de sedução de alguns dos valores que orientaram a sua intervenção, a própria noção da violência revolucionária como necessidade, permanecem activas no imaginário de uma parte substancial das gerações mais recentes. Ainda que, muitas vezes, sob a capa de um ícone pop. Sobreviveram aos quarenta anos que, no próximo dia 9, se perfazem sobre a data da sua morte. E sobreviveram à própria decadência e anunciada morte dessa crença marxista e leninista que, muito antes de Fidel, o próprio Che assumiu como sua.

    Artigo escrito a 6 de Outubro de 2007

      História, Opinião

      O capitão Wiesler e o doutor Guevara

      A Atlântico é, vamos a uma etiqueta, uma revista da direita civilizada e inteligente. Os artigos que publica são quase sempre bem escritos, estimulantes e informativos, mesmo quando partem – e partem quase sempre – de posições culturais nas quais não me revejo e de pontos de vista que rejeito frontalmente. A esquerda portuguesa, que não possui uma única revista de ideias digna da designação, deveria aprender um pouco com experiências como esta, pensando-se a si própria em público, sem preconceitos, sectarismos e medos atávicos, e procurando aproximar-se de um nicho de leitores – composto, chamemos-lhe assim para simplificar, de intelectuais e das suas margens – cujo peso nas sondagens eleitorais é pouco mais que nulo mas possui uma capacidade crítica e uma influência social que transcendem em muito essa pequenez.

      O último número da revista, o deste Outubro, contém dois artigos que me interessaram particularmente, mas dos quais, todavia, me apetece discordar. Até porque são assinados por historiadores de quem tenho lido textos exemplares, sobretudo quando nestes eles se ocupam do seu métier. Ambos se apresentam ali, precisamente, com «argumentos de historiador», ao mesmo tempo que escrevem diatribes de uma subjectividade quase total. Mas se ambos os artigos me parecem reprováveis, não é propriamente por causa dessa subjectividade, mas justamente porque se apresentam, aos olhos do leitor, como abordagens objectivas, quando de facto o não são.

      O primeiro é de Vasco Pulido Valente e visa uma breve leitura crítica do filme A Vida dos Outros, realizado pelo alemão Florian Henckel von Donnersmarck e estreado em 2006. Por um mero acaso, vi há cerca de duas semanas o DVD. Vi-o com vagar, vi também os diversos extras (que incluem um longo e interessante making of, além de algumas entrevistas um tanto desiguais) e não posso estar mais em desacordo com VPV.

      A Vida dos Outros é a história da conversão de Gerard Wiesler, um capitão da Stasi, a polícia política da antiga RDA, e tem como eixo a percepção do confronto entre o mundo triste e carcerário do qual Wiesler era fiel executor, e a vida incerta, mas mais livre e mais humana, daqueles que ele tinha como tarefa perseguir. VPV – que considera o argumento «um melodrama de intelectual adolescente» – parte, na sua leitura, de um princípio que não me parece poder ser assumido pela mesma pessoa que tanto tem feito pela aceitação da dimensão narrativa da história e pela inclusão da ficção como alimento e ferramenta do discurso historiográfico. Indignar-se porque o filme contém sequências que não são historicamente verosímeis é um erro banal, mas que não podia imaginar a ser cometido por ele. Digo o óbvio: o filme não pretende ser uma reconstituição, mas sim uma ficção, e como todas as ficções amplia e manipula pormenores, no sentido de coagir a leitura que o autor propõe. Aliás, von Donnersmarck di-lo abertamente num dos extras do DVD: a vida na RDA, por exemplo, não era tão baça e desolada quanto a imagem das ruas (cinzentas, vazias, infinitamente tristes) pode fazer crer (havia cor, ruído, pessoas nas ruas), ele apenas forçou esse aspecto para adensar o ambiente dramático que pretendia criar.

      Mas mesmo colocando-nos no plano da verosimilhança, não entendo como é possível considerar-se a transfiguração do protagonista como «implausível metamorfose». Ou então proclamar, a pés juntos, que jamais existiu ou existirá a possibilidade prática de um «redenção pela arte», uma vez que se assim fosse, argumenta VPV, os oficiais nazis que eram também excelentes músicos, como Heydrich ou Hans Frank, ter-se-iam por certo arrependido rapidamente dos seus crimes. VPV sabe muito bem que estas coisas não se podem prever e que cada caso humano é um caso humano, e se o diz, apoiado até em comparações forçadas e um tanto abstrusas com os agentes da Pide, é porque também tem, por vezes, uma certa vontade de jogar algo arbitrariamente com as próprias palavras. Ou uma recaída – a expressão é utilizada por ele neste pequeno artigo – de «intelectual tardo-adolescente». O que, sinceramente, só lhe fica bem.

