Arquivo de Categorias: Opinião

Hipóteses de futuro

Numa perturbante sequência do filme Sátántangó (O Tango de Satanás), do húngaro Béla Tarr, dois homens caminham, longamente e a custo, de costas voltadas para a câmara, por uma comprida estrada de asfalto molhada pela chuva, enquanto toneladas de detritos são empurrados por um vento fortíssimo na mesma direção, envolvendo-os numa paisagem suja e destroçada, e conferindo à sua marcha um sentido de resistência em ambiente hostil. Não é difícil estabelecer uma analogia entre esta cena filmada em travelling e o presente que nos cabe.

Os sinais estão aí. Vemo-los sem olhar, esmagados pelas contas e pelos prazos: comer para viver, pagar a prestação da casa, comprar os comprimidos. Sobreviver com cada vez menos, com o essencial, na fronteira mais recuada da dignidade. Por vezes, já abaixo dela, embora procuremos convencer-nos de que assim não é. Concentramo-nos no essencial enquanto nos dizem que quase tudo é supérfluo, e tentamos não ver o cenário que se abre à nossa frente. Mas é com este cenário, novo para a larga maioria dos que têm hoje menos de quarenta anos, que nos dizem irmos conviver até um dia que ninguém sabe marcar no calendário. Num horizonte de pobreza e decadência que anuncia um país em ruínas. Não as ruínas atraentes e evocativas, na fronteira do épico e do sublime, que tanto empolgavam os românticos, nem aquelas destinadas nos delírios hitlerianos a vincar a sorte dos países conquistados, mas os restos enfadonhos, sórdidos, que vêm com o desgaste e a ausência de esperança. Que não suscitam olhares benignos ou vislumbres de futuro. (mais…)

    Atualidade, Cidades, Democracia, Opinião

    As invasões boas

    Militares russos na Crimeia
    Militares russos na Crimeia

    O pior que pode fazer-se no exame de uma situação complexa é reduzi-la ao aparentemente simples. É como limitar uma árvore à fixidez do tronco, ignorando a instabilidade da folhagem e a projeção da sua sombra. No entanto, na interpretação dos conflitos internacionais, esta é uma prática muito comum, em regra determinada – longe da aparente simplicidade dos conflitos da Guerra Fria – pela ignorância da sua crescente complexidade. Ou então, pior, por condicionamentos políticos que determinam um traço de giz separando de uma maneira demasiado esquemática o bom, o aceitável, o justo, daquilo que se considera mau, inaceitável ou iníquo. Quando afinal tudo se mistura em formas intrincadas, impossíveis de integrar numa interpretação linear que possa ser imposta por decreto ou pela força bruta das armas. (mais…)

      Atualidade, Democracia, Opinião

      O monstro dócil

      A tralha

      Um post escrito há quatro anos e recuperado do arquivo. E não é que, ao relê-lo, nada parece ultrapassado?

      Em Il Mostro Mite, «o monstro dócil», um livro publicado em Itália pela Garzanti, o linguista e ensaísta italiano Raffaele Simone procura mostrar o que separa o ethos tradicionalmente «sacrificial» da esquerda daquele assumido por uma direita que, ao contrário do que acontecia no passado, toma hoje o partido do consumo, do luxo, do despesismo e da poluição desgovernada. A Itália de Berlusconi esteve na vanguarda da mudança, uma vez que terá sido aqui que começou a afirmar-se essa direita do divertimento, da frivolidade, da comunicação televisual, do menosprezo pela arte e pela cultura, da procura desenfreada da riqueza e do prazer. Pelo contrário, a esquerda tem-se conservado essencialmente avessa à lógica consumista, apontando para uma sociedade austera, de renúncia, de regresso ao mínimo. Entretanto algo mudou e a nova sociedade globalizada encontra-se dominada por um padrão de cultura afável, envolvente, consumista, indiferente à renúncia e ao altruísmo. É precisamente este «il mostro mite», a face sorridente e todavia sinistra e prepotente da nova direita que em alguns países da Europa vem empurrando o conjunto da esquerda para um beco aparentemente sem saída. (mais…)

