Da usura do tempo
1966
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2006
| [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=cLe9pJSRas0[/youtube] |
Peter, Paul & Mary (em 2006 com Pete Seeger)
1966
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2006
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Peter, Paul & Mary (em 2006 com Pete Seeger)

Julgo tratar-se de uma doença. Gosto muito, mesmo muito, de cinema, passei uma fase da vida em que, cheio de olheiras mas sempre desperto, via em média uns 10 filmes por semana – antes ainda do surgimento do VHS, se bem me faço entender –, continuo a ver aquilo que posso, mas raramente consigo guardar a memória dos filmes por mais de umas quantas horas. Se não tomo umas notas ou guardo o recorte de alguma crítica que saiu na imprensa, lá se vão as imagens, os sons, as figurinhas a mexer e os «perfumes visuais». Por vezes, sobra um vestígio acessório associado a um artigo que possa ler, a um livro que evoque um certo filme, a um programa de televisão ou a uma passeata pelo You Tube. Dos Dez Mandamentos lembro-me apenas da dureza das cadeiras em madeira do Cineteatro da Figueira e de dar uma volta nos carrinhos de choque antes da sessão. De O Homem que Amava as Mulheres recordo-me só do vislumbre das pernas da Brigitte Fossey (mas já não me lembrava de todo do nome dela). De Saló ou os Cem Dias de Sodoma tenho a exclusiva memória de o ter visto com uma terrível dor de dentes. Isto para falar apenas de recordações com mais de trinta anos. Acho por isso extraordinária a forma como certas pessoas – de João Bénard da Costa, que tem sempre uma referência cinéfila para contar, até uma amiga minha que sabe mesmo dizer quais as condições atmosféricas e com quem foi ao cinema no dia tal do ano xis –, falam de filmes que viram há décadas. Com aquela mesma certeza descritiva que usamos para relatar um encontro da manhã ou a ida ao hipermercado. Invejo-os e acho que a medicina devia procurar uma cura para quem padece deste tipo de esquecimento. Faria da memória das vidas de quem dele padece, ou pelo menos da minha, um território com toda a certeza um pouco mais movimentado.

Mais um desafio em cadeia. Este, chegado através do Eduardo Pitta, parece estimulante: contar os dez livros que não mudaram a nossa vida. Vale a pena verificar, nesta série, como obras reputadas «incontornáveis» são repetidamente citadas. Aqui ficam pois os meus livros-niet, todos eles lidos sem deixarem manchas. Dez obras que poderiam, claro, ser outras cem.
قُرْآن / Corão (séc. VI), de Abu al-Qasim Muhammad ibn ‘Abd Allah ibn ‘Abd al-Muttalib ibn Hashim (abençoado copy-paste)
A la Recherche du Temps Perdu / Em Busca do Tempo Perdido (1913-1927), de Marcel Proust
Ulysses / Ulisses (1922), de James Joyce
Der Zauberberg / A Montanha Mágica (1924), de Thomas Mann
Mrs. Dalloway (1925), de Virginia Wolf
Как закалялась сталь / Assim foi Temperado o Aço (1945), de Nikolai Ostrovski
Huis-Clos / Entre Quatro Paredes (1945), de Jean-Paul Sartre
Die Blechtrommel / O Tambor (1956), de Günter Grass
毛主席语录 / O Livro Vermelho (1964), de Mao Tsé-Tung (este não mudou, mas quase mudava)
Generation X: Tales for an Accelerated Culture / Geração X (1991), de Douglas Coupland
Mas, por supuesto, o primeiro livro da lista pode estar ainda a tempo de transformar a minha vida.
Desta vez, e tentando não me repetir (mas não garanto…), passo à Joana Lopes, ao João Tunes, ao Rui Ângelo Araújo, à Shyznogud e ao Lutz Brückelmann. Então vá.

