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Se nos calarmos por um momento

Espelho partido

Vivemos tempos difíceis para a rebeldia – sim, bem sei que a palavra vegeta démodée fora dos anúncios de marcas de refrigerantes –, sitiada por vozes insistindo em que «as coisas são como são». A audácia, lançada a contracorrente, que se desvia do imediato, é cada vez mais apontada como irrealista e suicidária. O impulso utópico é proscrito ou caricaturado. O rebelde – do latim rebellis, aquele «que começa a guerra», que recusa obedecer e se insurge – é depreciado, olhado como um vestígio do passado, herdeiro de uma subespécie hominídea que perfez o seu caminho mas se perdeu algures na cadeia da evolução. Bakunine e Nietzsche, Sade e Rimbaud, Camus e Beauvoir, mesmo Ghandi ou o Che, mortos, devem permanecer nas paredes, mas apenas como quadros de uma exposição. Os vivos, como Cohn-Bendit, Mandela ou o subcomandante Marcos, passam por troféus, quase inofensivos agora apesar da atitude desafiadora que um dia exibiram.

Aceita-se apenas – melhor, define-se como arquétipo de uma «rebeldia mansa», domada, sem perigo para a ordem imperante – o pequeno gesto que excede por instantes os limites do conformismo, simulando uma força inexistente. Como exemplo, uma revista de actualidades entrevistava há alguns dias uma jovem actriz e destacava o seu «passado rebelde», quando nos anos 80, para alvoroço da pequena cidade de província onde crescera, «andava pela rua de saia e sapatos de ténis». Políticos profissionais recorrem a idêntica estratégia, procurando legitimar uma imagem de «personalidade forte» quando destacam a irrequietude de banalíssimos episódios biográficos do seu passado mais remoto. Entretanto, alguma esquerda invoca ainda uma «rebeldia teórica», condicionada pelo apego à ideologia envelhecida que a moldou ou a um modelo falido de sociedade. De acordo com esta perspectiva disforme, rebelde não será então o homem ou a mulher que luta pela liberdade individual, pelo direito à diferença, por uma sociedade desbloqueada, mas sim o polícia que zela sem descanso pela suprema «ordem revolucionária».

Contrariamente, em A Política do Rebelde, Michel Onfray exalta a figura singular do rebelde, do verdadeiro rebelde, esse cujo génio sempre algo colérico o conduz, no encontro do seu percurso pessoal com a história humana, a um irreprimível desejo de confronto, a um impulso projectado para a superação dos limites. Com ele, sempre uma mesma recusa: a da ordem estabelecida, seja ela social ou cultural, percebida como uma ameaça e um obstáculo a ultrapassar. «Tudo aquilo que olhamos é falso», escrevia Tzara no Manifesto Dada de 1918. E em 1929, o brasileiro Oswald de Andrade constatava: «a falsa cultura, a falsa arte, a falsa moral, a falsa religião, tudo desaparecerá, mastigado por nós com a maior ferocidade». Sempre a recusa de uma gestão do presente «tal qual ele é» e a defesa da possibilidade do impossível.

Para além da negação cruel do cenário imposto pela ditadura do real, o rebelde observa o futuro com lentes de aumentar, por entre corredores espelhados que projectam um efeito caleidoscópico. Exagera e distorce a perspectiva, claro, mas nos assuntos que se relacionam com a administração do real vivido e do real possível não existem meias-tintas: ou se é avisado, atinado, «realista», ou se é excessivo, ao mesmo tempo apolíneo e donisíaco, uma vez que Apolo e Dioniso, os dois deuses superiores da mais importante epifania délfica, parecendo opor-se, afinal se completavam. Ou se gere o mundo apenas à vista, mergulhado na banalidade e, mais cedo ou mais tarde, no desespero, ou se projecta o salto em frente, superando, por vezes na dimensão de um pathos incidental, a enganadora sombra. As «pessoas extraordinárias» – de Thomas Paine a Billie Holiday – das quais falava Eric Hobsbawm na conhecida obra homónima, pertencem a este segundo tipo. São aquelas que convivem com o ar do tempo, com o fragor mediático, mas não se limitam a servi-lo, reconhecendo corajosamente a existência de um eco maior, receptivo à transformação e à busca da felicidade, que pode ouvir-se no horizonte. Se nos calarmos todos por um momento, e prestarmos atenção, conseguiremos ouvi-lo. É bom fazê-lo de vez em quando, sobretudo agora que nos oferecem programas sem alternativa, buscando governar à vista, confinar à maneira de Haussmann, as nossas vidas.

