Paris, 7 de Janeiro

Admito que só ocasionalmente passava os olhos pelo semanário Charlie Hebdo e que nem sempre apreciei o teor político de alguns dos seus cartoons, mas não é por isso que aceito a indiferença perante o ataque brutal do qual na passada quarta-feira foram alvo alguns dos seus desenhadores, jornalistas e colaboradores. A barbárie expressa na iniciativa homicida dos assassinos vestidos de negro começou, como se sabe, na vontade de punir com a morte aqueles que consideravam responsáveis por alusões de teor satírico à figura do profeta Maomé. Mas não se tratou apenas de um gesto de vingança em nome de uma conceção rígida e intransigente do Islão: revelou também uma firme vontade de coagir pela força a liberdade de imprensa e o direito de opinião, atacando o papel do humor como instrumento de crítica e de humanidade.

Não adianta desviar a conversa, como fazem os setores para os quais tudo aquilo que de mau acontece no mundo e na própria Europa é em última análise culpa do Ocidente e do seu modelo cultural historicamente ancorado, no qual, recorde-se, em boa parte reside a matriz desses conceitos modernos de liberdade e de tolerância que permitem a tais pessoas proclamar os seus pontos de vista. Muito pelo contrário, é preciso sublinhar que ações desta natureza são de todo inaceitáveis, não podendo ser desculpabilizadas ou perdoadas. Devem até reforçar a vontade de resistir à ameaça terrorista por parte de quem preza os princípios basilares da democracia e não aceita a instalação global do medo e do obscurantismo.

Nesta direção, o ataque à sede parisiense do semanário francês ofereceu-nos também, apesar de tudo o que conteve de atroz e de irracional, algo de objetivamente positivo e que devemos aproveitar. Mostrou, por um lado, que a liberdade de expressão e de opinião não constitui um tema menor, um luxo próprio dos povos abastados ou protegidos, como insinua quem, tudo olhando de uma forma relativizada, subordina os direitos humanos à exclusiva satisfação das necessidades materiais primárias e procura mostrar que não existem valores, comuns às diversas culturas, que possam ser instrumentos de convivência e devam ser sempre respeitados.

Mas o ataque da Rua Nicolas Appert lembrou também, de uma forma muito objetiva, a quem da experiência do jornalismo tem vindo nas nossas sociedades a percorrer sem aparente sobressalto a via-sacra de servidão e da irrelevância, esquecendo ou desvalorizando a dimensão de responsabilidade cívica que em primeiro lugar a sua profissão deve conter, que a coragem e o compromisso não são palavras vãs, inúteis e sem qualquer reconhecimento público. Por elas deram a vida os profissionais que estavam na passada manhã de 7 de Janeiro no interior ou nas imediações da sede do Charlie Hebdo, merecendo os seus nomes ser lembrados como uma inspiração e com um agradecimento. Aqui ficam eles: Stéphane Charbonnier (Charb), Georges Wolinski, Jean Cabut (Cabu), Bernard Verlhac (Tignous), Philippe Honoré, Bernard Maris, Mustapha Ourad, Elsa Cayat, Franck Brinsolaro, Ahmed Merabet, Frédéric Boisseau, Michel Renaud.

Versão ligeiramente revista da crónica publicada no Diário As Beiras.

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