As revelações sobre a longa e profunda crise de fé que, contra todas as aparências, viveu Agnes Gonxha Bojaxhiu, Teresa de Calcutá, não podem deixar-nos indiferentes. A partir da correspondência mantida ao longo de 66 anos com os seus confessores e superiores, que o livro Mother Teresa: Come Be My Light põe agora à nossa disposição, é todo um percurso de dúvida que o acto de entrega ao tormento dos outros e às missões que lhe foram destinadas pela sua Igreja jamais foram capazes de resolver por inteiro. São ali recorrentes as referências a sentimentos de «secura», de «escuridão», de «solidão» e de «tortura», que, no constante convívio com o Inferno que foi quase sempre a sua vida, a levaram a duvidar da existência do Céu e até do próprio Deus. «O sorriso», o seu sorriso, escreveu Agnes, o sorriso que sempre lhe associamos, «é uma máscara» ou mesmo «um manto que cobre tudo». E este não parece tratar-se de um trajecto de ascensão espiritual rumo ao absoluto da fé, como o de Santo Agostinho (dizia ele, sabemos lá nós), mas exactamente o seu inverso: um olhar permanente, e inevitavelmente amargurado, sobre uma dúvida que não cessa e colide com o próprio sentimento de dever. O que não pode deixar de nos oferecer um olhar bem mais humano sobre a vida difícil desta albanesa pequenina, missionária, e, sabemo-lo agora, sempre sofrida e inquieta. Santidade é isto, é duvidar, é crer e descrer, não a entrega cega, segura e néscia seja a que fé ou a que causa for.
Citações retiradas de um artigo da Time que a revista Visão traduziu e publicou.
A minha atitude diante da presença pública e do trabalho de Eduardo Prado Coelho (nascido em 1944 e morto hoje de forma súbita) foi oscilando sempre entre a admiração, pela constância da sua atitude pedagógica de polemista e intelectual empenhado (dos últimos, talvez), pela sensibilidade de muitos dos seus textos também, e a impaciência, motivada por atitudes aparentemente inexplicáveis de parcialidade, rejeição ou mesmo jactância que certas vezes exibia. Seja como for, e isso é o mais importante, e isso é aquilo que fica, EPC – como era, tantas vezes, impessoalmente chamado – manteve ao longo de vida uma atitude, de certa forma exemplar mas infelizmente rara, de intervenção crítica e de independência no campo largo da atitude cultural, do combate de ideias e da vivência da cidadania. Por isso, pelo que disse, escreveu ou deu a conhecer, foi sem dúvida, como escreveu Eduardo Pitta, o intelectual português mais influente dos últimos 25 anos. Vai fazer-nos bastante falta.

A poucos dias de se perfazerem cinquenta anos sobre a sua saída em 5 de Setembro de 1957 para as livrarias americanas, um pequeno dossiê do suplemento Ípsilon rememora o impacto da primeira edição portuguesa de On the Road, de Jack Kerouac, lançada em 1960 pela Ulisseia com o título Pela Estrada Fora (numa tradução de Hélder dos Santos Carvalho, morto novo quando vivia em França a sua própria experiência «na estrada»). Num volume da colecção Découvertes Gallimard, Alain Dister sublinha o desconforto da viagem à boleia – ou em auto-stop, como se lhe referiam os jovens portugueses «francófilos» da década de 1950 –, relembrando a fadiga, o desconforto, o aborrecimento, o frio, a chuva, o perigo, mas recorda também como, para a geração que tomou On the Road como bíblia da perpétua deslocação, tudo isso era facilmente trocado pela sensação de liberdade, de procura e de vertigem que esta sempre possibilitava. A estrada de Kerouac, na sua imensidão, na melancolia dos cenários imutáveis ao longo de centenas de quilómetros, mas também no inesperado que a qualquer instante a podia cruzar, transformava-se na grande metáfora para uma vida em movimento que uma parte da juventude americana e europeia das décadas de 1950-1960 antevia como cenário da descoberta da felicidade, mas que fechará simbolicamente em 1969, com Easy Rider, o road movie de Dennis Hopper marcado já pela visão desencantada, pós-hippie, do fim da utopia.
O destaque dado neste conjunto de artigos a alguns portugueses que, por aquela época, perseguiram essa bela quimera, faz todo o sentido. Mas o que não é referido, e que por isso valerá a pena lembrar, é que num país periférico, silenciado e fechado ao exterior como o era Portugal na altura, esse desejo de evasão pela viagem se processou principalmente por vias bem diversas da procura individual e descomprometida dos membros da beat generation e dos seus discípulos. Aqui, para a esmagadora maioria das pessoas, e principalmente para os jovens urbanos e com alguns estudos, quando até a própria boleia era olhada com desconfiança por boa parte da sociedade e pelas autoridades, a vontade de fuga materializava-se principalmente nos consumos culturais possíveis – em especial naqueles mais solitários, proporcionados pela leitura, pela música, ou, em menor escala, pelo cinema – ou, no limite, na experiência da fuga através da imaginação de locais idealizados a partir de referências físicas que iam de Nova Iorque e Paris a Moscovo e Pequim. Os nossos beatniks ter-se-ão contado pelos dedos e permaneciam invisíveis, por muito que hoje se possa fantasiar acerca do seu papel ao longo da década e meia que antecedeu a revolução de Abril.