      O segundo artigo, mais extenso e ambicioso, é de Rui Ramos e tem um título abertamente provocatório: «O desprezo de Che Guevara». Mas a sua leitura terá de transitar para um outro post.

        História, Opinião

        Psiu!

        Uma certa boa consciência «democrática», que a todo o momento faz a contabilidade dos longos anos de combate à ditadura dispendidos pelos seus antepassados, quase ignora aquilo que está neste momento a passar-se na Birmânia. Para ela, quando se combate uma ditadura, é preciso saber-se primeiro se essa ditadura é «boa» ou «má». Em caso de dúvida, joga-se pelo seguro e não se abre a boca. Até pode ser que ela não seja tão «má» quanto dizem. Ou que a democracia que se segue seja muito «pior». A coerência e a honestidade, para quem insiste neste tipo de atitude, jamais serão valores absolutos.

          Atualidade, Opinião

          Garganta Funda

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          O WikiLeaks, «a place for journalists, truth tellers and everybody else; global defense of sources and press freedoms, circa now» é um serviço em linha tem já mais de um milhão de documentos disponíveis. Ele simplifica a experiência da denúncia, mas também da delação, tornando-as fáceis, seguras e possíveis numa escala planetária. Uma espécie de «Wikipedia para fugas de informação não-detectáveis». Conseguiu um documento que compromete alguém de quem não gosta, mas esse alguém tem muito poder? Acha que certa pessoa anda a apoderar-se de dinheiros públicos e tem provas disso, mas receia que ela descubra que foi você quem a denunciou? Conhece um político corrupto, tem informações que o podem desmascarar, mas não quer enfrentar um processo complicado que pode afectar a sua vida? Nada mais simples: mostra tudo aquilo que sabe e pode documentar no WikiLeaks e jamais alguém conseguirá saber que foi você quem deu com a língua nos dentes. Um instrumento assustador, com resultados práticos ainda imprevisíveis, que pode transformá-lo num minuto em justiceiro mascarado ou num canalha. Sem se levantar da sua secretária.

          O suplemento Digital, do Público, traz hoje um artigo sobre o tema. O título, do qual me sirvo neste post, é «Garganta Funda já não precisa de se esconder na garagem».

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            Contemplação

            Apanhei apenas a parte final da entrevista feita por Mário Crespo, na SIC-Notícias, ao novo director do Museu Nacional de Arte Antiga. Mas o que ouvi pareceu-me tão transparente quanto preocupante: a defesa do museu de arte concebido, muito acima de todas as outras possibilidades, como lugar vocacionado para a conservação da «peça» e para a «investigação científica». Como área no interior da qual um público demasiado vasto e um tanto ruidoso se revela essencialmente indesejável e inconveniente. Ficou no ar uma frase um tanto arrepiante que vale por cada uma das suas palavras e pela concepção do significado da própria arte que indicia: com demasiado público nos museus, afirmou Paulo Henriques, «não há seriedade (sic) para a contemplação de um quadro». Ah, e também deixou bem claro que, na sua opinião, os museus portugueses devem manter as ambições «à escala do país que de facto somos». Estamos entendidos.

              Opinião

              Um mau sinal

              Infelizmente, é já absolutamente normal, e até expressão de uma certa forma de coerência, que, em nome dos «sagrados princípios do internacionalismo», o PCP convide os bandidos armados e narcotraficantes das FARC ou os oligarcas, delatores e torcionários do partido único da Coreia do Norte – para além dos representantes dos regimes totalitários cubano ou bielorusso e de outras forças consabidamente antidemocráticas – para a sua Festa do Avante!. O que me parece mais preocupante é que a opinião pública de esquerda considere o facto de somenos importância e abandone a denúncia deste tipo de situação nas mãos dos sectores conservadores ou mesmo dos descendentes da velha direita. As preocupações a propósito das liberdades fundamentais e a decência política mais elementar parecem, uma vez mais, submergir por estes lados diante de pequenas prioridades tácticas. Um mau, ou um péssimo, sinal.

              Vejam-se as posições – muitas delas no sentido que refiro acima – que são inventariadas pelo Tiago Barbosa Ribeiro num dos seus posts sobre este assunto.