    Democracia, Olhares, Opinião

    Jogo de espelhos

    Espelhos

    Logo após ter escrito o post «In-dependências», recebi uns quantos mails perguntando explicitamente a quem me referia, e ainda um ou outro declarando taxativamente que eu visava o Senhor X ou Madame Y. Alguns desses ecos interpretavam o artigo como uma defesa empenhada da figura do independente, ao mesmo tempo que outros sugeriam que eu procurara justamente o contrário. Reli então o que escrevera e concluí que pouco mais havia a dizer.

    Posso, no entanto, sublinhar o essencial: o texto não critica o princípio da intervenção política na condição de independente (*), e muito menos se refere objectivamente, e em termos pessoais, a A ou a B. Evoca apenas alguns dos fundamentos éticos da independência política, que me parece deverem ser transparentes e não falaciosos. Que acredito deverem somar diversidade, não repetir o repetido. E não reflectirem, por parte de quem os assume, por vezes em tom de comédia, um sentimento de superioridade moral estéril e até algo obsceno.

    Se alguém não entendeu ou interpretou de outra forma aquilo que escrevi, tal só pode ter acontecido por duas razões: por falta de clareza da minha parte (melhor não sei fazer), ou por um desejo fortemente subjectivo de ler aquilo que lá não está (mas aqui o problema já me transcende). Salvo ocorra algum terramoto, ou Cristo desça de novo à Terra – na condição de independente, claro – não conto voltar ao assunto nos próximos tempos, pois não me parece que ele justifique o esforço nem quero entediar quem por aqui passa habitualmente. Por muito que exista quem possa considerar excitante observar o reflexo da própria imagem e efabular sobre a forma como os outros a observam.

    (*) A partir da década de 1980, eu próprio participei em diversas campanhas, como candidato ou apoiante, na qualidade de independente. E foi nesta que dei agora o meu apoio público às listas do Bloco de Esquerda para o distrito e o concelho de Coimbra. Sem que me passe pela cabeça mimar um «bloquista» da linha dura (que los hay) ou repetir com enlevo frases dos dirigentes do BE. Sem sentir o dever de alienar a minha energia crítica.

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      In-dependências

      O independente

      A pré-campanha eleitoral traz os independentes de regresso à boca de cena. Conhecedores da distância crescente que os tem vindo a separar do cidadão comum, os principais partidos procuraram resolver o problema tomando um caminho fácil e que não requer mudanças de rumo. Integraram então, nas listas de candidatos, elegíveis ou não, pessoas que não são militantes mas dispõem de prestígio político, profissional ou pessoal – para não falar de uma autoridade moral derivada justamente do seu descomprometimento em relação aos aparelhos partidários – capaz de gerar um «valor acrescentado» que pode tornar-se decisivo. A estratégia é democraticamente legítima, mas pode ser eticamente duvidosa, uma vez que muitas dessas «independências» correspondem ao rosto da cedência, ou mesmo do seguidismo, perante direcções políticas que assim maquilham a imagem pública sem cederem um milímetro na intimidade.

      O historial desta «in-dependência» é longo e complexo. Os comunistas foram os primeiros a utilizá-la de forma sistemática, servindo-se frequentemente de compagnons de route, fellow-travellers, intelectuais «amigos» capazes de enunciarem uma política frentista que jamais questionou o seu papel de «vanguarda». Fazem-no ainda, como o pode comprovar, aqui no rectângulo, a intervenção dos «verdes» do PEV e de bem conhecidos militantes crónicos da «independência». Entretanto, todas as correntes passaram a recorrer ao subterfúgio, tendo dado particularmente nas vistas, nas semanas mais recentes, o Partido Socialista, assustado com os resultados das europeias e apostado em oferecer uma imagem pública de abertura – principalmente de abertura «à esquerda» – da qual sente absoluta necessidade. Estes «in-dependentes» surgem então, fundamentalmente, como nomes, rostos, corpos, carreiras, cuja presença visa um objectivo preciso, raramente enquanto factores de alargamento das propostas, das ideias, da capacidade reflexiva e até da representatividade. Por isso se mostram muitos deles mais papistas do que o papa, como é próprio de todos os que enxergam a luz da conversão ou tornam ao redil.

      A independência, convém que se diga, pode no entanto conter muito de positivo. Ela não traduz, ou pelo menos não deve traduzir, apenas um regime de dispensa em relação à presença em maçadoras reuniões partidárias, ao pagamento sistemático das quotas, à sempre penosa distribuição de panfletos, à necessidade de beijar publicamente criancinhas incontinentes e matronas que exalam um certo odor a peixe, a ter de aguentar as tricas e as pancadinhas nas costas que ocorrem nos desvãos e antecâmaras das sedes partidárias. Muito ao contrário, ela pode ser algo de realmente difícil, que implica escolha, capacidade para remar a solo contra a corrente sempre que for preciso, não se envolver em cedências que podem trazer benesses mas implicam também a venda da consciência, saber requerer uma autonomia crítica que não significa desinteresse ou ausência de compromisso. Esta é a independência boa, verdadeiramente útil, com a qual os grandes partidos políticos só teriam a lucrar se com ela soubessem lidar.

