Parte fundamental do património histórico e identitário da esquerda contemporânea, ou pelo menos de um segmento importante dela, tem vindo nos últimos tempos a ser esquecida, abandonada ou deixada em estado de hibernação por algumas das organizações políticas e dos movimentos de cidadãos que se consideram herdeiras de pleno direito do seu legado global. Ao longo de mais de século e meio de uma vida complexa, e a par da preocupação com a justiça social, muitos dos seus combates mais importantes e difíceis foram de facto travados em favor de uma democracia vivida sem restrições, da mais completa liberdade de expressão e de opinião, dos direitos das mulheres, do respeito pelas minorias, de um ensino público, de uma política cultural do Estado e de uma civilidade absolutamente laicos, não-confessionais e ao dispor de todos. (mais…)
Neste momento ninguém pode saber como vai acabar a «crise grega». Mas uma certeza parece ter-se instalado: a de que ela é cada vez menos exclusivamente grega, menos parte dos graves problemas que apenas enfrentam os governos da metade sul da Europa, dizendo cada vez mais respeito ao destino comum dos países e dos povos do Velho Continente. Ao mesmo tempo, a onda de choque produzida pela esmagadora vitória eleitoral do Syriza está a suscitar um despertar coletivo e partilhado para outra solução. (mais…)
Escrevo isto sem prazer. A experiência do rancor tem acompanhado parte substancial do percurso histórico da esquerda. Essa sombra pode ser encontrada nos seus fundamentos teóricos, bem como em muitas das escolhas e atitudes que foram construindo a sua identidade como fator de mudança. Toma aí a forma de instrumento do combate político, geralmente fatal quando os conflitos se agudizam. Por outro lado, pode ser observada no relacionamento entre os segmentos e sensibilidades nos quais ela se foi repartindo e espartilhando ao longo de mais de dois séculos. Este é um poderoso paradoxo, capaz de pôr em causa a dimensão agregadora, solidária e antiautoritária inscrita no seu código genético. Separando de forma dramática e irreversível, por vezes com a máscara do ódio, aquilo que poderia ou deveria ter permanecido próximo. (mais…)
Quatro curtas notas sobre o modo como decorreu a convenção da candidatura cidadã Tempo de Avançar, que durante o último sábado reuniu no Fórum Lisboa perto de 800 pessoas. O seu objetivo expresso e comum foi o de preparar uma alternativa de esquerda em condições de se apresentar às próximas eleições legislativas como escolha consistente, construtiva, autónoma e mobilizadora. (mais…)
Conto quatro Charlies em cada protesto de rua pelo ato terrorista de 7 de Janeiro. Podem responder à mesma convocatória, mas chegam de bairros diferentes e seguirão destinos que raramente se cruzam. Há um Charlie de extrema-direita, xenófobo, racista, islamofóbico, que vê no acontecimento um pretexto para atacar a democracia e envenenar a opinião pública com um discurso segregacionista sobre a imigração e a necessidade da força. Há depois um Charlie de colarinho branco, com o rosto do político insolentemente oportunista, sedento de protagonismo, que, como fez em Paris Nicolas Sarkozy, acotovela os outros para chegar à primeira fila e aparecer na fotografia. Há também um Charlie genuinamente indignado mas que desfila como mero figurante, vestindo a t-shirt do Charlie Hebdo porque «toda a gente» a veste. E há ainda um outro Charlie, pouco interessado na linha editorial ou no valor dos cartoons do semanário satírico parisiense, mas verdadeiramente apreensivo com o risco de um rápido recuo da liberdade de expressão e do direito à crítica e ao humor. (mais…)
É óbvio que a presença de um conjunto de governantes do centro-direita, entre eles, dizem, o nosso internacionalmente inócuo Passos, na manifestação que hoje em Paris pretende mostrar um amplo protesto contra o terrorismo, não pode ser fácil de digerir pelas pessoas de esquerda. Em especial por aquelas, entre as quais me incluo, que não aceitam pôr tudo – todas as formas de terrorismo, todos os pressupostos nos quais assenta a liberdade de opinião e de informação – dentro do mesmo saco. A unanimidade diante da defesa desses valores básicos não é sinónimo de unanimismo, uma vez que, para uns e para os outros, o preto e o branco não são necessariamente as mesmas cores nem produzem os mesmos efeitos. No entanto, recorrendo à história e à memória partilhada por várias gerações, recordo aos mais céticos que, quando foi necessário fazer frente a um perigo absoluto e maior, a esquerda francesa, que por certo não era então estúpida nem suspeita de traição face às suas causas maiores, se bateu de armas na mão do lado de De Gaulle, de Truman, de Churchill ou de Estaline. David Cameron e Abu Bakr al-Baghdadi não são farinha do mesmo saco e tal deveria ser óbvio.