                Atualidade, Opinião

                Plagiu

                A descoberta de sucessivas pistas de plágio no blogue pessoal de Luís Filipe Menezes não me espanta. Trata-se de uma prática muito comum no universo da política local (e não só, convenhamos), coincidente com a ausência de ideias ou a baixa densidade cultural de muitos dos seus protagonistas. Se percorrermos o país através das páginas pessoais (ou de textos reproduzidos) de algumas das suas figuras mais ou menos públicas, em inúmeros artigos de uma boa parte da imprensa regional, mesmo em intervenções públicas supostamente originais, encontraremos exemplos constantes de corta-cola-e-cala. Mas LFM não é apenas um político local, pois pretende presidir a um dos dois maiores partidos institucionais e ser primeiro-ministro de Portugal. E ou a coisa está pior do que eu pensava ou uma prática desta natureza é indesculpável, não valendo atirar agora com as culpas para as costas de um qualquer «assessor», supostamente responsável pelos sucessivos actos de cópia não declarada (assinados de facto por LFM, «autor» ou autor do blogue em causa). Numa prova académica, quando detectado, o plágio equivale imediatamente a uma reprovação (e na generalidade das escolas inglesas, por exemplo, corresponde até a uma expulsão): será que, por estes lados, as boas práticas destinadas a combater a fraude e a desonestidade intelectual não se aplicam também aos políticos profissionais? Suspeito que conheço a resposta.

                Para quem ainda possa ter dúvidas sobre a gravidade deste tipo de acto, aqui se copia a entrada Plágio da Wikipédia em português (acedida em 22.08.2007, às 14h30, e, sendo de origem brasileira, adaptada aqui ao português europeu):

                O plágio é o acto de assinar ou apresentar uma obra intelectual de qualquer natureza (texto, música, obra pictórica, fotografia, obra audiovisual, etc.) contendo partes de uma obra que pertença a outra pessoa sem colocar os créditos para o autor original. No acto de plágio, o plagiador apropria-se indevidamente da obra intelectual de outra pessoa, assumindo a autoria da mesma.

                A origem etimológica da palavra demonstra a conotação de má intenção no acto de plagiar; o termo é originário do latim plagiu que significa oblíquo, indirecto, astucioso. O plágio é considerado antiético (ou mesmo imoral) em várias culturas, e é qualificado como crime de violação de direito autoral em vários países.

                Plágio não é a mesma coisa que paródia. Na paródia, há uma intenção clara de homenagem, crítica ou de sátira, não existindo a intenção de enganar o leitor ou o espectador quanto à identidade do autor da obra.

                Para evitar a acusação de plágio quando se utilizar parte de uma obra intelectual na criação de uma nova obra, recomenda-se colocar sempre créditos completos para o autor, seguindo as normas da ABNT, especialmente no caso de trabalhos académicos onde normalmente se utiliza a citação bibliográfica.

                  Atualidade, Opinião, Recortes

                  «Hay que tenerlos»

                  Tão rápido no intento de humilhar os funcionários públicos reduzindo-os à condição de culpados de todos os males da nação, e aceitando que sejam afastados aqueles que em palavras ou actos desrespeitem a «nova ordem», o governo continua a condescender com o tom ostensivamente agressivo e provocatório usado pelo funcionário público Alberto João Jardim para se referir ao primeiro-ministro ou aos ministros do governo da República. Não que a situação seja nova, evidentemente, mas ela atingiu agora níveis extremos e absolutamente intoleráveis. As referências recentes à suposta falta de dinheiro para financiar a IVG na Região Autónoma da Madeira – quando se gasta o quádruplo a financiar um rali, se delapidam somas brutais para pagar o fogo-de-artifício do reveillon, ou se paga para que os dois clubes madeirenses de futebol estejam entre os cinco clubes portugueses que de maiores orçamentos dispõem – acompanhando essas referências dos insultos mais ordinários aos representantes do Estado, exigem-se medidas e não apenas vagas declarações de virgens ofendidas (mas um pouco distraídas também). Um caso sério de chantagem e de insubordinação que deveria merecer, no mínimo, uma advertência pública por parte do Presidente da República, do primeiro-ministro e do Tribunal Constitucional. Mas para tal, convenhamos, «hay que tenerlos».

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                    Geração rasca

                    Sem a repercussão do artigo de Manuel Alegre, passou quase despercebida a entrevista de António Arnaut ao semanário Visão. No entanto, desprovida do tom aparatoso e plangente de Alegre, ela parece-me muito mais pedagógica e, ao mesmo tempo, capaz de evidenciar o profundo desencanto da geração dos fundadores com os caminhos que vem seguindo o actual PS. Uma abordagem desiludida, mas de certa forma sábia, que não soa a ressentimento, assumindo o que lhe parece ser a inevitável transitoriedade da geração agora no poder. Descreve-a assim Arnaut: «É um produto das circunstâncias. Noto falta de cultura cívica. É gente sem reflexão sobre os comportamentos, a arte, a literatura e a história do nosso povo. (…) Muitos deles não têm uma ideia para Portugal, não reconhecem o país. Vivem do imediatismo, da conquista do poder. Conquistado, vivem para aguentá-lo. Esta geração vale-se mais da astúcia que da seriedade. E aprendeu os ensinamentos de Maquiavel.» Vale a pena ler a entrevista completa.