        Atualidade, Olhares, Opinião

        Indiana Jones, o Bloco e a esperança

        Imaginemo-nos na pele de um Indiana Jones sem os golpes de sorte ou os malabarismos de chicote do arqueólogo-herói criado em 1980 por George Lucas e filmado por Steven Spielberg. Em dado momento, caídos numa armadilha feita de alçapões ocultos e sucessivas rampas deslizáveis, para onde fomos projetados enquanto procurávamos uma estatueta egípcia da III dinastia, vemo-nos num instante rodeados de perigos. Com a morte por perto, cercados de cobras venenosas, gigantescos lacraus e humanos pouco amigáveis saídos de outras eras, tudo fazemos então para sobreviver e sair dali com vida. Entretanto não estamos sozinhos. Na mesma armadilha foram também colhidos outros aventureiros, com os quais, por esta ou aquela razão – um plagiara-nos um paper, outro roubara-nos a namorada, um terceiro ultrapassara-nos de forma pouco transparente num concurso – nos havíamos incompatibilizado. Mas diante do perigo maior, que a todos punha a vida em jogo, as diferenças esbateram-se. E foi assim, defrontando corajosamente e em conjunto todos os obstáculos e inimigos, que conseguimos alcançar a única saída possível para regressar ao nosso tempo. Fugindo àquele cenário de pesadelo. (mais…)

          Atualidade, Democracia, Opinião

          As condições de um debate

          Fotografia de Tiago Pereira

          Está marcado para a próxima segunda-feira, em Coimbra, um debate em direto sobre as «praxes académicas» integrado no programa Prós e Contras, da RTP. Como se sabe, o tema está em discussão pelas piores razões, levantando à sua volta bastante poeira feita de desinformação e de interpretações muitas vezes mal fundadas, associadas a um extremar de posições por parte de algumas cabeças mais quentes. O mote do programa, «Sim ou não às praxes?», convida mesmo a uma radicalização das atitudes, a meu ver dispensável e até algo perigosa. Por isso se justifica uma troca pública de pontos de vista serena e tanto quanto possível fundamentada. Apesar da sua materialização depender, neste caso como em qualquer outro, da condução do programa e dos intervenientes, valerá sempre a pena confrontar aos olhos do cidadão comum posições sobre um assunto que de há muito ultrapassou o espaço da estrita realidade estudantil, marcando a vida universitária e as suas envolvências. (mais…)

            Atualidade, Democracia, Opinião

            Cinco mitos em torno das praxes

            De há muito que as «praxes académicas» são noticiadas e debatidas, pelas piores razões, sempre que algum episódio chama a atenção para o seu lado perverso. Mas nunca como agora se tornaram tão visíveis e foram associadas a um tão amplo sentimento público de rejeição. No entanto, ninguém que tenha uma ideia daquilo que de sombrio e ingovernável o seu universo tem vindo a incorporar terá ficado surpreendido pelo que os trágicos acontecimentos da praia do Meco trouxeram a público. Algumas semanas depois do primeiro momento de horror e de espanto, quando o respeito devido à dor das famílias das vítimas forçou alguma contenção, as evidências e os documentos começaram a ser conhecidos, percebendo-se que nada do que se passou foi puramente acidental. Começou então uma avalanche de testemunhos e de informações a propósito das praxes, ao ponto de ser já difícil dizer algo de original a seu respeito. Para pessoas como eu, que participaram na resistência às praxes a partir dos inícios da década de 1970, e que além disso têm pensado e escrito sobre o tema, ainda se torna mais difícil escrever qualquer coisa de novo, pois muito do agora revelado pelos média lhes é familiar. Vou por isso tentar não me repetir, limitando-me a aspetos menos abordados, que associo a cinco mitos projetados a propósito do assunto. (mais…)

              Atualidade, Democracia, Etc., Olhares, Opinião

              Tocar a reunir

              Esquerda e direita não são categorias ultrapassadas, como se proclamava anunciando o fim das ideologias. Também não correspondem apenas à clivagem entre quem defende a importância do social, do coletivo e do papel nuclear do Estado, e quem destaca o lugar do individual, da hierarquia e da iniciativa privada. Na realidade, alguns destes fatores são hoje partilhados por ambos os lados,  enquanto outros, que há cem anos pareciam separá-los para sempre, certas vezes os aproximam. No primeiro caso encontra-se a valorização formal da democracia, que até partidos da direita mais extrema declaram agora respeitar. No segundo, a tentação do centralismo e do autoritarismo, outrora património da direita, que em nome do «socialismo de Estado» alguma esquerda incorporou e preserva como modelo. (mais…)

