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Um bom exemplo?

Cidinha

Tal como tantas outras pessoas, aderi de imediato ao vídeo de Cidinha Campos que tem circulado por tudo quanto é Internet lusófona. Ao ponto de já ter chegado à televisão portuguesa, cada vez mais seguidista em relação ao que se passa na rede. Não é difícil explicar a adesão automática a esse vídeo. A minha e a da nova legião transatlântica de admiradores da deputada estadual do Rio de Janeiro. Habituados a receber as ondas de choque de uma certa classe política brasileira, tantas vezes capaz de contemporizar com comprovados actos de corrupção, a reacção perante um gesto de denúncia tão claro e veemente só poderia ser de simpatia. Em Portugal, acostumados a um parlamento maioritariamente desbotado, no qual mesmo os deputados menos comprometidos com o sistema de prebendas institucionalizado pelo «centrão» jamais excedem o domínio da razoabilidade, a atitude ainda parece mais admirável. E se alguém pisa o risco no quadro parlamentar, como o «ministro dos corninhos», é um ai-jesus, credo, que parece impossível. Que saudades de pessoas como Acácio Barreiros (dos tempos da UDP), Francisco Sousa Tavares, Natália Correia ou Odete Santos! Para não recuarmos até Afonso Costa ou José Estêvão…

Perante tanto cinzentismo (alguns chamar-lhe-ão ausência de pathos), como não gostar então da atitude sonora e desempoeirada da deputada Cidinha? Bem precisávamos, diremos muitos, de uma quantas pessoas assim, para ver se, pelo menos por algum tempo, cresciam as audiências do Canal Parlamento e aumentava o interesse dos portugueses pela política. Porém, convirá dizer que nem tudo aqui é luz. Se repararmos bem nos termos e nos argumentos da deputada (perceptíveis neste e noutros vídeos acessíveis no YouTube), observaremos um estilo e o recurso a meios que são inaceitáveis em muitos países democráticos, como o uso público de informação judicial que se deveria manter reservada, a referência por alcunhas ofensivas a pessoas ainda não julgadas e condenadas ou a parentes seus, a exibição livre de epítetos e de insultos, ao melhor estilo de um «tribunal popular», que não podem aceitar-se num parlamento por mais hediondos que possam ser os crimes cometidos pelos seus destinatários. Por isto, e passada a novidade, fui deixando de achar grande piada aos vídeos populares da corajosa Cidinha Campos. Eles são reveladores de um lado populista e demagógico da democracia que também nos deve preocupar. Venha ele da esquerda ou da direita.

Originalmente no Vias de Facto

    Atualidade, Olhares, Opinião

    Com um sorriso nos lábios

    Comrade Cola

    Já perdi a conta ao número de vezes que apontei para crónicas de Antonio Muñoz Molina saídas no suplemento Babelia. Quando o faço é quase sempre para realçar evocações, vidas ou ideias das quais me sinta cúmplice. Mas desta vez será diferente: sirvo-me de um artigo do escritor andaluz para rejeitar a perspectiva que adoptou no artigo desta semana. Intitula-se «Un elogio de la socialdemocracia» e nele Molina esboça uma resenha histórica das conquistas proporcionadas pela experiência social-democrata – equiparada por grande parte da esquerda, desde a intervenção revisionista de Eduard Bernstein, a uma «sistematização da traição» – que funciona ao mesmo tempo como elogio e obituário.

    Primeiramente Molina celebra as conquistas:

    «Todos, sin excepción, en Europa y en Estados Unidos, somos beneficiarios en algún grado de la revolución socialdemócrata, que supo favorecer la igualdad y la justicia fortaleciendo y no sólo conservando las libertades individuales: cuando vamos al médico, cuando asistimos a la escuela o mandamos a nuestros hijos a la universidad, cuando tomamos el tren o el metro, incluso cuando conducimos nuestro coche privado por una autopista que no habría podido construirse sin enormes inversiones públicas.»

    Mas logo de seguida começa a diagnosticar a visível decadência:

    «Y sin embargo, desde los tiempos de Margaret Thatcher y Ronald Reagan, el descrédito de lo público se ha extendido como una gangrena, en la derecha y también en la izquierda, que cuando llega al poder muchas veces adopta un lenguaje entre tecnocrático y cínico. Lo público es ineficiente. Cualquier servicio lo puede prestar mucho mejor una empresa privada, que se rige por la racionalidad del beneficio y no por la rutina o la corrupción de la burocracia. Hay una manera de que las profecías se cumplan: a los servicios públicos se les quitan los medios y se descuida su gestión y así se demuestra que no funcionan y que necesitan ser privatizados»

    O que me tocou negativamente neste artigo não foi o desembaraço da análise, que é patente e nada oferece de novo, mas a perspectiva da qual Molina parte. Propõe uma crítica da esquerda lançada a partir do seu interior, num sentido, aparentemente regenerador, que até pode parecer positivo. Mas a «esquerda» da qual fala, e a única que parece verdadeiramente preocupá-lo, é a do PSOE de Zapatero, ou aquela alardeada por partidos análogos. Esquece pois, ou parece esquecer, que os compromissos à esquerda têm necessariamente de passar por uma abertura que envolva correntes e sensibilidades muito diversas, com tradições também elas diferentes. Tanto quanto possível devidamente imunizadas contra o vírus anestesiante do realismo político e unidas por cinco grandes vocações. A primeira impõe que as conquistas proporcionadas pela social-democracia nos países do capitalismo avançado sejam património a desenvolver e não a rever; a segunda requer que à esquerda não exista «linha justa», e muito menos «científica», à qual as outras se devam submeter; a terceira faz com que seja preciso manter uma grande abertura crítica e uma grande capacidade para ultrapassar os dogmas do passado; a quarta determina que as liberdades públicas e os direitos humanos são, à escala planetária, factores essenciais de equilíbrio e felicidade; e a quinta exige que para construir uma sociedade melhor, mais justa e mais igualitária seja preciso muito mais do que uma gestão «civilizada» do capitalismo: é preciso manter no horizonte a necessidade da sua superação. E trabalhar para isso, é claro. Desconfio, porém, que jamais um vislumbre de tal caminho faça com que Zapatero ou Sócrates adormeçam com um sorriso nos lábios.