Marguerite Duras afirmou, em A Vida Material, que «o jornalismo só releva da literatura quando é exercido de forma passional». Acabei de ler A Face da Guerra (Dom Quixote), uma selecção de reportagens sobre diversos conflitos escritas no terreno por Martha Gellhorn (1908-1998) entre os anos 30 e 90 do século passado, começando com a Guerra Civil de Espanha (a primeira reportagem é de Julho de 1937), passando por Dachau, Saigão ou Jerusalém, e fechando com a invasão americana do Panamá. Ao percorrer aqueles textos, que quase não perecem datados, acabei por ficar ainda mais seguro da justeza da afirmação de Duras. Um jornalismo como o praticado por Gellhorn, que não receia a polémica, que informa mas também se emociona e toma partido – e não engana o leitor, pois assume que o faz – é o único que se distingue e permanece para além do instante. Separando-se daquele outro, supostamente «isento» e «objectivo», sem corpo, alma ou identidade. Que nos pode ser de alguma utilidade prática, revelando o onde, o quando ou o para quê, mas logo se torna irrelevante. E que acaba por morrer incógnito.

Editado este ano pela ASA, Uma História de Amor e Trevas, de Amoz Oz, é um livro de memórias, entre a autobiografia e o romance, sobre a infância do autor em Jerusalém. A partir de um curto tempo nuclear, cerca de 120 anos de história nacional e familiar passam por um texto «impregnado de ruído e fúria, nostalgia, perda e solidão».
Começa por revelar um espaço cultural que nos é em larga medida estranho. Sobre o qual, aqui a ocidente, quase nada sabemos. Este universo radica-se numa identidade judaica que, no imenso território de diáspora que ia da Europa Central à Rússia mais profunda, permitiu o estabelecimento de uma notável cultura intelectual capaz de admitir a coabitação de ortodoxos, sionistas e simpatizantes da esquerda e do comunismo. A integração não excluía, porém, a produção de clivagens, a mais visível das quais se mostrou durante o próprio Holocausto – basta lembrar as fortes divergências dentro do ghetto de Varsóvia, entre os partidários da colaboração como mal menor e da insurreição como necessidade – e foi depois vertida para o interior de Israel, sendo particularmente sentia na década de 1950, a época à qual Oz se reporta mais directamente. Refiro-me à clara separação entre aqueles que defendiam a secular atitude de aceitação, que permitira aos judeus sobreviveram durante séculos às inúmeras perseguições, e aqueles outros que, após Auschwitz, pensavam que apenas se poderia responder violência com a violência, de modo a evitar o regresso do horror. No mundo extremamente culto e politizado que o pequeno Amos frequentara, todas as sensibilidades e nuances culturais mantinham ainda este antagonismo essencial como cenário.