      No entanto, a independência da generalidade destes «in-dependentes» não tem essa cara. É certo que um independente companheiro de jornada não pode ser um cavalo de Tróia ou um franco-atirador: aproximando-se de um determinado partido, dando momentaneamente o rosto por ele, tem forçosamente de estabelecer pactos e, sobretudo em campanha eleitoral, acordos mínimos de lealdade e colaboração, não podendo desgastar as campanhas a partir de dentro. Se aceita colaborar «como independente», essa colaboração implica uma certa adesão programática, um mínimo de cumplicidade, empenho também, e bastante. Porém, deveria ainda, e obrigatoriamente, agregar diferença, questionando o questionável, apontando os erros que os militantes partidários se habituaram a desvalorizar ou não sabem ver, propondo caminhos possíveis, ainda que aparentemente «utópicos». Mostrando, afinal, sinais dessa diversidade, dessa abertura, que é suposto trazerem consigo. De outra forma, tornam-se cúmplices, involuntários ou não, de um logro. Mas é justamente este logro que me parece observar perante o espectáculo das razões que muitos «in-dependentes» têm invocado para justificarem a sua opção na batalha em curso. Desculpem que lhes diga.

        Atualidade, Opinião

        Vozes afinadas

        Em tandem

        Completamente de acordo com a leitura de João Tunes a propósito dos blogues em tandem criados para apoiarem, na pré-campanha eleitoral em curso, o PS ou o PSD. Muito de agitprop à volta da agenda das direcções partidárias, muito de panegírico e autojustificação, encómios e louvações, alguma traulitada personalizada também, aqui e acolá. Mas muito pouco, quase nada, de reflexão crítica substantiva, de esforço prospectivo, de polifonia, de debate, de sugestões no sentido de revisitar, para não repetir, os cenários do bloqueio político que temos vindo a percorrer. Sei que à esquerda e à direita desses espaços de opinião, o panorama não é mais animador, mas como falamos de alguma da «massa crítica» publicamente associada às únicas duas correntes susceptíveis de definirem os próximos quadros de governação, e de um esforço aplicado dentro de um território de comunicação onde é suposto aceitar-se maior ousadia, a situação afigura-se algo grave. E tremendamente enfadonha também, já agora.

          Atualidade, Opinião

          Cuidado com as causas fracturantes

          Matraquilhos

          Em solo nacional, três temas azedam facilmente qualquer debate, despertando impulsos primitivos que cegam cidadãos exemplares e assanham pessoas dadas à reflexão: comunismo, religião e futebol (já que o fado perdeu músculo). Os dois primeiros têm sido aqui recorrentemente invocados, mas de futebol não tenho falado. Chegou agora a vez de tocar no assunto, mesmo correndo o risco de despertar o hooligan escondido que habita dentro de um ou outro leitor.

          A despesa com a compra de jogadores por parte das maiores equipas é, nas circunstâncias da vida do país e atendendo à dimensão financeira dos clubes, qualquer coisa de obsceno. Ainda assim, nos tempos mais recentes, Porto e Sporting têm mostrado um comportamento despesista aparentemente controlado: o primeiro, por causa dos sucessos desportivos e porque gasta menos com os jogadores que compra do que com aqueles que vende; o segundo, porque tem mantido uma política de aquisições relativamente moderada. Já o mesmo não se passa, todavia, com o Benfica, que todos os anos compra uma dúzia de futebolistas bastante caros, cedendo-os no ano seguinte por valores inferiores. Talvez seja preciso recordar aos mais distraídos que as receitas desportivas do «clube da águia», frequentemente fora da Liga dos Campeões, têm sido inferiores às dos outros dois, apesar de ter ainda o maior número de adeptos. Entretanto, só neste início de época já gastou mais de 23 milhões de Euros, prometendo outras compras para os próximos dias.

          Nada disto incomodaria particularmente se não fossem duas situações objectivas. Desde logo o facto de o Benfica (como os outros, aliás) continuar a dever muito dinheiro ao fisco, e de a insolvência total ser algo de materialmente possível. Só que no dia em que isso estiver para acontecer, governo algum aceitará a falência técnica do clube, pois tal reduziria metade da população a um intolerável estado depressivo e fá-lo-ia perder as eleições seguintes. Serão então os cidadãos contribuintes, azuis, verdes, encarnados e de todas as cores, incluindo ainda todos aqueles que detestam futebol, a pagar facturas e hipotecas.