    Publicado também no Vias de Facto

      Atualidade, Olhares, Opinião

      Um conceito pesado

      Dominate

      Como muitos outros intelectuais ocidentais, Slavoj Zizek não gosta que se fale de islamo-fascismo. Para explicar a recusa invoca no entanto, em entrevista ao L’Humanité (republicada na edição portuguesa do Courrier International), um argumento algo falacioso. Declara uma verdade («ainda há trinta anos havia uma esquerda laica muito forte nos países árabes») e associa-lhe uma evidência («o Ocidente tomou uma decisão totalmente catastrófica ao apontar a esquerda laica, pelas suas ligações à União Soviética, como inimigo principal, e ao apoiar, por razões estratégicas, os fundamentalistas»). Mas infere daqui que, pela mesma razão, este Ocidente perdeu a legitimidade para apontar o dedo ao modelo agressivo e totalitário com um peso crescente no universo do Islão contemporâneo.

      O argumento terá sido simplificado por Zizek, dado aparecer numa entrevista curta onde é impossível detalhar razões. Mas infelizmente ele tem sido adiantado – justamente na sua versão simplista – por quem se preocupa em desculpabilizar os excessos das vertentes agressivas e intolerantes do Islão como justificáveis em função dos erros dos governos e da comunicação social do mesmo Ocidente. No limite, alguns sectores, de facto pouco ou nada preocupados com um convívio democrático e transcultural paritário, aceitam até esses excessos como parte de uma vertente da luta anticapitalista, anti-imperialista e anti-sionista que, na sua leitura míope e elementar, o radicalismo islâmico protagonizará de maneira legítima. Esquecendo, desta forma, a longa tradição histórica de um Islão tolerante para com o laicismo, incluindo o de pendor socialista, que tem sido particularmente reprimido por esse lado exaltado, fanático e totalitário de certas organizações e de determinados regimes auto-intitulados «islâmicos». Ou, se se quiser, «islâmicos de certa maneira».

      Sem papas na língua comme d’habitude, Christopher Hitchens – que ainda no passado 18 de Fevereiro esteve por cá, na Casa Fernando Pessoa, a defender «a urgência do ateísmo» – estabelece, em artigo publicado em 2007 na revista Slate, um conjunto de «similitudes óbvias» entre o fascismo histórico e o islamo-fascismo, conceito que aceita sem grandes objecções:

      «Both movements are based on a cult of murderous violence that exalts death and destruction and despises the life of the mind. (‘Death to the intellect! Long live death!’ as Gen. Francisco Franco’s sidekick Gonzalo Queipo de Llano so pithily phrased it.) Both are hostile to modernity (except when it comes to the pursuit of weapons), and both are bitterly nostalgic for past empires and lost glories. Both are obsessed with real and imagined ‘humiliations’ and thirsty for revenge. Both are chronically infected with the toxin of anti-Jewish paranoia (interestingly, also, with its milder cousin, anti-Freemason paranoia). Both are inclined to leader worship and to the exclusive stress on the power of one great book. Both have a strong commitment to sexual repression – especially to the repression of any sexual ‘deviance’ – and to its counterparts the subordination of the female and contempt for the feminine. Both despise art and literature as symptoms of degeneracy and decadence; both burn books and destroy museums and treasures.»

      É verdade que o uso da expressão islamo-fascismo pode ser histórica e conceptualmente discutível (como se sabe, o próprio uso alargado do conceito de fascismo é-o também). E é com toda a certeza injusto para com toda a tradição do Islão e para com muitos muçulmanos que são até vítimas dos seus ditames e das suas práticas. Mas corresponde a uma experiência com a qual todo o mundo – a começar pelo islâmico – tem de se confrontar. Aceitar a realidade política e cultural do islamo-fascismo constitui uma precaução que em nada deve afectar o relacionamento pacífico com o mundo islâmico. Uma conexão que, todavia, não pode ser mantida a qualquer preço.

      Adenda – Um erro de Hitchens no qual não reparei ao fazer a transcrição em copy-paste: a frase “Viva la Muerte!” foi bradada, em 12 de Outubro de 1936, durante um confronto público com Miguel de Unamuno, por José Millán-Astray – aliás, hoje recordado quase exclusivamente por estas palavras assassinas –, e não por Queipo de Llano.

