Arquivo de Categorias: Opinião

O beijo como agressão e um combate necessário

Num dos mais perfeitos filmes de François Truffaut, Baisers Volés (Beijos Roubados), de 1968, estreado entre nós três ou quatro anos depois, Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), o protagonista, vive obcecado com a sua incapacidade para perceber se aquilo que sente por Christine (Claude Jade) é amor ou apenas desejo. Muitas das pessoas que na época viram o filme andaram semanas a debater apaixonadamente a compatibilidade parcial ou a incompatibilidade total entre estes dois conceitos. O papel figurado do beijo – o título saiu de um verso da canção «Que reste-t-il de nos amours», de Charles Trenet – é ali fundamental, dado este deter uma qualidade quando é clandestino. de certa forma «roubado», e outra quando é público e consentido. 

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    JMJ: crítica e discriminação

    Uma boa parte da opinião pública portuguesa, seja aquela que tem voz na imprensa e televisão ou a que se exprime principalmente através das redes sociais, tem vindo a fazer críticas à forma como se organizou e está a funcionar a Jornada Mundial da Juventude de 2023. Boa parte delas prende-se com o despesismo excessivo e absurdo, parcialmente levado a cabo com recurso ao erário público de um Estado que se autodefine como laico. Outra parte liga-se ao modo como o evento está a perturbar a vida corrente de uma boa parte de cidadãos que com ele rigorosamente nada têm a ver. Outra ainda, esta de uma natureza mais objetiva, respeita ao empenho da Igreja católica portuguesa no evento por comparação com a sua simultânea recusa em tomar posição sobre graves e provados comportamentos que têm sido imputados a muitos dos seus membros e colaboradores.

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      Contradições e incoerência

      As opções políticas, se feitas de uma forma honesta e de acordo com escolhas que, não podendo ser iAs escolhas políticas, se feitas de uma forma honesta e de acordo com escolhas que, não podendo ser imutáveis, devem necessariamente ser coerentes, não podem passar por tomar uma posição se o alvo tem um rosto, e outra, inteiramente oposta, se a sua cara é diferente. Não pode, por exemplo, defender-se a democracia em Portugal, no Brasil ou na Ucrânia, e, ao mesmo tempo, aceitar-se a autocracia na Rússia ou a ditadura na China e em Cuba. Como não pode, em processos de justiça seletiva, denunciar-se em alguns casos a guerra, o genocídio, a prisão e a tortura, omitindo-as em outras situações. Como não pode também julgar-se uma determinada reflexão pública – no campo do ensaio ou da crónica política, por exemplo – em função apenas do seu autor: boa, justa e para divulgar se vier de uma figura grada para determinado quadrante político, mas péssima e de rebater ou silenciar se vier de alguém de quem não se gosta, às vezes até por motivos pessoais. Isto para não falar, na linha da crónica de José Pacheco Pereira saída no Público deste sábado, de quem se diz defensor da nossa Constituição saída de Abril, mas ao mesmo tempo fecha os olhos, apenas porque pontualmente lhe convém, às intromissões do Presidente da República em matérias que não são da sua competência constitucional. Ainda que sobre alguns dos temas possa ter razão na parte ou no todo.

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        Eleições em Espanha: quatro sinais positivos

        Os resultados das eleições legislativas em Espanha abriram uma crise política sem uma solução para já à vista. Todavia, por certo que ela surgirá, seja sob a forma de uma grande coligação de partidos orientados basicamente à esquerda – com concessões a algumas pretensões autonomistas -, ou então apontando, o que seria basicamente negativo por introduzir um inevitável extremar de posições, para novas eleições. Seja como for, dos seus resultados, em boa parte inesperados, saíram diversos sinais essencialmente positivos. Para já, anoto quatro.

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          «Antigamente é que era bom»

          Todos conhecemos a frase-feita que proclama «antigamente é que era bom». Todavia, o conhecimento histórico mostra que o princípio subjacente ao seu repetido uso e ao erro de perspetiva que impõe – perspetivando um passado considerado melhor que o presente – é tão antigo quanto a existência humana. Sabe-se que as grandes caçadas representadas nas pinturas rupestres correspondiam a uma idealização da abundância colocada num passado ao qual se desejaria regressar. A idealização do tempo cíclico, que antes da vitória da ideia de progresso acompanhou a maior parte do trajeto das sociedades humanas, reflete essa perspetiva, sempre ligada a um desejo de regresso ao que se cria outrora magnífico.