Este livro proporciona também um espaço de reflexão que se projecta sobre o mundo contemporâneo. Deve relembrar-se o papel de Amoz Oz no movimento Peace Now – que defende a inevitabilidade de um acordo justo e definitivo com os palestinianos, mas não a capitulação de Israel, que as ditaduras árabes, os radicais islâmicos e os seus aliados ocidentais tão ardentemente desejam – e as suas posições públicas neste domínio, parte das quais podem ser conhecidas no pequeno volume de ensaios Sobre o Fanatismo (que há poucos meses o Público ofereceu aos seus leitores). No melhor e mais belo desses ensaios, «Da natureza do fanatismo», o escritor, que fora em tempos «um rapaz que atirava pedras, um rapaz da Intifada judaica», salienta a antiguidade da experiência desse fanatismo «mais velho do que o Islão, do que o Cristianismo, do que o Judaísmo», salientando porém que a sua própria infância em Jerusalém o havia convertido num «especialista em fanatismo comparado». É a experiência desta «especialização» que Oz nos vai revelando no seu livro de memórias, transportando-nos até um ponto no qual poderemos compreender melhor a legitimidade, e igualmente a inutilidade, do ódio instalado. Ao mesmo tempo, a extrema dureza do período de reinstalação dos judeus no território de Israel e depois da independência do Estado – bem, num movimento de fast forward, o processo de restabelecimento das fronteiras «bíblicas», ocorrido já em 1967, após a vitória «milagrosa» na guerra dos Seis Dias – permite-nos também entender as contradições, e igualmente as razões, de muitas das posições da opinião pública israelita e dos seus diferentes governos ao longo das últimas décadas. Dando-nos a ver, se não quisermos permanecer cegos, que estes jamais poderão aceitar um retorno à condição histórica de párias e errantes que, geração após geração, todos os seus antepassados viveram.
Uma História de Amor e Trevas é ainda, pela forma como revela os processos de apreensão do mundo e das suas mudanças pelo jovem Amos, um elogio da leitura e da imaginação. E também um livro de grande beleza e compaixão, que facilmente nos conduz por uma viagem de ida e volta entre o riso e as lágrimas. Afinal, aquilo que a maior parte de nós mais habitualmente procura nas leituras às quais se entrega por puro prazer. Um crítico do Guardian considerou-o «um dos mais divertidos, mais trágicos e tocantes livros» que pudera ler. Mesmo ressalvando o exagero de afirmações tão peremptórias, que mais poderemos querer?
Uma última chamada de atenção para dois aspectos. A capa da edição portuguesa – idêntica, aliás, à da edição da Vintage, mas que não pode comparar-se com a da Chatto & Windus – é muito má, mais parecendo um daqueles cartazes new age utilizados para vender iogurtes light. Já a tradução, da responsabilidade de Lúcia Liba Mucznik, me parece soberba, mesmo sem entender eu uma palavra de hebraico. Nem por um momento o prazer da leitura tropeçou numa palavra ou numa frase, sendo, ao contrário, constantemente excitado por elas. O que é, obviamente, um óptimo sinal.