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                      Com que voz

                      Politics

                      Liga-me aquilo que Manuel Alegre representa um conjunto de sentimentos contraditórios. Não aprecio o estilo grandiloquente (que já apreciei, aliás, quando ouvia os mesmíssimos tom e timbre de voz na Rádio Voz da Liberdade). Não gosto dele como poeta (embora reconheça a importância simbólica e patrimonial da sua «poesia de combate»). Não sinto grande empatia em relação a um padrão de discurso político assente em pressupostos estritamente éticos (que pode ser respeitável mas já pouco diz aos portugueses com menos de trinta anos). E parece-me excessiva, quando não um tanto ridícula, a construção de uma imagem de geronte do regime, falando «para a estatuária», da qual o próprio parece gostar e que a concepção editorial do artigo que hoje editou no Público («Contra o medo, liberdade») acaba por alimentar.

                      Já simpatizo, porém, com a forma como insiste, a contracorrente, no concurso da coerência de princípios para a credibilização (ou na descredibilização) da política e dos políticos. Tal como gosto da forma como tem sublinhado que – por múltiplas razões, entre elas uma efectiva despolitização dos aparelhos partidários – a política não se esgota nos partidos e só fará bem a estes e à própria democracia reconhecê-lo. E, acima de tudo, admiro a sua capacidade para, numa época na qual a esmagadora maioria dos melhores quadros do país se desvinculou claramente da política activa, afirmar que a capacidade de decisão não pode ser «erigida num fim em si mesmo, quase como uma ideologia.» Poucos o dizem e menos ainda são capazes de levantar a voz em favor dessa dimensão crítica e prospectiva da política que é, no fundo, a sua alma. Uma atitude que a lógica «aparelhística», assente na coacção e na fuga ao debate, presa à defesa amoral dos pequenos e grandes interesses de grupo, e à incapacidade de pensar o futuro em termos de desígnio, tem vindo a apresentar como «irrealista» e descartável. Nesta direcção, o artigo aparatoso e amargurado de Manuel Alegre tem algum valor. Temo é que esse valor seja apenas histórico.

                        Atualidade, Opinião

                        Sapatos vermelhos

                        Diante do recém-editado livro autobiográfico de Zita Seabra (ZS) é muito difícil sustentar um registo de equidade crítica quando a maior parte do que lemos insinua uma rejeição que nem sempre é boa conselheira. Como seria de esperar, a recusa apriorística da possibilidade de ler o livro instalou-se, de imediato, entre pessoas mais ou menos próximas do Partido Comunista ou dos sectores situados à esquerda do PS. E muitas daquelas que o leram, fizeram-no sobretudo à procura das imprecisões ou dos juízos que permitissem depreciar o que a autora escreveu. Acontece, porém, que contando-me entre os portugueses que se distanciaram no passado e se distanciam hoje das posições públicas de ZS – relembro apenas o seu apoio à campanha pelo Não no referendo sobre a IVG e a sua actual assumpção como parte da ala direita do PSD –, me interesso também pela história recente. Tenho, por isso, uma certa obrigação de me esforçar para compreender a utilidade deste volume.

                        Livro algum tem necessidade de justificar a sua existência. Porém, não sendo analista, historiadora ou política no activo com um papel relevante, não se encontrando ainda em idade de fazer um «balanço de vida», não tendo nada de particularmente novo para contar e escrevendo até com alguma dificuldade, para quê dar-se a autora ao trabalho de falar publicamente sobre o seu próprio passado? Deixarei para o final deste texto uma tentativa de resposta a esta questão.

                        Foi Assim relata a infância, a juventude e a vida adulta de ZS sensivelmente até à sua expulsão do PCP, ocorrida em Janeiro de 1989, centrando-se particularmente na experiência de clandestinidade, na intensa actividade pública que manteve nos anos que se seguiram a 1974 e no processo que levou ao seu isolamento político e pessoal dentro do PCP. Todavia, de tudo isto, de um tempo tão intenso, de uma relação tão estreita que manteve com a intervenção dos comunistas na sociedade, nada do que ZS conta se mostra particularmente novo ou interessante, tanto ao nível dos processos como dos métodos. A referência que faz à vida na condição de clandestina, à actividade na UEC, ao seu papel durante o PREC e na Assembleia da República, não contém algo que não se encontre já bem documentado e que, provavelmente, apenas interessará a quem estiver fora destes temas e, levado pela campanha mediática em redor do livro, se decida a comprá-lo. Presumo, no entanto, que, de entre este eventual núcleo de leitores, poucos serão aqueles que o conseguirão ler até ao final. Ou, pelo menos, que serão capazes de o ler com a devida atenção.