Admito que só ocasionalmente passava os olhos pelo semanário Charlie Hebdo e que nem sempre apreciei o teor político de alguns dos seus cartoons, mas não é por isso que aceito a indiferença perante o ataque brutal do qual na passada quarta-feira foram alvo alguns dos seus desenhadores, jornalistas e colaboradores. A barbárie expressa na iniciativa homicida dos assassinos vestidos de negro começou, como se sabe, na vontade de punir com a morte aqueles que consideravam responsáveis por alusões de teor satírico à figura do profeta Maomé. Mas não se tratou apenas de um gesto de vingança em nome de uma conceção rígida e intransigente do Islão: revelou também uma firme vontade de coagir pela força a liberdade de imprensa e o direito de opinião, atacando o papel do humor como instrumento de crítica e de humanidade. (mais…)
Para Albert Camus, a humanidade do indivíduo afere-se, em boa parte, pela sua capacidade de se rebelar contra o mundo, o seu e o dos outros, tal como ele se apresenta. Escapando por essa forma à lógica do rebanho, que não deixa margem para o exercício da liberdade e do compromisso. Todavia, o gesto de revolta apenas liberta enquanto não se volta contra quem o pratica. Em O Homem Revoltado, de 1951, o livro que esteve na origem da sua rutura com Sartre e do conflito que manteve até ao final da vida com a ortodoxia de esquerda e os seus compagnons de route, o escritor ergueu-se ao mesmo tempo contra uma «revolta poética», meramente verbal, formal, imaginada, que não passa de um diferimento por via simbólica ou onírica da verdadeira insubmissão, e contra uma «revolta histórica», que remete para amanhãs distantes, situados num futuro concebido como totalmente perfeito e harmónico. Este caminho consagraria uma ideia de revolução que, ao diluir a intervenção humana num processo histórico que a deve transcender, tornar-se-á inevitavelmente escravizante. (mais…)
A crítica mais justa que pode fazer-se a este texto será talvez a de ele não dizer nada de substancialmente novo. De retomar leituras e posições em relação ao papel desempenhado na atual sociedade portuguesa pelo Partido Socialista que foram já verbalizadas noutros momentos. Todavia, circunstâncias recentes tornaram-nas ainda mais atuais. Qualquer um que se dê ao trabalho, ainda que em observação ultrarrápida, de abordar a história dos congressos do PS, verá como desde o Segundo, ocorrido em Outubro de 1976, tanto nas resoluções aprovadas quanto, e sobretudo, na maioria das intervenções, não se ouvia uma linguagem tão politicamente à esquerda quanto aquela escutada este fim de semana. Ao ponto de, novidade absoluta na história do partido, se fazerem apelos formais a um corte com os setores do centro-direita com os quais nas últimas décadas ele tem preferencialmente dialogado ou governado. Bem vistas as coisas, aquilo que muitos socialistas parecem tentar fazer é o que ao longo dos últimos quarenta anos a maioria das forças à sua esquerda lhes exigiu constantemente: formalizar uma clara rutura com a direita e abrir-se a um efetivo diálogo «à esquerda». (mais…)
Ao contrário do que acontece com a direita, que não mostra dificuldade alguma em esquecer as divergências sempre que está em jogo o núcleo elementar dos interesses e dos ideais que representa, na história e na mitologia da esquerda inscreve-se a bold a constante enunciação de uma unidade ao mesmo tempo desejada e impossível. Para além da ideal entrega comum à busca de uma sociedade mais justa, mais igualitária e do bem-estar para todos, a sua história é feita principalmente de separações e disputas, raramente de aproximações duradouras. Estas apenas foram possíveis, sempre com limites programáticos e temporais, em momentos nos quais a força de circunstâncias dramáticas ou de medidas urgentes se impôs, como aconteceu durante a República espanhola, a guerra contra o nazismo ou as lutas de emancipação nacional e social das décadas de 1960-1970. Mesmo a história do governo de Unidade Popular, no Chile de Allende, tantas vezes invocado como exemplo da cooperação possível das diferentes esquerdas, viveu esse drama. (mais…)
Podemos sempre encontrar, num momento recuado das nossas vidas, a projeção de uma profissão a exercer naquele futuro distante ao qual chegaríamos invencíveis e adultos. Dessa fase dos destinos improváveis lembro-me apenas de querer imitar David Crockett, o explorador do Tennessee, insuperável no manejamento do rifle e na caça ao urso. Mas recordo também o desejo de um dia me tornar jornalista. Em parte por causa dos meus heróis da banda desenhada que o eram também, como Luís Euripo ou Tintim. Mas sobretudo devido à influência dos jornais com os quais apreendi a ler: o Diário de Notícias, do qual o meu avô era «agente e correspondente», e O Primeiro de Janeiro, que ele comprava aos domingos e lia de uma ponta à outra totalmente alheado das rotinas da casa. Imerso nas suas páginas sempre renovadas, na aparência infinitas, passei a associar o trabalho daqueles que os faziam a um imaginário de viagem que me atraía e a uma vida que julgava isenta de rotinas. (mais…)