Masha Gessen é uma jornalista russa cuja família emigrou em 1981 para os Estados Unidos com o objectivo de escapar ao anti-semitismo latente que marcava o quotidiano da União Soviética na era de Brejnev. Dez anos depois regressou à Rússia como correspondente e aí acabou por se instalar, vivendo actualmente em Moscovo. Em 2004 publicou Ester and Ruzya: How My Grandmothers Survived Hitler’s War and Stalin’s Peace, editado há cerca de um ano pela Alêtheia com a primeira parte do título infelizmente alterada para As Duas Babushkas. Este é uma daquelas «sagas familiares» que lança um olhar sobre as vidas singulares e conturbadas das duas avós da autora. Mas não se trata propriamente de um romance «de época»: o trabalho de Masha Gessen consistiu essencialmente em transformar em relato escrito as recordações verbalizadas das suas familiares, em pesquisar pessoalmente elementos que elas deixavam em claro, em confirmar alguns dos factos aos quais elas se referiam, e, finalmente, em inserir toda a informação num discurso que deixa a obra a meio caminho entre o romance e o texto memorialista.
Ester e Ruzya são duas mulheres russo-judias cujos destinos se viriam a cruzar, acabando por se tornarem amigas e confidentes. Uma nasceu na Polónia e escapou dos campos de concentração de Hitler por ter partido para estudar numa universidade da União Soviética, mas acompanhando também a mãe, entretanto exilada com toda a sua comunidade de judeus polacos para a Sibéria. Teve a coragem de se recusar a servir de informadora do NKVD, demitindo-se do Komsomol (a organização estatal para a juventude comunista) e vivendo na pele a obsessão antijudaica do regime, agravada nos últimos anos de vida de Estaline. A outra nasceu na Rússia, foi uma militante entusiástica do mesmo Komsomol e chegou a ser uma importante funcionária da censura literária imposta pelo Estado soviético. É muito interessante o relato da experiência diária de leituras vedadas à generalidade dos seus concidadãos. Do cruzamento destas duas vidas singulares resulta, para nós, um conhecimento quase testemunhal do quotidiano de muitos «pequenos intelectuais» nos tempos difíceis do apogeu das grandes experiências totalitárias do século passado. Leitura apaixonante e de utilidade para o aprofundamento de uma memória colectiva que transcenda a dimensão da paróquia.

O Foguetão foi um semanário juvenil de grandes dimensões, impresso a cores e com o caderno exterior em papel couché, fundado e extinto em 1961. Foi a primeira publicação portuguesa a divulgar tiras do Astérix, preludiando a avalancha da BD franco-belga que chegaria a seguir. Lembro-me que tinha uma particularidade da qual gostava muito: utilizava a capacidade gráfica que o tamanho permitia para reproduzir, em dimensões colossais, factos e objectos do passado, literalmente revelados nas suas entranhas (ainda me lembro do interior do navio-almirante de Nelson), como a construção das pirâmides, a batalha de Trafalgar ou o naufrágio do Titanic. Uma dessas montagens contava a conquista do Monte Everest pelo explorador neozelandês Edmund Hillary e o seu guia sherpa Tensing Norgay (que um dia, num texto descuidado, confundi com Chang, o tibetano amigo de Tin-Tin). Hillary, de quem ouvia falar pela primeira vez, surgia ali como um herói apenas comparável aos semideuses homéricos. Talvez por isso, na memória que então comecei a construir, ele me parecesse um homem que pertencia já ao passado, com toda a certeza morto e merecidamente evocado. Foi pois com algum espanto que encontrei hoje, num jornal diário, uma referência à comemoração dos seus magníficos 88 anos. Ao contrário daquilo que muitas vezes se julga, a memória que mais partidas nos prega é a da infância. Preservada é sobretudo a recordação da infância que concebemos alguns anos mais tarde, o que não é bem a mesma coisa. Happy Birthday, Sir Edmund! E desculpe tê-lo abatido ao efectivo!