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            Vento que sopra de Espanha

            Uma vez mais, as eleições no país que nos coube na sorte da história e da geografia ter aqui mesmo ao lado parecem pouco ter a ver connosco. A atenção da comunicação social portuguesa é reduzida, e a ocorrência do tema na opinião pública – se procurarmos ver, por exemplo, a sua presença nas redes sociais ou em debates na televisão e na rádio – é residual. E, no entanto, algo teríamos a ganhar se usássemos alguma da sua experiência como possível exemplo, ou como ponto de partida para olhar num plano comparativo a nossa própria vida comum. Assim aconteceria se, por exemplo, tivéssemos reparado no comportamento dos partidos que participaram na noite de ontem, quarta-feira, no último debate entre os principais candidatos a primeiro-ministro organizado pela RTVE.

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              «Neonazi» é ultraje sério

              O tema deste artigo foi-me sugerido pela leitura de uma entrevista feita ao autor colombiano Héctor Faciolince, saída no diário Público, onde este relata a sua terrível experiência quando há alguns dias um míssil russo caiu na pizzaria em Kramatorsk, no Leste da Ucrânia, onde se encontrava. A explosão provocou 13 mortos, entre eles a escritora ucraniana Victoria Amelina, com quem estava a almoçar: «de repente estávamos no inferno», relata, ainda perturbado e a recuperar dos ferimentos. Lembra, aliás, que o ataque não foi um «dano colateral» da guerra, mas uma escolha deliberada e cirúrgica, associada ao facto do Ria Lounge ser «o restaurante onde todos os correspondentes de guerra na Ucrânia vão quando estão na cidade».

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                Sobre a utilidade das vanguardas

                Vivemos cercados por uma forma conformista de encarar o presente. Segundo ela, as sociedades que não se autodestroem apenas podem ser geridas pelos valores e limites impostos pelo neoliberalismo, apresentado como o mais perfeito e o último dos sistemas que atravessaram a história. Para este, como afirmava Margareth Tatcher e continuam a repetir os defensores do desmantelamento do Estado social, «não há alternativa». Esquece-se a ideia de progresso proposta pelos filósofos iluministas, que orientou os grandes ideais de transformação depois seguidos por mais de duzentos anos. Ao mesmo tempo, fixa-se o futuro num horizonte expectável, de cor cinza, como se a vida das sociedades fosse agora uma eterna repetição, abandonando-se a perspetiva linear do trajeto histórico, potencialmente moderna e libertadora, e retomando-se à tirania da noção circular do tempo, perante a qual nada de substancialmente novo há a esperar. 

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                  Ler jornais no digital ou em papel

                  Como já aqui escrevi, aprendi a ler, antes ainda da primária, com a ajuda do avô paterno e através dos jornais, sobretudo do Diário de Notícias. Terá sido em 1957, pois no ano seguinte já decifrava a propaganda da campanha de Humberto Delgado. Viciei-me logo em informação e cedo passei a ler sem falha vários títulos diários ou semanários, tendo esse número crescido ao longo do tempo. Só o reduzi quando do governo da troika, pois não conseguia pagar tantos jornais e alguns tornaram-se porta-vozes do governo, deixando de me interessar. Ao mesmo tempo, estreei-me a escrever na imprensa aos 17 e não mais parei, tendo ainda, ao longo da vida, sido amigo de muitos profissionais da informação. Além disso, dei aulas num curso de jornalismo por uma década, tendo sido professor de centenas de profissionais. Isto atestará que não sou contra os jornais ou «contra os jornalistas», como certa vez li aplicado à minha pessoa.

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                    «Peso da responsabilidade» e miséria do anonimato

                    Esta crónica não tem um fundo moralista, embora possua um fundamento ético, no sentido proposto n’O Mito de Sísifo por Camus: «Todas as formas de moral se baseiam na ideia de que qualquer gesto tem consequências que o legitimam ou que o negam». Isto implica uma pluralidade de práticas e de valores, julgados nas diferentes construções culturais e políticas como legítimos ou como inaceitáveis. Neste contexto, o iluminismo produziu uma perceção peculiar da moral, capaz de combinar liberdade individual e dever para com o coletivo, e depois o romantismo fez dela estandarte. No século XX, que Michel Winock chamou «dos intelectuais», estes assumiram-na como fator-chave da conduta pública e do reconhecimento social.  

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                      Informação, náusea e exaustão

                      Se os jornalistas e os comentadores que circulam recorrentemente pelas redes sociais apenas à procura de sinais de escândalos, ou para rapinar assuntos e argumentos abordados por outras pessoas que depois desenvolvem nas suas próprias matérias com fumos de grande novidade, prestassem alguma atenção ao que por aqui se vê e refletissem sobre a forma como certos temas são aqui tratados – considerando este espaço, apesar dos grandes defeitos que possui, também como um barómetro – por certo poriam de parte rapidamente certos temas. Com os quais nos massacram diariamente e de manhã à noite, afastando audiências, obscurecendo o clima geral e prejudicando, afinal, tanto a sua profissão quanto a própria democracia.