Juan Carlos Monedero, politólogo da Universidade Complutense e número dois do Podemos, declarou em entrevista publicada recentemente pelo Jornal de Notícias que vivemos tempos «em que precisamos de um leninismo amável». Como parte de um estrito exercício de retórica política este conceito – parcialmente devedor de uma reatualização da «herança de Lenine» projetada à margem da sagrada cartilha do marxismo-leninismo saído dos anos trinta – pode ter algum impacto. Todavia, tanto no domínio da teoria como num plano mais estritamente prático, ele traduz sensivelmente o mesmo que falar de «islamismo ateu». É pois a expressão perfeita do oximoro. Monedero tem-se servido noutros lugares desse conceito, embora lhe dê um sentido amplo: define-o como o recurso transitório a um assumido populismo, e não à intervenção decisiva do partido de vanguarda previsto por Lenine, como forma de mobilizar a maioria dos cidadãos para desinstitucionalizar a ordem política vigente e lançar as bases de uma outra, inteiramente nova, direta, e por isso revolucionária e integralmente substituta. (mais…)
A veloz ascensão do Podemos, «o partido de Pablo Iglésias», em Espanha, está a ser entusiasticamente acolhida por alguns setores da esquerda portuguesa. Nascido em parte dos movimentos populares, muitos deles de conceção espontânea, de indignação de rua contra a corrupção e as políticas de austeridade impostas pelo Partido Popular, faz todo o sentido que essa simpatia, por vezes sob a forma de fascínio, desponte entre quem por cá trava idêntico combate. Porém, sem se ter uma perceção detalhada dos contornos e das propostas do partido constituído há apenas oito meses, será de evitar assumir desde já uma posição, de apoio ou então de rejeição, que possa ser parcial ou injusta. Diante dos resultados de uma sondagem hoje divulgada pelo El País, na qual, se as eleições fossem agora, o Podemos teria 27,7% dos votos, ficando-se o PSOE pelos 26,2, o PP pelos 20,7, a Izquierda Unida pelos 3,8 e a UPyD pelos 3,4, é de manter uma posição atenta mas cuidadosa. (mais…)
De cada vez que se inicia o ano letivo regressa a polémica sobre as praxes. Acontece de forma mais intensa em Coimbra, dada a relação particular da cidade e da sua universidade com esses ritos. Raramente tem algo de estimulante e construtivo, limitando-se quase sempre a uma rude e estéril troca de palavras. Os campos afastam-se abertamente: de um lado, os que se opõem de todo às suas formas, em particular aquelas que têm ganho corpo nos últimos tempos, considerando-as obsoletas e negativas; do outro, os que as defendem de um modo irredutível como fator de inclusão e característica identitária. Entre os dois polos um terreno vasto, povoado pelos que reconhecem as antigas praxes, sem se aperceberem de como nos últimos anos estas mudaram de qualidade, por uma população em larga medida indiferente ou avessa aos seus momentos, e por um país que as olha como para uma encenação que mistura episódios de tragédia e instantes de comédia. (mais…)
Tenho bastantes reservas em relação à institucionalização das chamadas primárias partidárias. Defendo a redução da super-máquina burocrática e profissionalizada que tolhe os partidos, concordo que estes devam abrir-se mais à sociedade, saindo do espaço tantas vezes insalubre das sedes e dos corredores do poder, e acredito que, no seu funcionamento, o confronto com a participação informal dos cidadãos possa promover um revigoramento das ideias, das propostas e das práticas. Tenho ainda a certeza de que, para cumprir o seu papel e estar mais próxima das pessoas, a democracia não pode esgotar-se no sistema representativo e na exclusiva intervenção dos partidos políticos. (mais…)
O primeiro episódio da mais recente série, a quinta, da excelente Downton Abbey, decorre em 1924, quando o Reino Unido elegeu o primeiro governo trabalhista chefiado por Ramsay MacDonald. Nessa época ainda ninguém sonhava com o aparecimento de um Tony Blair de «terceira via» e o Labour desfilava muito à esquerda. Por isso, a transformação política que tal implicava trouxe grande perturbação à aristocrática mansão, com enormes discussões que envolviam os Crawley e a gente da classe média que frequentava a casa, o mordomo Mr. Carson (em qualquer circunstância o mais conservador de todos) e a cada vez mais impertinente criadagem. A dada altura, quando o debate se estendeu à mesa de refeição dos donos da casa, a velha condessa Violet (Maggie Smith), uma das personagens mais interessantes da série, tem uma tirada (mais uma) muito engraçada. Ao comentar a suposta inevitabilidade da revolução russa de 1917, evocada como sinal da irreversível mudança do mundo, declara-a incompreensível, pois tinha estado na Rússia em 1874 e não vira «sinal algum de instabilidade».