        Atualidade, Olhares, Opinião

        O nosso mahatma

        Tenho, como o terá qualquer pessoa que não considere os Médicos Sem Fronteiras e a AMI organizações não-governamentais ao serviço dos bárbaros do ocidente, um enorme apreço pela actividade de Fernando Nobre no campo da medicina humanitária. Pessoas de diferentes quadrantes que o conhecem garantem-me também tratar-se de uma pessoa afável, simpática, honesta e trabalhadora. Não me parece, porém, que só por si tais habilitações o qualifiquem especialmente para poder tornar-se em 2011 o próximo PR. A sua experiência política é, no mínimo, sinuosa e ininteligível, já que em 2002, com Durão Barroso no Governo, participou na convenção do PSD, em 2006 fez parte da comissão política da candidatura de Mário Soares, nas últimas eleições para o Parlamento Europeu foi o mandatário nacional do Bloco de Esquerda, e meses depois, nas autárquicas, integrou a Comissão de Honra de António Capucho, candidato do PSD à Câmara de Cascais. Além disso, declarar candidatar-se por um «imperativo moral e de consciência para Portugal», falando em abstracto de «valores» que é necessário retomar, é afirmação oca, vagamente «à la PRD» (para quem se recorde ainda do falecido), que nada declara para além da presunção de um papel moralizador e messiânico, e que nada significa em termos de qualificação para um cargo que supõe uma relação de confiança com parte significativa dos cidadãos, uma linha de intervenção previsível, experiência política e um estilo afirmativo e mobilizador. Existir, aparentemente, uma fracção da esquerda que se deixa entusiasmar por esta possibilidade de levar ao poder «a bondade em pessoa» e de assim derrotar Cavaco é, por tudo isto, uma situação que se afigura de recorte esotérico. É preciso não se gostar mesmo nada de Manuel Alegre. Ou ter-se um sentido táctico que toca o absurdo. Ou ainda experimentar uma certa nostalgia pela figura amável de Gandhi, o mahatma, a «grande alma». Só que a missão aqui é outra.

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          Atualidade, Opinião

          Às armas, cidadãos

          trincheiras

          A Plataforma Cidadania Casamento, em consórcio com a Confederação Nacional das Associações de Família – duas organizações cuja designação só por si evoca, por certo, os melhores sentimentos –, resolveu passar à fase de guerra de trincheiras e, na pessoa do general Garcia dos Santos, vem dizer-nos que um grupo de «25 militares de Abril», aberto a novas adesões (e provavelmente a novas experiências), escreveu uma Carta Aberta contra a lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a qual consideram «uma aberração». Os senhores militares e ex-militares em causa têm todo o direito, felizmente, de escrever ou de dizer aquilo que pensam. Agora invocarem o 25 de Abril para uma manifestação pública de homofobia e intolerância é que não lembra a um soldado raso.

            Atualidade, Opinião

            Insistir no óbvio

            Há quase trinta anos que por motivos familiares visito regularmente a Madeira. Apesar de em 1981, quando pela primeira vez desembarquei no Aeroporto de Santa Catarina, ainda se sentir na rua alguma relutância em relação ao «cubano» que chegava do Continente – eu era nitidamente um deles – salvo raríssimas excepções fui sempre bem tratado. E ainda que me desagrade a degradação da natureza e da paisagem urbana suscitadas ao longo destas três décadas pelo crescimento do asfalto e do betão, nunca deixei de me sentir bem na ilha. Gosto da Madeira, gosto da generalidade dos madeirenses, e, não fora detestar andar de avião e sofrer de uma certa «insulofobia», talvez nem me importasse de passar por lá bastante mais tempo.

            Nunca fui ao Porto Santo mas conheço bem toda a ilha da Madeira. Sei por isso que, se retirarmos algumas áreas onde reside a população mais pobre e desamparada, por toda a parte se respira um ambiente de prosperidade: vias rápidas e eficazes, cidades organizadas, um serviço de saúde exemplar, excelentes instalações escolares, transportes públicos eficazes, um óptimo parque automóvel, pessoas geralmente bem vestidas, muitas lojas de artigos de luxo, bons hotéis e bons restaurantes. Uma prosperidade bem visível na vida e nas atitudes de muitas famílias. Como não se vê, nesta dimensão, em parte alguma do resto de Portugal. Hoje mesmo no Público Manuel Carvalho apresenta dados irrefutáveis: o rendimento per capita na Madeira é de 128 por cento da média nacional, e enquanto o rendimento nacional ronda os 76 por cento da média europeia, os madeirenses beneficiam de 97 por cento. Como lembra o subdirector do jornal, «no país mais desigual da Europa, só Lisboa está acima». Desta forma percebe-se que a maioria das pessoas continue a eleger e a adular o aparente arquitecto deste pequeno paraíso?

            Só que ao mesmo tempo – não escrevo novidade alguma, mas convém relembrar – não existe no arquipélago, para além de um turismo de massas sazonal (o antigo, regular e «de qualidade», tem vindo a regredir), actividade económica que aparentemente pague uma situação que nenhuma outra região do país mantém. Não existe uma única indústria (não conta, naturalmente, a produção semi-artesanal de vimes e de bordados), o campo vive quase em regime de monocultura (a videira ou a bananeira ocupam a paisagem cultivada visível), não existe criação de gado significativa ou actividades derivadas, o comércio tradicional definha a olhos vistos. E, pior, não se pensa, não se fala, numa alternativa a este deserto económico. Há, sim, um consumo de bens elevado, condicionado pelo Governo Regional que é o principal empregador e o grande padrinho, e por uma política de subsídios que torna tudo – educação, saúde, transportes – muito mais barato do que em qualquer outra parte do país. Nestas condições, como não apelar em período de crise, à escala nacional, à contenção de quem se encontra em melhores condições para a aplicar? Justamente porque beneficiou da solidariedade forçada de quem manteve o cinto apertado enquanto a partir do palácio rosa da Quinta Vigia se abriam os cordões «à grande e à madeirense». A ser aplicada, a solidariedade não pode ter sentido único, por muito que o senhor que se sabe vocifere e estrebuche ou se faça passar por engraçadinho. Para o bem de todos, incluindo naturalmente os madeirenses.