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                        A asfixia da «cultura do ódio»

                        O que aconteceu há dias com o futebolista brasileiro Vinícius Júnior, do Real Madrid, vítima de racismo durante o jogo com o Valencia realizado no estádio deste clube, com largos milhares de pessoas a urrar e a chamá-lo de «macaco» devido à cor da pele, não foi uma situação excecional. Nem diz apenas respeito ao universo do futebol, onde episódios desta natureza se têm multiplicado. Também não foi só um caso gravíssimo de racismo. Tratou-se sobretudo de um sintoma dessa negativa «cultura do ódio» que está a cercar as nossas vidas e é transversal ao desporto, à política, ao quotidiano e mesmo aos territórios da cultura e do lazer, supostamente mais tolerantes. 

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                          O caso Vladimir Pliassov e a russofobia

                          1. A propósito do «caso Vladimir Pliassov», o professor de língua russa e diretor do Centro de Estudos Russos da Faculdade de Letras Universidade de Coimbra, já aposentado embora dando aulas graciosamente, que depois de 35 anos de serviço foi agora afastado pelo Reitor, sem qualquer intervenção ou sequer conhecimento da sua própria faculdade, por real ou supostamente fazer «propaganda russa» e de Putin junto dos alunos e nas aulas, deixo aqui algumas palavras que em boa consciência não poderia deixar de escrever.

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                            Uma novela assustadora

                            Salvo para o jornalismo sensacionalista e para os profissionais da pequena política, já ninguém aguenta o episódio que envolveu o ministro Galamba e um seu ex-assessor. Independentemente dos detalhes do caso, e de poderem existir alguns de facto complexos, o menor esforço de racionalidade deveria ser suficiente para se perceber que na estrutura de funcionamento de um qualquer ministério existem deveres de confiança política e de reserva. No que está em causa, como na gestão de qualquer organismo de governo, que se saiba existe uma cadeia de autoridade e de responsabilidade, não fazendo cada um aquilo que bem entende. 

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                              Cerco às sedes e lições da história

                              Em 1975, após a viragem de 11 de março, começaram a ocorrer em Portugal, organizados por movimentos terroristas de extrema-direita – os partidos da direita democrática, incluindo o CDS, não participaram como tal nessas ações – cercos e ataques às sedes do Partido Comunista e de algumas organizações da esquerda revolucionária, sendo várias delas destruídas e chegando a haver pessoas agredidas. A violência começou no norte do país, incitada também por setores mais conservadores da Igreja católica, com influência sobre muitas pessoas despolitizadas, mas logo foi descendo no mapa. Parte do que se chamou «verão quente» passou por estes incidentes.

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                                Problemas e desafios da inteligência artificial

                                A inovação tecnológica esteve desde sempre associada a correntes de entusiasmo e adesão, mas também de rejeição e de descrédito. Por isso precisa sempre de persistência e tempo para enfrentar a pressão da desconfiança e, principalmente, do medo. Assim aconteceu em momentos como os da invenção e da difusão da imprensa, do surgimento da fotografia e do cinema, da expansão do telefone, da rádio e da televisão, da massificação dos computadores e da Internet, ou da propagação da leitura digital. Em qualquer deles, a tendência inicial foi para a desconfiança e para o boicote, tomando-se a sua recetividade como algo que os profetas da desgraça, em defesa do «status quo», sempre consideraram mero capricho de quem apenas procura a novidade.

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                                  Cultura da denúncia e assalto à democracia

                                  Todos os regimes autocráticos firmam a sua autoridade no uso arbitrário da força, na eliminação da divergência e na disseminação do medo. Para o conseguirem recorrem ao que Foucault chamou os mecanismos da microfísica do poder, combinação tóxica de vigilância hierárquica e sanção normalizadora que dá corpo à disciplina. Esta foi sempre particularmente severa sob as tiranias e as ditaduras, em especial naquelas que incorporaram o complexo totalitário, capaz de impor, nas palavras de Hannah Arendt, «uma dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida».

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                                    Jornalistas… ou nem por isso

                                    Não apenas por ter aprendido a ler através de um jornal diário, por escrever na imprensa há mais de cinquenta anos, por ter dado aulas ao longo de cerca de uma década num curso de jornalismo de uma universidade pública, ou ainda por tomar a comunicação social como crucial para o adequado funcionamento das sociedades democráticas, tenho o maior respeito pela profissão de jornalista. Sou amigo de alguns e de algumas, e conheço muitos que o são com um J bem maiúsculo, seguindo-os sempre que posso a agradecendo o seu trabalho. Estes vivem a sua difícil profissão com grande empenho, dignidade e valor.

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