                        De facto, o texto encontra-se escrito de uma forma absolutamente surpreendente para quem o sabe da responsabilidade de uma pessoa que rompeu com o PCP há já quase vinte anos e tem vindo a tomar posições cívicas que a distanciam claramente dessa área de origem. No entanto, a linguagem utilizada, a rígida ética que lhe subjaz, o jargão utilizado na análise do tempo e dos factos aos quais se reporta, são impressionantemente próximos daquele que foi, e em certa medida ainda é, o discurso-padrão dos comunistas. Torna-se quase insuportável para um leitor consciente deste aspecto o modo como ZS usa a «língua de madeira» comunista para falar, de uma forma que se pretende analítica, da sua relação com a experiência de luta e de organização do PCP. Muitas frases revelam essa fala ancorada no passado, feita de clichés, liturgicamente repetidos ao longo de décadas e que, estranhamente, a autora mantém intactos, deles se servindo a todo o momento: «comportamento exemplar» (p. 53), «eivado de irrealismo e de voluntarismo» (p. 65), «um camarada altamente responsável» (p. 71), «um camarada de confiança» (p. 83), «teve bom porte na PIDE» (p. 153), «regressou com uma ampla publicidade» (p. 163), «era uma revolucionária profissional, uma verdadeira bolchevique» (p. 187), «os controleiros das faculdades e os militantes mais destacados» (p. 211), «tal como Lenine ensinou e nós aprendemos» (p. 235), «Amílcar Cabral gozava de prestígio» (p. 250), «só a verdade nos libertará» (p. 436). E a listagem poderia ser multiplicada por dez, quinze ou vinte vezes.

                        Acrescento ainda este fragmento que parece tirado de uma qualquer cartilha ou de uma proclamação do PCP da era pré-Abril: «Ia finalmente passar à acção directa e preparar a queda do regime através da revolução democrática e nacional, à qual se chegaria pela insurreição popular armada, primeira etapa da revolução socialista. Só após a instalação da ditadura do proletariado se encontraria o caminho livre para a forma suprema de organização da humanidade: o comunismo.» (p. 151). O mesmo posso dizer da sua explicação do «centralismo democrático», que parece tirada de uma síntese escolar do Que Fazer?, de Lenine (p. 174). ZS não se reverá agora, naturalmente, nestas posições, mas a forma como mantém este conjunto de fórmulas para «explicar às criancinhas» o sentido da crença que partilhou com milhares de outros comunistas portugueses, não só não é abonatório da sua actual capacidade de análise, como, e acima de tudo, define um discurso extremamente equívoco, entediante para quem já as conhece e incompreensível para quem, ao ler isto, delas toma conhecimento pela primeira vez.

                        Esta maneira de escrever parece-me indissociável do percurso cultural da autora. Todo este livro revela uma formação exígua ao nível das leituras (apenas alguns romances e textos teóricos que qualquer pessoa da sua geração e extracto sociopolítico leu), das práticas culturais específicas (quase exclusivamente confinadas ao gosto interrompido pelo ballet), dos interesses por um saber não instrumental. O próprio conhecimento dos clássicos do marxismo-leninismo se afigura insuficiente para uma pessoa que teve as responsabilidades políticas de ZS, o que é revelado na admiração que ainda hoje nutre por quem o detinha (como José Pacheco Pereira, Miguel Portas e, naturalmente, Álvaro Cunhal) e exemplifica o nível da formação teórica de muitos dos quadros comunistas portugueses. A mesma coisa no que se refere aos gostos artísticos (as referências musicais ou do campo da pintura são de uma banalidade atroz, mesmo para a época, não faltando sequer a referência sacramental à Guernica de Picasso) ou ao gosto pelo cinema, que reconhece ter sido muitíssimo limitado pelas imposições da vida clandestina e que, com toda a certeza, não terá podido recuperar nos anos do PREC. Algo de manifestamente estranho, aliás, para quem, entre 1993 e 1995, foi presidente do Instituto Português de Cinema e do organismo que lhe sucedeu. Não é pois de estranhar que, a dado passo, se refira ao filme Emmanuelle como sendo… «pornográfico» (p. 426).