              Atualidade, Olhares, Opinião

              Centenário na estrada

              O Centenário

              Cavaco destacou dos valores republicanos, como era de esperar, «o amor à pátria e a ética na vida política». Já Sócrates anotou como capital «a importância atribuída à educação». Para além do cerimonial da ordem e do folclore já a rodar em volta do centenário do 5 de Outubro, dois elementos fundamentais do ideário republicano – que a experiência da Primeira República em larga medida falhou ou distorceu – têm permanecido na penumbra. São eles a igualdade de direitos políticos encarada como uma necessidade (que no entanto excluía ainda as mulheres), e o valor emancipatório da laicidade do Estado, da sociedade e do sistema educativo. Será bastante mais útil e estimulante que nos concentremos na evocação destes – sobretudo numa reflexão colectiva que actualize a sua mensagem – mas duvido que as autoridades públicas ou algumas «comissões de festas» se sintam tentadas a fazê-lo. Vivemos tempos mais fáceis para as liturgias do que para as ousadias.

                História, Opinião

                Uma desatenção da Lusa?

                Passou quase despercebido um despacho publicado há dias pela agência Lusa. Não noticiava nada em particular, nem anunciava algo de novo, resultando o seu interesse de nele alguém naturalizar como aceitável ou mesmo necessária uma prática preocupante. A partir do anúncio, ainda mal esclarecido, de que a TAP teria sancionado pilotos com um «curso de ética» devido a conversas mantidas no Facebook, entrevistava-se um «especialista da empresa de recrutamento Michael Page» capaz de afirmar com a maior candura que na utilização das redes sociais os trabalhadores «precisam de estar atentos à forma como as utilizam, até para não prejudicarem a sua imagem perante futuros empregadores». Considerava-se mesmo que o trabalhador deve evitar informações «pouco abonatórias» para a empresa onde trabalha como forma de proteger o seu próprio trabalho. No referido despacho, Nuno Troni lembrava ainda, e aparentemente lamentava, que para as empresas seja «muito difícil controlar toda a informação que os colaboradores trocam entre si», quer num contexto de trabalho, quer ao nível social, com amigos ou familiares.

                A partir da altura em que a expressão de opiniões e a troca de informações na Internet se universalizou, a partir da altura em que aquilo que cada um escreve passou a ser mais lido e a circular com uma cada vez maior facilidade, quando a velha e já quase esquecida netiqueta cedeu lugar ao abuso do anonimato e à frequente instrumentalização da rede como arma de arremesso, as consequências passaram a ser mais pesadas e, naturalmente, o grau de responsabilidade de quem fala por aquilo que diz tendeu a aumentar. Mas para moderar os efeitos negativos, nas redes de computadores como nos jornais ou na rua, agora como dantes, existem códigos éticos e instrumentos jurídicos, bem como regras próprias de cada um dos meios, que podem humanizar um pouco a lei da selva e alargar a própria noção de responsabilidade. Agora admitir como necessárias e naturais a vigilância e a autovigilância, a coacção da opinião, a anulação da liberdade de crítica, e até, implicitamente, a construção de bases de dados contendo as opiniões dos cidadãos-trabalhadores, tal como o fez o «especialista» da Michael Page, traduz-se num ataque público à liberdade de opinião e numa defesa do silenciamento da divergência. É inquietante que a Lusa, «Agência de Notícias de Portugal», tenha olhado com indiferença para estas declarações limitando-se a passar a mensagem.

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                  Olhares, Opinião

                  A Hora-A

                  Não tenho por Manuel Alegre uma admiração que vá para além daquela que ele me merece como cidadão com um passado de coragem cívica, e, no sentido dilatado do qualificativo, como homem de esquerda. Não o aprecio particularmente como poeta, apesar de reconhecer o valor simbólico ocupado pelas palavras de alguns dos seus poemas na disseminação de uma «cultura de oposição» ao regime derrubado em Abril. E não o considero por aí além como político com obra feita, apesar do recurso tonitruante da palavra, a que recorre, constar da minha memória individual das noites em que ouvia a Voz da Liberdade debitar pelas ondas hertzianas esperança e resistência. Nos últimos anos incomoda-me sobretudo a recorrente presunção de superioridade moral oferecida por um discurso demasiado datado e paternalista sobre Liberdade, Ética, Cultura, Pátria ou Democracia (assim mesmo, abusivamente pronunciados com maiúscula). Mas a verdade é que, perante as arengas vazias de humanidade, de emoção e de utopia dos amanuenses que nos têm governado, e face ao que Miguel Sousa Tavares qualifica hoje no Expresso como a ausência de «uma dimensão cultural e histórica exigível para o cargo que ocupa» comprovada por Cavaco, Alegre parece ser a escolha possível para ajudar a devolver a política à praça pública na qual, em Portugal, ela renasceu. A confirmar-se a candidatura (e a não existir mudança de projecto com o PS de Sócrates a exagerar o protagonismo, evidentemente), votarei em Alegre não porque o sinta como oráculo da Pátria, salvador do povo ou derradeiro avatar de D. Sebastião, mas porque o encaro como veículo para ajudar a exorcizar essa concepção puramente administrativista da política que nos tem subjugado. Já não será pouco.