          A segunda situação é, no fundo, uma constatação: governante algum se deu ao trabalho de, pelo menos, apelar publicamente ao comedimento dos gastos e à necessidade de se pagar o devido ao erário público. Não sei porquê, tenho a impressão de que o esquecimento tem alguma coisa a ver com a proximidade de uma ida a votos e de ser preciso, da parte de quem deseje ardentemente conquistar a maioria dos eleitores, um certo cuidado com as causas fracturantes.

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            Agarra que é comuna!

            Commie

            Depois do disparate, mais valia ficar calado por umas horas. Mas o homem não consegue, está-lhe na massa do sangue falar pelos cotovelos. Alberto João Jardim veio agora esclarecer aquilo que pretendia com a tal proposta absurda de proibição do comunismo por decreto. Diz que realmente «o ideal seria a Constituição Portuguesa não proibir ideologias», tendo defendido aquilo que defendeu apenas para evitar situações de privilégio. Ora, se o exercício inicial, comparando as duas grandes experiências totalitárias do século passado, ainda se entendia, se bem que em termos menos grosseiros e ignaros do que os propostos, já o mesmo se não aplica ao fascismo e ao comunismo enquanto «ideologias». Se, no plano dos princípios, o primeiro é essencialmente elitista e agressivo, o segundo é – nos fundamentos, não na lógica grotesca dos regimes e dos partidos que perverteram a sua raiz utópica – estruturalmente igualitário e fraterno. Uma banalidade de base da qual alguns comentadores certificados se esquecem. Da qual o político ilhéu não se apercebe. Mas que faz toda a diferença.

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              Seis teses e um oxalá

              Speaker's Corner

              Após as eleições europeias, começou a circular entre alguns comentadores um estranho sentimento de estupefacção e medo. Pelo facto, matematicamente comprovado, de 21% dos votantes ter decidido apoiar as candidaturas de partidos que eles associam – não sei se por convicção, se por mero expediente retórico – a uma «extrema-esquerda» fora do tempo. Mas nem a surpresa faz muito sentido, diante da amplitude das marcas de descontentamento que ampliaram o voto de protesto, nem o pânico se justifica, uma vez que o inimigo é menos perigoso do que parece. Afinal, a Revolução Bolchevique 2.0 não está aí, ao virar da próxima esquina.

              1. Desde logo, apenas existe «extrema-esquerda» onde é possível dissentir de uma esquerda moderada mas efectiva. Ora, como a esquerda configurada no actual Partido Socialista, doutrinariamente confinada a vagas declarações de princípio para uso eleitoral, é essencialmente formal e apoiada num referencial histórico de dimensão sobretudo simbólica, julgo não ser possível extremar o inexistente.

              2. Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português jamais caberão no mesmo saco. É verdade que o Bloco integra ainda pequenos vestígios de uma esquerda radical paralisada no tempo, mas o essencial da sua linha actual é até mais da natureza interpelante, como força de pressão destinada a criar condições para uma governação e uma mobilização social à esquerda.

              3. Já o PCP continua a ser, e não se vislumbra que possa mudar nos tempos mais chegados, um partido de certa forma ambíguo: com uma prática pública protestativa e de contrapoder, mas ao mesmo tempo, e apesar de teoricamente concebido como vanguarda imaginária da luta pelo poder de Estado, sem propostas concretas sobre o que fazer com ele.

              4. A esmagadora maioria dos votantes do BE jamais aceitará uma partilha de poder ou mesmo uma coligação eleitoral com os comunistas. A mesma coisa se passa, em sentido inverso, com uma grande parte dos eleitores do PCP e com a generalidade dos seus militantes. Para além de uma eventual confluência de princípios, existem experiências, culturas políticas e até marcas geracionais que os colocam em planetas diferentes.

              5. Falar hoje de «extrema-esquerda» não é de falar de partidos como estes, com programas e estruturas dirigentes estáveis, com compromissos públicos, com ligações internacionais conhecidas, com uma integração mínima no sistema democrático parlamentar, com fundamentos ideológicos minimamente reconhecíveis. É antes falar das margens, algo anárquicas e bastante móveis, que agora se reconfiguram fora deles, ao sabor de causas e movimentos nos quais podem exprimir a sua radicalidade.

              6. Se existem então razões para que o sistema e os seus defensores possam exprimir sentimentos de medo, elas não se encontram em partidos como os citados, que veiculam pontos de vista e interesses reconhecidos. Encontram-se antes na própria incapacidade dos grupos vocacionados para a gestão do sistema – a começar, no caso em apreço, pelo PS – que se deixam desvitalizar politicamente e se mostram incapazes de agregar os agentes mais dinâmicos e uma cidadania activa, trocados por exércitos de gestores mais ou menos competentes, mas conformistas e sem rasgo.