                        Uma outra área na qual o desconhecimento de ZS se me afigura chocante refere-se às práticas e aos processos organizativos dos sectores que agrupa na designação canónica, leninista, de «esquerdistas». Esta atitude, muito comum entre a generalidade dos antigos militantes ou simpatizantes do PCP que estiveram ligados ao sector estudantil, não é para mim novidade. Mas perceber esta perspectiva limitada e confusa daquela que foi a sua principal dirigente nos anos finais do regime, é, no mínimo, perturbante. Como o é o não ter lido um pouco, antes de escrever, para se informar melhor.

                        Já tenho alguma dificuldade em pronunciar-me sobre a parte mais apelativa do livro – a situada no domínio da petite histoire – e que é também aquela sobre a qual se podem colocar maiores dúvidas relacionadas com uma interferência profunda da subjectividade ou um questionamento da veracidade de alguns dos episódios relatados. Não me repugna, confrontando este testemunho com outros (como aquele recentemente publicado por Raimundo Narciso), aceitar o carácter complexo, para não dizer tortuoso, da personalidade de Álvaro Cunhal (o «Camarada» que marcou para sempre a vida de Zita). Nem reconhecer a atitude sectária, frequentes vezes seguidista, da generalidade dos apparatchiks do PCP (a sessão do plenário do Comité Central no qual ela foi expulsa do mesmo, do qual por certo existirá uma acta, é particularmente denunciadora de uma crua incapacidade para se aceitar a diferença fora dos processo do «centralismo democrático» e de se reconhecer o que de «bom» fez uma camarada marcada a partir daquela altura pelo «mal»). Mas grande parte do que se conta – algumas frases e atitudes do «Camarada», a confirmarem-se são particularmente abjectas no plano meramente humano – permanecerá no âmbito do testemunho estritamente individual. Sobre esta fase de ruptura, existem já outros depoimentos publicados – entre eles um livro da própria ZS, O Nome das Coisas, escrito «a quente» e editado logo em 1988 –, bem como uma possibilidade de se obterem relatos de pessoas vivas, que permitirão aferir melhor o processo que a autora descreve.

                        A leitura encontra-se também marcada por traços de personalidade e de estilo de ZS que, sendo respeitáveis na dimensão da sua idiossincrasia, tornam por vezes penosa a comunicação com o leitor. Desde logo as inúmeras provas de arrogância e de exposição de uma dimensão quase providencial das decisões que foi tomando. «Eu fiz», «eu resolvi», «eu escolhi», «eu decidi» são expressões pouco agradáveis para a cultura democrática ou para a educação de muitos daqueles que a lêem. Um exemplo apenas: referindo-se à altura em que, em 1974, Cunhal se tornou ministro sem pasta do governo, conta ZS: «passei-lhe de imediato o Domingos Lopes para chefe de gabinete». Tanto quanto sei, Domingos Lopes não será propriamente um cachecol ou uma garrafa térmica. A afirmação desta «personalidade difícil» é ainda complementada, negativamente, pela inépcia absoluta para lidar com o humor ou com a ironia: mesmo alguns episódios realmente engraçados que conta são, no discurso de Zita, passados à condição de mais um elemento na enumeração dos factos que relata, sem uma exploração literária que melhoraria o prazer da leitura e a aproximaria um pouco mais de quem a lê. A mesma coisa em relação à vida amorosa e aos afectos, pelos quais passa sem referência praticamente alguma, se exceptuarmos o «sentimento de culpa» que, sendo filha única, de certa forma sente pela separação que deles voluntariamente manteve. Ao contrário daquilo que já li, mesmo a referência a Sita Valles, a notável militante comunista que viria a ser torturada e executada em Angola após o falhanço do golpe militar dirigido por Nito Alves, me parece mais do domínio da admiração do que de uma efectiva amizade. Falo daquilo que percebo pela leitura, naturalmente, não daquilo que Zita Seabra eventualmente sentirá e que, por formação ou por deformação, se esforça a todo o momento por esconder.

                        Volto então à questão colocada inicialmente. Para que serve afinal este livro da Aletheia, marcado por um grafismo propositadamente decalcado das Edições Avante!, ampliado por uma intensa campanha mediática e colocado nos escaparates melhor situados das lojas da Bertrand e da FNAC? Para ser lido, como escreveria o senhor de La Palisse. Mas quem o lerá? Presumo que, para além de uns quantos interessados na nossa história recente, de alguns quadros partidários, e, por dever de ofício, de um ou outro opinion maker, talvez a parte do público estigmatizada ainda pela cultura do anticomunismo, ou aquela outra que espera encontrar neste livro uma versão circunspecta da má-língua de Catarina Salgado. Sob este aspecto, podem desenganar-se. Pouco lhes interessará a vida da mulher que sempre gostou de usar sapatos vermelhos.