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                    Opinião

                    Google China, Inc.

                    Google China
                    Imagem: Reuters

                    A Google, Inc. não é propriamente uma corporação de anjos. Passaram já os tempos juvenis e idealistas de Larry Paige e Sergey Brin, os dois ex-estudantes de doutoramento da Stanford University que em 1996 arrancaram com o inovador e eficaz serviço de pesquisa, e nos últimos anos, para crescer e se afirmar no universo empresarial, a companhia precisou estabelecer acordos com grupos económicos e com governos nem sempre interessados na livre circulação da informação. Mas paradoxalmente esta escolha acabou por aproximar um perigo que a pode aniquilar, e por isso há que agir com algum cuidado. Acontece que, dadas as suas características, os serviços da Google requerem uma relação de confiança, um compromisso, com a liberdade fruída pelo utilizador comum, sem a qual este deixará de confiar nos serviços que utiliza, acabando por trocá-los por outros. Não quero ser cínico – nem sou capaz, obviamente, de adivinhar aquilo que passa pela cabeça dos administradores da empresa sediada em Mountain View, Califórnia –, mas estou em crer que a constatação deste perigo terá pesado na atitude adoptada pelos seus responsáveis no conflito que mantêm agora com o governo chinês. A censura sofisticada e implacável da Internet em curso na China – cujo governo continua empenhado em combinar a face mais execrável do capitalismo selvagem, que inclui até a espionagem industrial por via informática, com a vertigem repressiva que traduz o lado mais negro do «socialismo de Estado» – preocupará os responsáveis da Google na medida em que, se estes fazem cedências excessivas ao limitar da liberdade de circulação da informação dentro do imenso território chinês, irão, muito provavelmente, perder a confiança dos utilizadores e clientes no resto do mundo. E não convém arriscar.

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                      Cibercultura, Democracia, Opinião

                      Cepticismo

                      No último dia do ano, o Zé Neves deixou no Cinco Dias uma citação de John Holloway que exaltava a dimensão não-heróica do projecto comunista-radical no qual acredita. Nela se proclama que «o objectivo da revolução é a transformação da vida comum, quotidiana, e é certamente dessa vida comum e ordinária que a revolução deve surgir». Claro que a revolução da qual se fala aqui não é a messiânica (a dos tontos e dos exaltados) ou a golpista (a dos leninistas e dos oportunistas), ambas com R maiúsculo, que apenas valem pela transferência do poder e pela instauração posterior de uma liturgia sacralizadora do «acto fundador» e dos seus intérpretes. De forma diversa, Holloway fala antes da possibilidade de conceber e de instaurar uma ordem do mundo que exige uma perspectiva solidária e uma iniciativa radical em condições de ultrapassar essa «gestão do possível» da qual tanto gostam os reformistas. E que se não esgota na festa da vitória sobre a ordem velha. De acordo. Agora aquilo que não vislumbro é a possibilidade desse gesto refundador emanar naturalmente da vida de todos os dias, e das mãos de pessoas comuns, sem a intervenção de protagonistas organizados e mesmo de heróis que, como todos os heróis, ignoram a hesitação e a dúvida. Como ideia acho-a linda, embora como mapa do tesouro me pareça um tanto fantasiosa. A gestão da fantasia também faz parte da acção, bem sei, só que funciona mais como um pauzinho na engrenagem ou como balanço para o impulso. Não chega para tudo e dura muito pouco. Infelizmente, admito.

                        Apontamentos, Opinião

                        O antiexistencialista

                        Liberdade, liberdade

                        Mal sabia eu, quando falava há poucos dias, durante uma aula, sobre os processos de emancipação diante dos grandes sistemas doutrinários e de afirmação da liberdade individual postos em movimento depois da Segunda Guerra Mundial, e enquanto recordava essa «cultura da antidisciplina» nascida nos anos 50-60 que enforma ainda boa parte do nosso tempo, que antes de adormecer iria ler esta frase: «temos assistido a uma deriva libertária que vai no sentido de que eu desejo pura e simplesmente, eu quero assim e isso é razão e quase que moral suficiente para seguir independentemente do que os outros pensem ou do que as instituições me peçam, sem ter de dar satisfações a ninguém.» Mas felizmente assim passou a ser. E assim vamos basicamente vivendo dentro do universo imperfeito e cada vez mais complexo, mas apesar de tudo mais livre e geralmente mais feliz do que aquele que o precedeu, erguido ao longo dos últimos sessenta anos. Ainda não o disse, mas e importante: quem pronunciou a frase e se lamentou de um tal estado das coisas – em entrevista de tonalidade retrógrada, defensiva e moralista publicada hoje pelo Expresso – foi D. Manuel Clemente, bispo da Igreja católica e Prémio Pessoa 2009.

                          Apontamentos, Atualidade, Opinião

                          De mal a pior

                          Cuba assim, não

                          A Human Rights Watch acaba de afirmar – e prova-o através de um relatório de 123 páginas – que o regime cubano agravou a repressão sobre os dissidentes e apertou a vigilância policial desde que Fidel se retirou da gestão diária do poder e foi substituído pelo irmão Raúl. Um panorama que contraria claramente as expectativas iniciais e que é tanto mais inexplicável quanto a justificação fundamental para a repressão e a «censura revolucionária» – o embargo económico americano associado ao perigo de sabotagem – parecia há poucos meses aproximar-se de uma solução, ou pelo menos de uma viragem, com a nova política da administração Obama. O relatório «Um novo Castro, a mesma Cuba» denuncia ainda uma nova vaga de detenção de opositores ao regime, alguns deles em condições horríveis e alvo de tortura. Claro que os responsáveis cubanos e os indefectíveis amigos da ditadura castrista voltarão a acusar a Human Rights Watch – como o têm feito também, por exemplo, com a Amnistia Internacional – de constituir um «grupo mercenário pró-americano». Mas não provam que as alegações da HRW são falsas. Tudo na mesma, portanto. Isto é, pior.