              Dito isto, insisto em que a preocupação dos aparentemente apavorados comentadores visa objectivos errados. Seria mais interessante se ela pudesse voltar-se para a compreensão dos bloqueios do poder. Oxalá alguns deles o possam entender rapidamente.

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                Teerão também é aqui

                Teerão

                Nas eleições iranianas, juram os apoiantes de Moussavi e confirmam os observadores, ocorreu uma manipulação em larga escala dos votos e dos resultados destinada a assegurar a vitória de Ahmadinejad. A verdade é que, para além da luta eleitoral, se defrontam hoje no Irão dois modos incompatíveis de viver o Islão. Não dois ramos de uma mesma religião, mas duas formas de viver a vida da qual a religião é apenas uma parte. Uma que visa o unânime, a tirania do livro único, para a qual a modernidade, os direitos humanos ou a evidência social das mulheres constituem uma criação demoníaca que é preciso esmagar. A outra que é capaz de partilhar uma experiência humana contraditória e plural, mais próxima de uma ancestral cultura islâmica de liberdade que nos últimos tempos tem sido esquecida. Duas formas de estar no mundo que correspondem a dois modos de vida: o pulsar de um universo peculiar mas integrador de uma tradição partilhada, global, jovem, aberta à diferença, contra o ritmo cadenciado do ódio cego, da escalada da violência, do obscurantismo e da recusa da interacção com o diferente. Os que aceitam falar contra aqueles que escolhem obedecer. Não ter posição neste confronto, fazer de conta que não é connosco, ou, pior, tomar partido por Ahmadinejad só porque este se arvora em paladino do anti-americanismo, apenas revela cegueira e menosprezo pelos princípios básicos de uma ética democrática.

                Adenda: Ontem mesmo a nossa «televisão de serviço público» falou da situação no Irão durante 30 segundos no preciso momento em que a BBC News passava imagens em directo dos confrontos em Teerão. Após uma reportagem de cerca de 18 minutos sobre as andanças mundanas daquele rapaz madeirense que joga à bola.

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                  Um filme que já vimos

                  Sentido de voto

                  As eleições europeias são, numa certa medida, as mais importantes de todas. Não decidem quem nos vai governar a casa ou quem guardará durante quatro anos a chave da junta, mas como nelas o «voto útil» tem reduzido peso, expressam de forma mais completa que as legislativas ou as autárquicas a vontade de muitas pessoas comuns. Além disso, uma grande parte dos sectores mais despolitizados, que decidem muitos dos resultados, nesta altura deixa-se ficar em casa a ver a TVI, ou vai dar milho aos pombos e fazer o circuito dos centros comerciais. Sobressai então, um pouco mais, a opinião daqueles que a têm. Mesmo quando ela se traduz em votos dispersos, deixados em branco ou anulados com um risco de alto a baixo.

                  Isto confirma o absurdo das interpretações de sectores próximos da direcção actual do PS, que, em estado pós-traumático, se centram agora na vertigem da bipolarização e insistem na ideia peregrina segundo a qual escolher opções «menores», ou que jamais serão governo, é «fazer o jogo da direita». Essas pessoas sabem muito bem que, se não ocorrer um cataclismo social neste momento imprevisível, tanto o Bloco de Esquerda como o Partido Comunista atingiram o maior score possível, e, em conjunto, jamais superarão os 25 ou 26 por cento dos votos, servindo-se desta previsão para minimizarem a escolha do grande número de pessoas que votou nesses partidos sem necessariamente se reverem neles e reconhecendo aquilo que os separa. Mas isso significa reduzir a democracia a uma espécie de teste americano com duas opções, sendo a «esquerda» da qual falam aquela que sabemos: uma área de gestão realista, desvitalizada e soporífera, filha unigénita da decrépita «terceira via», que reduz a política ao circo mediático, à genica pré-formatada das jotas e à capacidade de desempenho dos comissários políticos. De «esquerda», de «esquerda», sobra então um passado legitimador, a cor da bandeira, o «punhinho fechado», e umas quantas frases ocasionais usadas em campanha.

                  Muito pelo contrário, se o alargamento do espectro político pode implicar dificuldades futuras – leia-se, dificuldades em produzir e manter maiorias absolutas – enriquece também a diversidade democrática e contribui para o empenho na coisa pública de um maior número de pessoas. As dificuldades resolvem-se com aproximações, com acordos, com verdadeiro debate, com algumas cedências de todos, e não com a constante submissão a uma força hegemónica mais bem colocada para ser poder ad infinitum e impor, sem dar ouvidos aos outros, as leis que bem lhe apetecer rabiscar. Afinal, um filme que já vimos. Um filme mau, por sinal.