Algo de idêntico se passa na cabeça de muitas das pessoas que, em Portugal, empurram o Partido Socialista, qualquer que seja a sua direção ou tendência do momento, para a mesma perspetiva que dele tinham os portugueses que se posicionavam à sua esquerda durante o biénio revolucionário de 1974-1975. Já passaram quarenta anos sobre o período, quase tantos quanto aqueles que haviam separado a Revolução de Outubro da viagem à Rússia da condessa Violet, e continua a circular, junto de um bom número de cidadãos, que a prova provada do caráter irreformável e inapelavelmente «de direita» do PS é o facto deste, principalmente durante o verão de 75, se ter oposto à instalação de um regime revolucionário totalmente avesso à instauração da democracia representativa. A realidade é hoje totalmente outra, os dilemas que se colocam aos cidadãos muito diversos, os bloqueios de uma diferente natureza, mas para alguns setores, enquanto os socialistas não aceitarem fazer a autocrítica e rever a narrativa da sua participação na história recente do país, aceitando pôr de parte alguns dos seus princípios fundadores, continuarão a carregar às costas o fardo do seu pecado original. Com eles não há conversa e ponto. A vida por viver não passa por aí.
Os medos cuja origem sabemos identificar podem perturbar-nos e geralmente conseguem-no, mas transportam consigo o seu próprio antídoto. Conhecendo as suas causas, identificando o seu rosto, podemos então aprender a resistir-lhes, suavizando o seu embate ou, pelo menos, estabelecendo com eles um pacto de reconhecimento e alguns momentos de tréguas. No final dos anos 70, o historiador Jean Delumeau mostrou como é possível compreender a vida coletiva de um longo período do passado apenas pela observação do modo como aqueles que o habitaram souberam lidar com os seus temores, convivendo com eles mas fazendo por enfrentá-los. A opressão, a fome, a doença, os desastres naturais, a insegurança, a guerra, aterravam os humanos, mas geralmente tinham um rosto reconhecível, anunciavam a sua chegada e sabia-se como atuavam. Por isso podiam ser, se não enfrentados, pelo menos aceites.
Os piores medos, porém, não têm rosto. Aparecem associados a esse sentimento difuso, pouco claro, ambíguo e desarmante, que experimentamos sempre que somos confrontados com algo que não sabemos identificar, ver ou prever, reduzindo por isso a margem de manobra diante do perigo que se pressente. É esta espécie de medo que nos acompanha poderosamente por estes dias, quando somos forçados a conviver com uma imprevisibilidade que começa nas palavras e nos atos desencontrados daqueles que agora nos governam e que ousam falar em nosso nome. Como poderemos dormir descansados, como podemos não experimentar o medo, quando os primeiros a ameaçar-nos, a escalar as paredes das nossas casas e a entrar sem aviso são justamente aqueles que foram por nós eleitos para cuidar da nossa existência e gerir a paz das nossas noites? Já não os reconhecemos e por isso os tememos tanto.
Duas circunstâncias parecem condicionar o futuro próximo do Partido Socialista. A primeira diz respeito ao significativo número de cidadãos inscritos como militantes ou simpatizantes que estão em condições de votar nas primárias do dia 28 de Setembro. Perto de 250.000, tendo em conta que apenas 90.000 militam no partido, está de facto muito acima daquilo que seria concebível no início do verão. A segunda circunstância refere-se à forma como, independentemente do resultado, da liderança escolhida ou da definição programática que venha a afirmar-se, tem vindo a ficar claro que o PS jamais voltará a ser o mesmo. Está comprometida, talvez irremediavelmente, uma tradição de unidade que sempre foi harmonizando diferentes sensibilidades e expectativas. Bastaria aliás esta situação para que os partidos à esquerda dos socialistas assumissem o dever de ser mais prudentes nas infundadas certezas que parecem ter a propósito do que irá acontecer num futuro próximo. (mais…)