                            Atualidade, Opinião

                            Olhemos para eles

                            walking

                            Nem sempre concordei com algumas das metas, e sobretudo com muitos dos processos, que dominaram a luta estudantil desde os meados dos anos noventa, após o arranque aparatoso do movimento antipropinas em 1992-1994. Por essa altura, uma parte significativa dos dirigentes associativos empenhou-se numa fuga para a frente, subordinando os seus cadernos reivindicativos à exposição mediática, como se por si só esta legitimasse o seu esforço. Concentrados nos três minutos de fama dos telejornais, eles foram-se progressivamente concentrando numa lógica corporativa, esquecendo a grande maioria de estudantes que não se reviam no «aparelhismo» associativo, e outros sectores universitários, como os professores, geralmente encarados mais como «inimigos de classe» do que como possíveis aliados.

                            Observámos então actividades e «jornadas de luta» verdadeiramente patéticas, com escassas dezenas de estudantes encabeçados pelos seus «dirigentes» – sistematicamente rodeados dos microfones das rádios e das câmaras das televisões – a fecharem faculdades a cadeado, contra a completa indiferença, e até a animosidade, da larga maioria dos seus colegas, dos professores, dos funcionários e da opinião pública. Estive na época em reuniões horríveis, nas quais,  com muitos outros professores abertos ao diálogo e sensíveis a grande parte das preocupações estudantis, fui tratado como um perigoso adversário, jamais como eventual aliado. Vi ao mesmo tempo como a grande maioria dos alunos, incluindo muitos dos mais participativos, observava com o maior desdém a atitude dos que diziam falar em seu nome. O resultado era já previsível e em breve seria confirmado: o recuo e a desmobilização da prática reivindicativa, a reacção defensiva das instituições universitárias, o desinteresse gradual dos cidadãos comuns e dos próprios média, condenando a luta estudantil ao apagamento.

                            Vejo pois com interesse e expectativa a vaga de luta estudantil que parece reemergir do silêncio. Preocupada agora, pelo menos aparentemente, com causas que transcendem a dimensão estritamente casuística e corporativa e comportam um impacto social mais geral, como sejam a crítica do sub-financiamento das universidades e a progressiva exclusão dos alunos com menos recursos materiais. De facto, apenas as preocupações e as palavras de ordem que têm em conta os problemas colectivos podem retirar a luta estudantil do gueto para o qual se deixou empurrar, devolvendo-lhe o estatuto de movimento social forte e respeitado. Os estudantes em luta, nas escolas ou na rua, sempre foram um sinal de futuro, de ousadia, de esperança. Mesmo quando as suas razões e modus operandi pareceram, ou foram, discutíveis. Em momentos como o actual, quando a maioria das nossas instituições universitárias se preocupa sobretudo com a sua própria sobrevivência e os governos se habituaram a impor políticas economicistas sem grande resistência das autoridades académicas, a sua iniciativa é crucial. Olhemos então, de novo, para eles.

                            [Dois posts  de leitura recomendada: um de Hugo Dias e outro de Sandra Monteiro]

                              Atualidade, Ensino, Opinião

                              Rever e desculpabilizar o Gulag

                              Canal Mar Branco-Báltico, 1932.

                              No Público de 13 de Novembro de 2009.

                              Tal como tem acontecido com a tentativa de reexame do Holocausto, decorrem processos de revisionismo histórico da experiência do Gulag que tendem a reduzir o seu papel na edificação da sociedade soviética ou a requalificá-la como opção politicamente válida. Emergem em parte da historiografia e do actual sistema educativo do Estado russo, determinados a justificar perante as novas gerações o uso da violência na construção de uma política centralista e imperial «eficaz». Em The Future of Nostalgia, Svetlana Boym fala de incentivos a uma «megalomania da imaginação» que na Rússia actual se tem servido das dificuldades diárias vividas pelas pessoas comuns para estimular uma revisão heróica e gratificante do passado. Mas estas releituras provêem também dos sectores políticos, próximos ainda da matriz leninista, que conservam uma atracção reverente pelo antigo «país do futuro radioso». Há cerca de uma década, o debate público em torno do controverso Livro Negro do Comunismo terá contribuído para estimular esta via branqueadora e justificativa da violência de Estado.

                              Entre nós, muito mais relevantes do que o caso recente da jovem deputada do PCP que declarou não ter ideias sobre o assunto, ou das afirmações de militantes que dizem ou escrevem aquilo que o instinto gregário e a ignorância determinam, são as declarações de pessoas com reais responsabilidades políticas que se esforçam por limpar da memória ou por desculpabilizar os horrores praticados no sistema concentracionário do «socialismo real». O texto de opinião de António Vilarigues que saiu no Público de 30 de Outubro serve de indicador. Ele contesta os números excessivos apresentados por muitos historiadores para contabilizarem as vítimas do Gulag, o que merece alguma atenção. Mas toca o inaceitável quando se permite comparar o número das pessoas «reprimidas» na antiga União Soviética (as significativas aspas são da sua responsabilidade) com o volume de detidos de delito comum actualmente nas prisões americanas, comparando aquilo que não pode ser comparado e criminalizando quem foi deportado e perseguido apenas por motivos políticos ou étnicos.