                        Zita Seabra (2007), Foi Assim. Lisboa: Aletheia Editores. 442 páginas.

                        Sobre o mesmo assunto (uma ajuda do Miguel Cardina):
                        Zita e o Camarada [João Gonçalves, Portugal dos Pequeninos] O livro que não se deve ler (1) [João Tunes, Água Lisa (6)] O livro que não se deve ler (2) [João Tunes, Água Lisa (6)] Foi assim, não foi nada, talvez fosse [João Tunes, Água lisa(6)] Os verdes anos de Zita [F. Penim Redondo, Dote Come] Não foi assim [Nuno Ramos de Almeida, Cinco Dias] Novo livro de Zita Seabra. Leitura a não perder [Da Rússia, José Milhazes] Foi assim, mas há sempre alguém que não deseja acreditar [José Manuel Correia, Aparências do Real] Foi Assim com Zita Seabra [Raimundo Narciso, A Grande Dissidência] Zita Seabra – defender o quadrado [Sofia Loureiro dos Santos, Defender o Quadrado] Não, não foi assim (1) [Vítor Dias, O Tempo das Cerejas] Não, não foi assim (2) [Vítor Dias, O Tempo das Cerejas] Não, não foi assim (3) [Vítor Dias, O Tempo das Cerejas] Não, afinal não era assim (4 e último) [Vítor Dias, O Tempo das Cerejas]

                          Memória, Opinião

                          O sumiço da utopia


                          Existe um livro de João Martins Pereira – No Reino dos Falsos Avestruzes, editado em 1983 pel’A Regra do Jogo – que, apesar de visivelmente datado sempre que refere determinados aspectos da vida política portuguesa da época, merece ser revisitado com alguma atenção, suscitando o reencontro com um padrão de reflexão política hoje praticamente inexistente. Quase ao acaso, dou de caras com uma frase sublinhada naquela altura: «A banalização do adjectivo «utópico» num sentido pejorativo não deveria impressionar nem complexar a Esquerda; foi a Direita que, ao pretender-se realista e pragmática, lhe lançou essa armadilha». Nesse mesmo ano, Tony Blair entrava pela primeira vez para o Parlamento britânico: o resto da história é conhecido.

                            Apontamentos, Opinião

                            Sem vergonha

                            Num passado ainda recente, na prática dos grandes partidos institucionais, certas coisas pensavam-se e faziam-se, mas não se diziam. Existia, ao nível do menor denominador comum da opinião pública, uma ética que descriminava quem verbalizava ideias, quem propunha atitudes, que contrariavam os fundamentos da vida democrática. Esses tempos passaram, e, como todos eles, foram substituídos por outros, nos quais a gente que ainda há algum tempo estava caladinha e quietinha perante o perfil ético e o passado de muitos dos quadros presentes na política activa, tomou o poder e só não perdeu a vergonha porque, de facto, jamais a teve.

                            Pelas 12 horas e 50 minutos de hoje, ouvi no Rádio Clube de Coimbra (delegação do Rádio Clube Português), o président directeur général da Comissão Distrital do Partido Socialista e actual deputado Vítor Baptista, afirmar, num tom muito exaltado, que cargos como os de directores de hospitais e centros de saúde, ou de chefia de direcções-regionais, devem ser da confiança política do governo e cessar funções sempre que o partido de governo muda. E dizer que estes jamais deverão admitir que os seus subordinados exprimam internamente posições críticas do governo que lhes paga. Sabendo que a figura em causa é um dos mais consabidos exemplos do estado a que chegou o actual partido do poder, e da indigência política (e cultural, já agora) de uma grande parte dos seus apparatchiks, a desfaçatez não admira. Algo ingenuamente, confesso, pensava porém que estas pessoas ainda cuidavam minimamente das aparências. Pelo que oiço, já perceberam que não precisam de o fazer.

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                              Demofobia

                              Através do João Tunes, cheguei a este texto do Marcelo Ribeiro. Uma espécie de carta-aberta, e um testemunho muito pessoal, exprimindo uma indignação e uma preocupação que democraticamente partilho. Embora ainda considere mais indigna, e mais preocupante, a sórdida legitimação da «bufaria», por parte de diversos responsáveis do partido do governo, que a repetição deste tipo de actos tem vindo a configurar. E muitos outros permanecem ainda fora do conhecimento público, como muito bem sabe quem anda de olhos abertos pela «vida real» de diversos organismos dependentes do Estado. Um sinal dos tempos que não pode ser tolerado. Seja qual for o percurso de quem o alimenta ou, pela via do silêncio, com ele pactua.