O programa de rádio Antena Aberta, de Eduarda Maia (Antena 1), resolveu esta manhã colocar em debate as recentes declarações públicas de Saramago propósito da utopia, ciclicamente retomada por uns quantos quixotes, de uma Ibéria una e plural. Para que não existam dúvidas, declaro que, nas suas linhas mais gerais, a ideia do escritor colhe a minha simpatia. E a de um ou outro ouvinte também. Todavia, a larga maioria dos participantes interveio, de uma forma excessiva e exaltada, em sentido contrário. A culpa do tom, claro, é deste tipo de programas, que dá voz a qualquer huno e nem sempre introduz na conversa alguma pedagogia da tolerância. Por isso, não estranhei ouvir um cozinheiro do Porto bradar que «não podemos ofender a gesta dos nossos maiores», nem «afrontar os mártires que permitiram dignificar o solo pátrio» (não estou a inventar!). Imagino o senhor – pela conversa, um homem dado aos clássicos – de panela inox na cabeça e com o garfo dos fritos em riste, «dando a vida, se preciso for», rua a rua, copa a copa, sob a inspiração da padeira Brites, na guerra de guerrilhas contra os malditos castelhanos.
Mas estou convencido, ao conviver habitualmente com gerações mais recentes e razoavelmente cosmopolitas, que são cada vez menos os portugueses que olham o país do lado como aquele território inóspito, selvagem, Arizona fronteiriço a cruzar a galope até se começar a ouvir distintamente alguém que se expresse em francês. Quando conto aos meus alunos espanhóis sobre o ditado «vindo de Espanha, nem bom vento nem bom casamento», ficam espantados, uma vez que se habituaram – eles, os pais e os avós deles – a ignorar Portugal, ou, como lembra Buñuel na autobiografia, a considerá-lo país «mais distante de nós que a Índia». Por sua vez, muitos jovens portugueses desconhecem já a simples existência da referida sentença, o que não deixa de ser bastante saudável.
Para os mais velhos, no entanto, não era assim. Desde 1640 que os espanhóis – não diferenciando galegos de aragoneses, ou andaluzes de naturais de Castilla-La Mancha – são inimigos potenciais, seres diferentes, excessivos e um tanto conspícuos. E o Estado Novo apenas acirrou os ânimos. Em 1960, Francisco da Cunha Leão, na obra O Enigma Português, trata-os mesmo, depreciativamente, como gente «indiferente à natureza cósmica», e «extremada nas práticas do amor e da sexualidade». Talvez por isso, sei de várias raparigas a quem foi recusado alojamento depois das honestas senhorias dos quartos que elas pretendiam arrendar as terem ouvido comunicar naquela língua cantada e sobrecarregada de guturais.
A Ibéria será pois uma nova ilha inalcançável nos tempos mais próximos. Jamais a península que habitamos. Da minha parte, confesso aqui que faço sempre por me livrar primeiro das moedas de um e de dois Euros com a efígie do rei Juan Carlos no verso. Mas isto nada tem de antiespanholismo atávico. Bem pelo contrário! Simplesmente o Bourbon tem aquela cara de toureiro, o que, falando numa dimensão meramente ética e artística, me repugna um pouco, pois tendo a simpatizar muito mais com o toiro. E além disso sou republicano.


O Eduardo Pitta desafiou-me para esta espécie de corrente em formato de book crossing. Cinco livros recomendáveis para ler agora, o mais tardar para a semana.
1. Um pequeno ensaio de George Steiner, O Silêncio dos Livros, publicado originalmente na Esprit, que a Gradiva acaba de editar acompanhado do comentário Esse Vício Ainda Impune (a frase faz lembrar outra coisa, eu sei), de Michel Crépu. Sobre a ligação entre o anunciado fim do livro e a fragilidade, incontornável e eterna, da escrita.
2. A recente edição portuguesa, feita pela Antígona, da História das Utopias, escrita em 1922 por Lewis Mumford. Porque permite recordar que o seu horizonte não se limita à paisagem insuportável das sociedades harmoniosas. E porque nos sugere, ainda e outra vez, que «a nossa mais importante tarefa, no presente, é construir castelos no ar».
3. As Notas de Andar e Ver. Viagens, gentes, países, uma colectânea de artigos e intervenções escritos entre 1904 e 1937 por José Ortega y Gasset, lançada agora pela Fim de Século. Um livro que funciona como uma poderosa chamada de atenção para a viagem atenta enquanto «metáfora substancial da vida inteira».
4. Teenage. The Creation of Youth. 1875-1945, de Jon Savage (conhecido por uma história dos Sex Pistols e do movimento punk), publicado pela Chatto & Windus. A «condição juvenil» entre a literatura, a rua e a caserna, antes ainda dos anos cinquenta. Segundo a Rolling Stone, «the definitive history of youth in revolt, from the gaslight age to the dawn of rock».
5. Um relato familiar, em forma de álbum de fotografias, da autoria de Daniel Blaufuks. Sob Céus Estranhos, uma história de exílio é uma «meditação evocativa e poética sobre a experiência dos refugiados da Europa Central e sobre um sentimento de dispersão em trânsito na cidade de Lisboa e nos seus arredores». Da Tinta da China.
Chamo, mesmo sabendo que alguns não gostam muito de cadeias, a Ana de Amsterdam, o Eduardo Brito, o Luís Januário, o Lutz Brückelmann e, internacionalizando a coisa, o Marcos A. Felipe. Escuto.