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                                Referendo, dizem eles

                                Diversos movimentos cívicos católicos querem um referendo sobre o casamento homossexual. Aceitá-lo seria como ter deixado referendar a pena de morte, a instauração da República, o 25 de Abril, a independência das ex-colónias ou a igualdade política e jurídica das mulheres. O resultado estaria viciado à partida por concepções atávicas e mecanismos de controlo das consciências postos em acção pelos sectores mais conservadores da sociedade. Nestas alturas há que reconhecer alguma razão às palavras de Afonso Costa quando apontava os «indivíduos que não conhecem os confins da sua paróquia, que não têm ideias nítidas e exactas de coisa nenhuma» como carneiros contra os quais o progresso das ideias – «a República» dizia ele – se deve inevitavelmente levantar. A democracia não se referenda, mes amis, e não é, nem pode ser, a vozearia ululante das multidões. É para o impedir que há eleições, sabiam?

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                                  Anticomunismo e poética do comunismo

                                  Anticomunismo

                                  Nos últimos anos, as tentativas de embelezamento desse «mundo a leste» que desabou em 1989 e de mitigação da memória e das consequências do sistema extremamente repressivo que nele germinou, têm atravessado fronteiras. Em Portugal, porém, essas tentativas têm tomado uma forma inusitadamente organizada e sistemática. A causa de tal originalidade é relativamente fácil de decifrar: aqui não se cingem à iniciativa de círculos diminutos e sectários de ativistas, mas contam com o suporte de um partido comunista militante que conserva peso social e detém um lastro histórico respeitável, reconhecido mesmo por pessoas que não partilham o seu ideário e não têm os seus objetivos.

                                  Trata-se de um partido resistente a uma renovação ideológica que é observada como repulsiva traição a valores considerados intocáveis. De um partido que nunca reconheceu as consequências práticas e teóricas do movimento de desestalinização vivido ao longo das últimas décadas por quase todas as organizações homólogas, e que vive condicionado por uma animosidade atávica, inscrita na matriz leninista, contra uma «democracia burguesa» reputada como expressão de um mundo inferior. Comporta-se ao mesmo tempo como bastião tardio da «ordem socialista» que Gorbatchev e os seus cúmplices «capitulacionistas» se encarregaram de dissolver, e tem vindo – de uma forma cada vez mais veemente nos últimos tempos – a promover o reconhecimento, por vezes a defesa, de experiências e de princípios que o próprio PCUS pôs em causa há mais de cinquenta anos, logo após a morte de Estaline. É assim que a Queda do Muro, ao invés de se transformar num fator de reflexão, de ground zero para projetar a busca de alternativas, se transforma num ato de pura perfídia que pôs termo a um universo conceptualmente perfeito, enquanto os crimes do estalinismo internacional passaram a ser olhados como irrelevâncias ou a ser evocados, quanto muito, como «erros» menores e inteiramente justificáveis.

                                  Partindo desta posição, muitos comunistas (do PCP, mas também fora dele) têm observado e comentado, quase sempre de forma crispada e depreciativa, por vezes com alguma violência, os argumentos de quem entende que os horrores do sistema repressivo e concentracionário imposto sobre o mapa do «socialismo real», tal como a punição brutal da dissidência e a gestão do sistema do Gulag e dos seus sucedâneos, não devem ser atenuados e muito menos silenciados. Aqui a palavra-chave é «anticomunismo». Quem critica frontalmente as certezas da direção do partido ou questiona uma certa «mitografia do comunismo» é então acusado de «anticomunista», quem insiste em apontar o falhanço do modelo burocrático e totalitário e em afirmar que foi horror o horror do Gulag é taxado de «anticomunista», quem questiona valores, princípios éticos e perspetivas políticas de uma esquerda autoritarista porque os considera perigosos, sugerindo que podem existir alternativas democráticas combativas, é qualificado sem apelo como impenitente «anticomunista».

                                  A perversão é antiga e integra-se modelarmente na velha tradição dos comunistas russos, anterior à própria Revolução de Outubro – ela está presente, por exemplo, na cisão consciente e brutal com os mencheviques ou na rutura sem apelo com os socialistas-revolucionários –, que foi depois tomada em mãos por outros partidos-irmãos. Basta lembrar os epítetos lançados sobre centenas de milhares de militantes revolucionários perseguidos e abatidos durante as purgas estalinistas, indiciados todos, consoante a etapa da repressão, como «contrarrevolucionários», «fascistas», «provocadores», «capitulacionistas», «agentes da Gestapo», «espiões ao serviço do imperialismo», «lacaios do capital», e, frequentes vezes, «trotskistas», o que no jargão em vigor no Kremlin e no edifício moscovita da polícia política situado na Lubianka passou a significar, no mínimo, criminosos destinados à prisão ou mesmo ao pelotão de fuzilamento. Pode, aliás, estabelecer-se uma analogia moderada com o epíteto de «comunista» atribuído pelo Estado Novo a todo aquele que destoasse da ordem que este procurava impor, a quem discordasse ainda que só pontualmente do governo de Salazar, manipulando e diabolizando a palavra, num quadro que foi agravado com a propaganda da Guerra Fria.