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                                Socialismo pelo esgoto abaixo

                                Há alguns meses atrás, da actividade de uma outra (ou seria a mesma?) comissão patrocinada pelo governo e financiada com dinheiros públicos, tinha transpirado a recomendação peregrina de fazer aumentar em flecha os descontos dos trabalhadores para a segurança social, diminuindo imenso os salários reais. Agora, a Comissão para o Livro Branco das Relações Laborais, ao fim de dois anos de reuniões devidamente remuneradas, concluiu «cientificamente» que a solução para o saneamento do mundo do trabalho se encontra em medidas como a redução das férias de 25 para 23 dias úteis, a simplificação dos despedimentos, o fim das diuturnidades e a transferência para os privados da responsabilidade pelas reformas dos trabalhadores. Não me espantará que o próximo passo seja sugerir que os funcionários que não recebam a classificação de «excelente» vejam reduzido o horário do almoço, usem um indicativo visual e/ou passem a auferir de metade do vencimento. Quanto aos deveres dos «empregadores», claro, nem uma palavra. Toda esta conversa de defensores da destruição selvagem do welfare state é patrocinada por um governo que nas últimas eleições ainda se declarou «socialista». Tudo isto com o silêncio dos defensores dessa sacrossanta «modernização» (tendência «Joe Berardo», presumo) que vale por si mesma, esmagando as pessoas que deveria servir. Será que esta gente quer mesmo recuperar a luta de classes dos confins da nossa história recente?

                                Adenda – Este post não é alarmista. Sei perfeitamente que governo não irá avançar, pelo menos nos tempos mais próximos, com medidas legislativas que possam dar seguimento a todas estas propostas. Mas o simples facto delas existirem, de serem produzidas no contexto da actividade de uma comissão de iniciativa governamental, e de, lamentavelmente, o Partido Socialista não ter aberto a boca sobre o assunto, parece-me muito preocupante.

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                                  Jornalismo (este e o outro)

                                  A entrevista feita por Alexandra Lucas Coelho que saiu no último Ípsilon a propósito de mais um romance de Baptista-Bastos, retoma algumas questões recorrentes sempre que se fala deste (ou com este) jornalista e escritor. Começo por dizer que não sou um seu grande admirador: não aprecio particularmente o estilo da escrita (convém dizer que BB gosta muito de Agustina, Saramago e Mário Cláudio, três escritores portugueses que sinceramente dispenso dos meus planos de leitura), tal como não gosto do tom paternalista e auto-referencial da sua forma pública de falar com os outros e dos outros. Também me distancio de um certo “conservadorismo de esquerda”, marcado pelos requebros de casmurrice e de nostalgia que o caracterizam. Ao mesmo tempo, porém, concordo e simpatizo com algumas das suas posições públicas, nomeadamente com aquelas em que associa o lugar cultural do jornalista (e do jornalismo) a uma atitude de intervenção na vivência da cidadania.

                                  É este aspecto que volta a ter um grande destaque nesta entrevista, ao ponto do suplemento incluir um depoimento de Miguel Sousa Tavares e um artigo de Adelino Gomes nos quais ambos, e particularmente o segundo, procuram contrariar a repugnância de Baptista-Bastos pela defesa do distanciamento e da «santa objectividade» (uma expressão utilizada positivamente por Mário Mesquita) como chaves do «bom jornalismo». Não chego ao ponto de dizer que concordo inteiramente com esta repulsa, pois reconheço que, muitas das vezes, sem um esforço de imparcialidade o jornalismo cai facilmente no panfleto ou, pior ainda do que neste, no território da asneira. Mas parece-me também que o jornalismo engagé e «de tarimba» – não apenas de escola superior, mas de formação, sensibilidade e experiência – faz muita falta para alimentar um nervo mobilizador do interesse (e da paixão) do público, ajudando este, ao mesmo tempo, a definir e a tomar posições. Preferia ler jornais onde um e outro dos estilos pudessem competir na captação de leitores e na diversificação da opinião. Não apenas o jornalismo padronizado, asséptico, «técnico», no qual já nem sequer a diferença determinada pelo estilo e pela personalidade do jornalista muitas vezes se percebe. É este jornalismo que Baptista-Bastos detesta, criticando-o em nome desse outro jornalismo do qual se sente cada vez mais a falta. Eu, pelo menos, sinto.

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