                Atualidade, Democracia, Opinião

                O ano de todas as esperanças

                Este é o ano do 40º aniversário do 25 de Abril. Para muitos portugueses, a data relaciona-se com a sua experiência de vida. Se já não eram crianças na época que o antecedeu, se não perderam de todo a memória ou se não estavam comprometidos com o regime derrubado, para eles a data incorpora uma corrente forte de recordações. Para os restantes, aqueles que atingiram a idade da razão já depois da data fundadora da democracia, aquilo que os aproxima dela é principalmente a memória transmitida pelos mais velhos e a dimensão simbólica que ela foi incorporando. (mais…)

                  Atualidade, História, Opinião

                  Nos 120 anos de Mao

                  Mao

                  A 26 de novembro completaram-se 120 anos sobre o nascimento de Mao Tsé-Tung. A data foi lembrada em muitos lugares e em diferentes suportes, sobretudo em blogues e murais do Facebook, ou nas primeiras páginas das edições online de respeitáveis diários, mas só lhe atribuiu um destaque maior que o habitualmente concedido a uma vulgar efeméride – como a data da morte de um político ou o dia exato de uma descoberta científica – quem ainda seja capaz de reconhecer alguma coisa de positivo na intervenção pública e no legado histórico do antigo dirigente comunista chinês. (mais…)

                    Atualidade, Biografias, História, Opinião

                    Um Natal pesado

                    O Natal fez sempre parte dos meus calendários. Embora, como acontece com a maioria das famílias portuguesas, a minha não levasse as datas e as práticas do seu catolicismo muito a peito. Talvez por isso a dimensão de sagrado da quadra sempre me tenha sido em boa medida estranha. Nunca assisti a uma «Missa do Galo» e durante anos mantive a convicção que nela se degolava, de facto, um pobre e indefeso galináceo. O meu Natal era feito só de doces muito doces, da ceia noturna, do horror de comer bacalhau (as voltas que a vida dá: agora um prazer), e principalmente dos presentes mais ou menos acompanhados de uns quantos desapontamentos. (mais…)

                      Atualidade, Devaneios, Olhares, Opinião

                      Coimbra como destino

                      Fotografia de Daniel Palos

                      Um despacho da Lusa, veiculado por diversos jornais, divulgava há dias o impasse em que se encontra Coimbra como destino turístico. Apoiados num trabalho de investigação e em diversos testemunhos, os dados revelados não são muito animadores. No essencial, reconhecia-se um razoável aumento do número de visitantes, mas sublinhava-se também o facto de as visitas serem em regra de curtíssima duração, transformando a cidade num apeadeiro e não num destino. A situação traduz, como era de prever e se queixaram alguns dos entrevistados, uma escassa rentabilização do movimento de não-residentes, com um baixo número de dormidas, um impacto residual no comércio local e uma reduzida influência na atividade dos organismos vocacionados para a cultura e o lazer. (mais…)

                        Cidades, Coimbra, Opinião

                        O pântano e a dignidade

                        Fotografia de Nira González

                        Era prática corrente da propaganda do antigo regime a exibição contínua e manifestamente exagerada das pequenas vitórias caseiras. Estas deveriam provar, dentro e para fora das fronteiras, que se éramos pobres e «felizmente atrasados», como Salazar chegou certa vez a descrever-nos, expondo sem artifícios a sua conceção rural e imóvel do mundo, tal não nos impediria de ser melhores que os outros em modestas mas honradas áreas de atividade. Mas por aí deveria ficar o limite da nossa ambição. (mais…)

                          Atualidade, Olhares, Opinião

                          A desgraça pública e a política de alianças

                          O pior dos tempos terríveis que estamos a atravessar é a ausência de esperança. Seria bem menos doloroso passar por tudo isto se pudéssemos pensar que se tratava somente de uma circunstância infeliz, de um transe, de uma passagem necessária, ainda que demorada, para uma situação melhor ou menos incerta. E ainda pesaria menos se pudéssemos vislumbrar uma alternativa política, uma viragem, em condições de devolver, se não todos os direitos perdidos e o quinhão de futuro que conquistámos e nos foi roubado, pelo menos uma gestão profundamente diferente e menos dolosa da coisa pública. Associada a uma política mais solidária e mais justa, menos cínica e insensível, que restituísse a tranquilidade e a segurança que nos fogem a cada manhã que passa. O drama, grande drama, é pois a ausência de uma possibilidade real de pôr termo ao estado comatoso em que a direita neoliberal pôs o país, as nossas vidas e o futuro coletivo. É ela que afasta a esperança e alimenta o desespero. E é ela também que propaga uma perigosa indiferença. (mais…)