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                    O fantasma de Jdanov

                    Jdanov

                    A reunião de Hugo Chávez com «intelectuais socialistas e revolucionários», destinada a atenuar o impacte de um encontro internacional sobre liberdade e democracia a decorrer ao mesmo tempo em Caracas, por causa do qual Mario Vargas Llosa ficou retido e foi enxovalhado em pleno aeroporto da capital venezuelana, faz, pelo simples facto de afastar, enquanto intelectuais, essas pessoas das «outras», ecoar ideias velhas e perigosas. Evocar tempos sombrios que saltam do além-túmulo para atemorizarem os vivos. A possibilidade enunciada de existir quem possa pensar, escrever, falar, representar, pintar ou filmar de um modo objectivamente «patriótico», «socialista», «revolucionário» – ou mesmo «proletário», como se tentou noutros lugares –, naturalmente situada num lugar privilegiado de acesso ao poder «revolucionário» e às honrarias destinadas aos melhores cidadãos, abre sempre as portas a um universo monolítico e carcerário. Ao qual, pela menorização social e pelo castigo objectivo determinado pela sua diferença, são confinados todos os que se atrevam a pensar à margem do paradigma celebrado. Mesmo aqueles que pisem, solitários e sem programa político visível, o seu próprio caminho. Os autoproclamados «intelectuais socialistas e revolucionários» deveriam ser os primeiros a percebê-lo – para mais com a experiência histórica do seu lado –, recusando aceitar o estatuto de casta ou servir de tropa de choque. Mas preferem acobardar-se, vestindo a camiseta vermelha e tomando-se por valentes.

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                      Pela igualdade

                      MPI

                      Fui uma das cerca de 800 pessoas que subscreveram inicialmente o documento fundador do MPI – Movimento pela Igualdade no acesso ao casamento civil. A apresentação pública do manifesto teve lugar neste domingo. Pode conhecê-lo e assiná-lo também aqui. Transcrevo o parágrafo final, aquele que define a meta mais essencial deste esforço.

                      O acesso ao casamento civil por parte de casais do mesmo sexo, em condições de plena igualdade com os casais de sexo diferente, não trará apenas justiça, igualdade e dignidade às vidas de mulheres e de homens LGBT. Dignificará também a nossa democracia e cada um e cada uma de nós enquanto cidadãos e cidadãs solidários/as – e será um passo fundamental na luta contra a discriminação e em direcção à igualdade.

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                        Foucault lido às avessas

                        Classroom

                        Os professores reduzidos à condição de robôs palermas ou indigentes mentais: «Não devem decorar as instruções ou interpretá-las, mas antes lê-las exactamente como lhes são apresentadas.» Os alunos tratados como soldados instruendos em sádicas sessões de ordem unida: «Agora vou distribuir as provas. Deixem as provas com as capas para baixo, até que eu diga que as voltem.» Ou então: «A primeira parte da prova termina quando encontrarem uma página onde está escrito PÁRA AQUI!» Fiz todos os meus exames do secundário na década de 1960 – incluindo neles as temidas provas de «admissão ao liceu» e de «aptidão à universidade», vigiadas por professores de porte austero e fato completo – e jamais observei tal obsessão com a rigorosa sequência dos rituais e o controlo dos corpos. Michel Foucault lido às avessas pelos seres andróides do Ministério da Educação. «Podem sair. Obrigado(a) pela vossa colaboração!» Ler para crer.

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                          O silêncio dos culpados

                          Silent TV

                          O episódio televisivo que envolveu na passada 6ª feira, durante o telejornal nocturno da TVI, a jornalista Manuela Moura Guedes e o bastonário António Marinho Pinto, não foi um acontecimento banal ou passageiro. Pode dizer-se, sem hipérbole, que em 35 anos de democracia, raras vezes se viu verbalizada uma acareação tão directa de critérios acerca do modo de informar e de fazer jornalismo. Concorde-se ou não com o estilo ou com algumas das atitudes públicas de Marinho Pinto – e eu discordo de muitas –, a verdade é que este, servindo-se na perfeição da mesmíssima estratégia retórica, e da mesmíssima agressividade, habitualmente utilizadas pela sua entrevistadora, questionou ali com frontalidade a transformação sistemática do trabalho informativo num libelo acusatório lançado sobre quem se entrevista ou sobre muitas das pessoas às quais se refere.

                          Bastante mais significativo que o episódio em causa é, porém, que um tal momento de televisão – no qual, aliás, escorreu esse «sangue» tão ao gosto de um jornalismo que tem vindo a fazer escola e do qual Moura Guedes é um dos rostos mais conhecidos – esteja a correr na blogosfera à velocidade da luz enquanto é completamente ignorado pelos jornais nacionais e pelas televisões. O néscio e «bigbrotheriano» corporativismo jornalístico que está por trás desta exclusão, silenciando ou minimizando os argumentos de quem ousa discutir critérios e estilos no modo de informar, é um perigo para a democracia. Deve ser uma causa nossa denunciá-lo e combatê-lo.