                                  Ambas as escolhas foram e são, para além de potencialmente injustas, completamente incorretas e inapropriadas, voltando-se até contra quem as utilizou e continua a utilizar, uma vez que alienam quem pode, pelo menos em determinados contextos, tornar-se um aliado. Tratam-se, na realidade, de expressões ao serviço de «teorias da conspiração» destinadas a identificar «culpados» para dificuldades e incompreensões que, num quadro democrático, poderiam e deveriam ter sido debatidas ou partilhadas, mas que aqui servem, como referiu Lucien Boia em Pour l’histoire de l’imaginaire, de processos destinados à «redução da história e da política a um só princípio, fundado na crença de que a história avança e a política se faz à custa de conspirações sucessivas». Os conspiradores são seres apresentados como possuidores de uma inteligência degenerada, como génios malignos que é necessário desacreditar e destruir. Esta atitude diabolizante  é, aliás, uma das essências de todos os sistemas totalitários e das ideologias que os servem, e o anti-«anticomunismo» dos comunistas ortodoxos serve-se recorrentemente deste processo.

                                  É verdade que enquanto movimento político e social, e também como atitude individual, o anticomunismo – aqui sem aspas – existe, possuindo um percurso histórico longo e complexo, como o mostra um recente estudo de Miguel Real incluído na obra coletiva Dança dos Demónios. Intolerância em Portugal (Temas e Debates/Círculo de Leitores), mas a generalização constitui um erro de tiro. Porquê? Desde logo porque contestar o dogma ou contrariar a cegueira não significa propor a destruição de quem o faz.

                                  É este um erro flagrante. Para começar porque é inequívoco o direito do PCP à existência como partido democrático e, mais do que isso, é incontornável a relevância do seu papel como parte do passado, do presente e do futuro da nossa vida coletiva. Só que este papel necessário apenas pode ser cumprido de forma plena se nele ocorrer um processo de abertura antisectária à diferença no interior da esquerda anticapitalista, tendo em conta que esta abertura passará inevitavelmente pelo questionamento, doloroso, mas imprescindível, dos dogmas que foram prendendo o partido ao lado negro de um passado que insiste em invocar. Quando tal verdadeiramente ocorrer, quando a experiência da antiga União Soviética deixar de ser mitificada e a maioria dos comunistas aceitar os valores da liberdade individual como matriz constitutiva, ficará claro que o epíteto de «anticomunista» se aplicará apenas àqueles que recusam o direito de opinião e de intervenção aos que se batem contra a ordem capitalista indagando a possibilidade de uma alternativa.

                                  Por isso a experiência histórica do «socialismo real», porque globalmente negativa, principalmente na materialização da sua vertente acentuadamente imobilista, intolerante e repressiva, deve ser olhada de frente, analisada, dessacralizada, criticada sem quaisquer complexos. Seguindo um processo revelado imperativo por três diferentes razões: por uma questão de justiça para com as suas inumeráveis vítimas; para que se perceba que a experiência não pode ser repetida; e para que fique claro que os projetos de mudança devem ter em consideração a defesa básica – a única que pode promover realmente uma atualização do conceito de comunismo – dos direitos humanos e das liberdades individuais, indispensáveis para um desenvolvimento harmonioso de todas as sociedades e para o aproveitamento da capacidade criadora dos seus cidadãos.

                                  É por defendê-lo como especto essencial da vida democrática que muitos homens e muitas mulheres, que não são de direita ou «apologista do capitalismo», se dão ao trabalho – para os dogmáticos, quase criminoso – de exumar cadáveres injustamente esquecidos. Para que a memória da sua luta e do seu trajeto seja limpa de uma vez por todas. Para que se não esqueçam, e para que se não repitam, as injustiças que perverteram o princípio da utopia anticapitalista, cometidas em nome de um projeto igualitário que é, que foi, essencialmente justo ou necessário. Para que o ideal comunista – sinal vital de esperança e de compaixão para com os outros, mas também uma molda do combate pela liberdade – jamais pereça. Foi a comunista Rosa Luxemburgo quem escreveu que a verdade é revolucionária e deve ser sempre exposta, mesmo quando possa ser melindrosa. Negá-lo, isso sim, significará então ser-se contrarrevolucionário e anticomunista.

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                                    «Espalhafato tecnológico»

                                    Tecnologia

                                    «Portugal é o segundo país entre os estados europeus da OCDE mais bem classificados no que diz respeito à sofisticação e ao acesso online a serviços públicos», escreve o diário Público. À frente de nós fica apenas a Áustria e situamo-nos acima do Reino Unido, da Noruega e da Suécia, países que habitualmente encabeçam os rankings relacionados com as tecnologias da informação. Só que em 2008 apenas 18 por cento dos cidadãos portugueses usavam serviços públicos em linha, o que coloca o nosso país em 17.º lugar numa lista de 22 países. Qualquer pessoa que não se deixe impressionar pela política do «espalhafato tecnológico», feito em larga medida de aparências, percebe que a disponibilização dos meios não tem acompanhado o seu uso regular e eficiente. No meio universitário, por exemplo – que julgo conhecer razoavelmente –, na maioria das áreas o aproveitamento dos computadores raramente ultrapassa o processamento de texto, a utilização irregular do e-mail e uma navegação muitas vezes errática. Basta observar-se como a generalidade das máquinas conserva inalterável, anos a fio, a configuração com a qual foram originalmente instaladas, sem esforço algum de personalização e de desenvolvimento. Porque não parar então com o show-off centrando-nos na formação? É muito mais útil, embora se revele menos espectacular e proporcione menores margens de lucro para os sempre prestimosos fornecedores de máquinas e serviços.

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