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                            O camarada Álvaro

                            Álvaro Cunhal

                            Álvaro Cunhal completaria hoje 100 anos. Nos últimos meses têm-se multiplicado as iniciativas destinadas a celebrar a data, evocando a vida, a intervenção e o legado daquela que foi uma das figuras centrais do século XX português. E que foi também uma das vozes mais respeitadas dentro dos setores, hegemónicos no território da esquerda e no interior do movimento comunista internacional, que pautaram a sua ação pelo «exemplo de Lenine» e pelo modelo de construção do socialismo levado a cabo a partir de 1917 na antiga União Soviética. Tais iniciativas têm assumido diferentes formas: desde uma reedição anotada dos seus escritos a livros de pendor mais ou menos biográfico, passando por estudos sobre as muitas vertentes da sua intervenção pública, dossiês nos jornais, colóquios, debates, exposições, álbuns fotográficos, filmes ou programas de televisão. (mais…)

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                              No reino da apatia

                              Até ao início dos anos oitenta, principalmente na Europa e nas Américas, dois setores sociais mostravam-se particularmente sensíveis aos processos de crítica e de reforma da ordem do mundo, neles jogando um papel muitas vezes decisivo enquanto forças dinâmicas dos tempos de mudança. Pela natureza da sua formação e da sua associação ao mundo do conhecimento, da dimensão essencialmente reflexiva da sua atividade, da sua natural abertura ao mundo e das suas expectativas históricas, os intelectuais – pensadores, artistas, escritores, jornalistas – e os estudantes mostravam-se mais naturalmente dispostos a intervir como fator nuclear, estímulo ou apoio no domínio da reflexão crítica, do conhecimento e da atividade cívica. (mais…)

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                                Mobilização e inércia

                                Fotografia de Cralos
                                Fotografia de Cralos

                                Nasci e vivi até aos dezasseis numa vila do interior beirão. Na época, não existiam por aqueles lados, como não existia em praticamente lado algum, estradas decentes e rápidas. Uma reta de cem metros era tão rara que parecia uma pista de ensaios para fanáticos da velocidade. Notavam-se mais ainda esses limites quando se vivia numa região de montanha que transformava qualquer jornada numa pequena aventura. O trajeto que leva hoje 45 minutos a fazer durava então o dobro, por vezes mais. Além disso, poucos possuíam automóvel e ninguém sem profissão estável e razoavelmente remunerada tinha sequer carta de condução. O isolamento era aí, sobretudo aí, a condição natural da existência, agravado pelo facto da informação que chegava ser parca, lenta e filtrada pela censura. Era o país possível, no qual tudo decorria modelado por aquele «viver habitualmente», sem o calor da novidade ou do desassossego, que à imagem do rústico temeroso das cidades Salazar quisera para todos. (mais…)

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                                  Escutas

                                  Não se percebe qual o espanto por os serviços secretos americanos terem escutado conversas telefónicas mantidas por diversos líderes europeus. Como o terão feito com dignitários asiáticos, dirigentes africanos ou governantes sul-americanos. Pelo menos. Tal como as autoridades inglesas, francesas, alemãs, israelitas, iranianas, russas ou chinesas espiam e escutam toda a gente que conta para as suas contas. E mais alguma por atacado, para o que der e vier. Isto faz-se, com o devido distanciamento tecnológico, pelo menos desde o aparecimento dos Estados. Aliás, só mesmo se fossem completamente incompetentes é que o não fariam. Os trejeitos de contrariedade de Frau Merkl são mero teatro e a indignação hiperfocada em Obama não cola aqui.

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                                    As eleições e os independentes

                                    Os meses que antecederam as eleições autárquicas decorreram como se de repente tivéssemos mudado de país. A intervenção errática e hostil do governo sobre a nossa vida e as nossas esperanças afrouxou significativamente, deixando que nos concentrássemos no território de proximidade administrado pelo poder local. Nem tudo, porém, correu pelo melhor. Apesar de existirem naturalmente diferenças, algumas significativas, entre as listas concorrentes, os seus programas, os processos de aliança que incorporaram ou a qualidade e o perfil dos candidatos, o seu padrão foi demasiadas vezes nivelado por baixo. No Facebook, uma página de «tesourinhos deprimentes das autárquicas», rapidamente popularizada, revelava em tom bastante jocoso um panorama tão extravagante quanto catastrófico. (mais…)

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