                          Adenda: Ao fim de mais de 48 horas, um ou outro jornal refere finalmente, embora apenas a título informativo, o episódio Guedes-Pinto. Prova provada de que vale a pena mexer na ferida.

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                            A flor na lapela

                            Manuel Alegre

                            Assistimos na noite passada, à hora de jantar e praticamente em directo, ao fim da carreira de Manuel Alegre. À morte política, em vida, de uma dos últimos protagonistas da fase construção do nosso Estado democrático. A anunciada automarginalização dentro do Partido Socialista é, naturalmente, uma escolha dele. É lícita e será até compreensível. Se fosse alguns anos mais novo talvez tentasse ainda uma outra saída, mostrasse um outro arrojo, mas é provável que agora não se sinta já com força e ânimo para recomeçar do zero com base num projecto cheio de intenções tão boas quanto vagas. Para mais, um projecto politicamente inócuo que deveria obrigatoriamente transportar às costas. Mas já me parece de uma inocência inaceitável, revelada por diversos comentadores políticos – e, eventualmente, partilhada pelos próprio Alegre e por muitos dos seus apoiantes -, que se pense sequer na possibilidade real de o vermos transformado numa espécie de «reserva moral» para nas próximas eleições presidenciais derrotar o candidato da direita.

                            Quem está atento a tudo aquilo que dentro do PS se tem escrito, dito e feito para isolar e contrariar Alegre e os seus próximos, sabe que a esmagadora maioria do aparelho partidário, aquela que já se formou numa intervenção política meramente pragmática e pós-ideológica, é visceralmente «alegrofóbica» e tudo fará para frustrar essa possibilidade. Alegre não deverá ser candidato presidencial pelo PS, mas, se por um conjunto de circunstâncias muito especiais o vier a ser, estará derrotado à partida pela aversão e pelo demissionismo das estruturas formais dos próprios socialistas. Quanto à ideia de meter três ou quatro simpáticos alegristas no Parlamento, a concretizar-se ela constitui, evidentemente, um bombom oferecido por Sócrates para acalmar as hostes do MIC e conter a deslocação de uma parte do seu eleitorado natural para o score do Bloco de Esquerda ou para a abstenção. Uma flor na lapela do cinzento casaco socialista, nada mais.

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                              Audácia precisa-se

                              aborrecimento

                              Sublinho aqui, a traço grosso, o recente post de Joana Lopes a propósito das limitações de um sistema político que gira apenas à volta de duas categorias ultrapassadas (e não necessariamente antitéticas): «bloco central» e «maioria absoluta». Discursos desvitalizados como o do «inenarrável» Vitalino Canas, ou, pior ainda dadas as anteriores responsabilidades e o passado do seu autor, o mais recente adoptado por Jorge Sampaio, caminham no sentido contrário ao da ousadia da procura e do apelo à capacidade para pensar novos caminhos, para os cruzar, para os associar a um esforço, duro mas imprescindível, de mobilização dos cidadãos para a resolução de problemas comuns. Justamente aquilo que este tempo, de crise generalizada e desinteresse pela coisa pública, tanto requer. O post fecha proclamando a necessidade dramática de «arrojo, audácia, tenacidade». Concordo e subscrevo sem a menor hesitação. Só que com os actores que temos será difícil sair do actual estado de sonolência e aborrecimento.

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                                Só para começar

                                A murro

                                Não vem ao caso qualquer simpatia pessoal por Vital Moreira, na realidade nenhuma. Ou a concordância com alguma das suas sucessivas posições públicas, que por acaso nunca ocorreu. Ou o gosto que possa ter em ler os seus longuíssimos textos de opinião, que quase sempre me provocam algum tédio. Como não vem ao caso a infeliz escolha do PS ao designar como cabeça de lista às eleições europeias alguém cujo pensamento político é sinuoso e demasiado imperativo, e cujo estilo é claramente incapaz de agregar empatias. Mas não me é indiferente a forma como os seus direitos enquanto cidadão eleitor e elegível, a sua liberdade de circulação, a sua honorabilidade, e até a sua integridade física, foram ontem colocados em causa, quando do desfile do 1º de Maio organizado pela CGTP, por uns quantos energúmenos cujas simpatias políticas não serão difíceis de estabelecer (aquele repetido epíteto de «traidor» revela-as sem equívocos).

                                Claro que a direcção do PCP não pode ser responsabilizada pelos desacatos que simpatizantes ou militantes seus possam provocar no pleno uso da sua exaltação e da mais-do-que-declarada ausência de respeito pelas escolhas dos outros. Mas já é responsável – e esta é agora a questão que realmente importa – por não fazer pedagogia democrática ensinando aos seus indefectíveis prosélitos, antes e depois do episódio, que em sistemas políticos multipartidários existe, ou deve existir, um direito irrevogável ao exercício de opinião e à mudança de perspectiva. Bem como regras de convivência. Nestes casos, quem cala ou assobia para o lado, quem desculpabiliza, consente, e afinal todos sabemos como no país ideal que a generalidade dos quadros e militantes comunistas tem na cabeça a voz do adversário e, mais ainda, a do apóstata, deve ser emudecida. Só para começar. Não é novidade alguma, mas convém relembrar de vez em quando.

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                                  Palavras públicas (sobre o Twitter)

                                  Notificador

                                  Ando há dias a congeminar este post. A medir o que nele poderia dizer sem passar por inimigo das redes sociais na Internet, ou fazer figura de antipático aos olhos de pessoas que irão pensar que me estou a referir a elas. Acabei por ser impelido a escrevê-lo por um pequeno apontamento, para a qual me chamaram a atenção, e no qual se equipara ao Twitter uma geringonça, instalada no ano de 1935 em ruas, lojas, estações de comboio e outros locais públicos da cidade de Londres. O Notificador – assim se chamava o aparelhómetro – permitia que o utilizador deixasse pequenas mensagens, escritas em papelinhos, as quais funcionavam como recados destinados a determinadas pessoas. A ideia, aparentemente simples, parecia boa e útil, sendo estranho que não tivesse pegado.

                                  Ela dependia, porém, de uma certa capacidade de permanência dos referidos papelinhos, pois estes deveriam manter-se visíveis durante pelo menos 2 horas. Ora é justamente aqui que falha a comparação com o Twitter. O defeito poderá ser meu, mas desde que por ali comecei a ter bastantes friends que escrevem 100, 150, 200 mensagens diárias, a interactividade tornou-se quase impossível, uma vez que essa cortina de recados impede uma leitura adequada – por vezes, ao fim de 5 ou 6 minutos as nossas mensagens foram já afogadas por largas dezenas de outras – e quase inviabiliza uma verdadeira conversa. A não ser que as pessoas envolvidas estejam durante horas com boa parte da sua atenção virada para esta actividade.

                                  Vejo o Twitter como uma coisa divertida e certas vezes bastante útil, mas que se pode tornar maçadora para quem está absorvido noutras tarefas e, logo que se liga, vê a mesma pessoa, a mesma cara, a surgir no ecrã em cascata. Durante tanto tempo diário que, certas vezes, nos questionamos sobre a forma como essas pessoas encontrarão lugar para lerem os artigos e os livros que recomendam, para verem os filmes e programas de televisão que sugerem, para viverem a vida «lá fora» da qual falam. Julgo, sinceramente, que deveria existir uma espécie de twittiquette. Uma boa regra, provavelmente a única, consistiria então em que ninguém pudesse enviar mais do que 10 mensagens por hora. Mesmo assim os viciados ainda poderiam enviar mais de 200 por dia, mas dariam tempo aos outros para respirarem e deixarem os seus próprios recados, informações ou fugazes tonterias. Admito, no entanto, que não tenha percebido muito bem a lógica da coisa e possa andar a marinar num erro qualquer.

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                                    O Largo

                                    Forgive| Never

                                    Neste 25 de Abril, a Câmara de Santa Comba Dão irá inaugurar um Largo António Oliveira Salazar «requalificado» em conjunto com «o seu espaço envolvente». Festa rija, aguarda-se, pois a cerimónia contará com «a actuação da Tuna de Santo Estêvão» e «haverá porco no espeto» à discrição para fidalgos e vilões. O vice-presidente do município afirmou, entretanto, que a escolha da data para a inauguração não tem qualquer significado político: «não há nenhum significado especial nisso». E o próprio presidente declarou, num rasgo de lucidez, que o espaço «já tem esse nome desde antes do 25 de Abril». Afinal o Dia da Liberdade também não possui, como sabemos, um significado de maior. Comemora-se uma revolução que por acaso determinou a segunda morte do ditador do Vimieiro e entre outras coisas permitiu, ao que parece, a valorização do próprio poder autárquico, mas nada disso parece relevante face à magnitude do vulto assombroso do sempiterno senhor doutor. Valorizando o papel depurador do esquecimento na construção de uma memória mais justa, Marc Augé frisou que é preciso esquecer para lembrar, mas aqui inverte-se processo: trata-se de evocar o passado, de celebrá-lo, para fazer de conta que apenas ocorreu um ténue virar de página. Imposto, talvez, por uma arreliante brisa.

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