Werner em 1966 com Julie Christie, «a mulher que tinha uma sósia em Lisboa»
Revi ontem Oskar Werner na RTP2. Como Fiedler, o judeu agente da STASI, ao mesmo tempo repugnante e idealista, que em O Espião Que Veio do Frio, o filme de Martin Ritt baseado no primeiro romance mundialmente conhecido de John Le Carré, tenta contrariar as manobras ardilosas de George Smiley e do MI6. É estranho como a presença cinematográfica deste austríaco, desaparecido em 1984, sempre me pareceu um tanto perturbante, provocatória mesmo. Tinha tudo para me desagradar: o olhar vítreo, a voz nasalada e metálica, um inglês incomodativo com uma vaga acentuação germânica, um aspecto de roedor que me provocava pele de galinha. E, no entanto, algo deste actor, hoje semi-esquecido, perdura como único na memória que preservo do cinema do século passado.

Não tenho na certeza de ser dos carecas «que elas gostam mais», como afirmava uma popular marchinha do Carnaval carioca. Ou, pelo contrário, de acordo com o velho anúncio de um restaurador capilar, se afinal já não é deles «que elas gostam mais». Ou mesmo se «elas» serão «eles», ou se «eles» serão «elas». Sabe-se hoje que a calvície de padrão masculino afecta cerca da metade da população dos homens maduros, e, para além disso, que determinadas máquinas eléctricas muito fáceis de utilizar e de manter podem agora transformar qualquer cabeça numa versão hermafrodita de Yul Brynner, o actor conhecido por, entre as décadas de 1950 e 1970, encarnar personagens cujo exotismo requeria uma cabeça inteiramente calva. Assim aparece Brynner numa fotografia, por sua vez retirada do filme homónimo, reproduzida na capa da edição que tenho de Tarass Bulba, a história ficcionada do herói dos cossacos do Don, que Nokolai Gogol escreveu, Mário Braga traduziu e a Portugália editou no distante ano de 1964.
A ausência de cabelo já não pode agora ser associada à perda de poder e à submissão, ocorridas com os idosos, os prisioneiros e os soldados. Pode até ser instrumento de afirmação de um erotismo raro e energético. O novo Sansão deve temer a sua Dalila por outro motivo que não o inesperado corte cerce da sua indispensável guedelha. Mais do que nunca, o uso notório de cabeleira postiça passa por factor anti-higiénico de incómodo e de mau-gosto, que ridiculariza e marginaliza quem dele se serve. Inexplicavelmente, porém, um grande número de humanos continua a utilizá-las como recurso para esconder uma calvície que imagina incompatível com a imagem de eterna juventude ou de suposta virilidade que deseja preservar. Hoje, no ecrã de LED que preenchia quase por inteiro uma das paredes do restaurante onde almoçava sozinho, fez-me pena ver o aspecto patético de Burt Reynolds – já sem o vigor dos tempos em que era Caine no filme Shark!, de Sam Fuller – exibindo em público um capachinho feiíssimo e, como todos eles, completamente fora do tempo.

Cartaz estónio pré-1953
Svetlana Boym tem estudado a dimensão energética da nostalgia, ajudando-nos a entender melhor os processos de manipulação política da arte monumental. Em The Future of Nostalgia, distingue claramente a forma como o senso-comum encara aquela que chama de «nostalgia passiva» – marcada pela melancolia, observando o presente pela negativa e o passado como uma dimensão na qual é possível encontrar os melhores modelos – de uma «nostalgia dinâmica», capaz de olhar este mesmo passado «em tensão» e servindo-se dele para carregar sinais que alimentam as representações e as causas do presente. Num tempo em que o conhecimento histórico tem vindo a recuar ao mesmo tempo que cresce o interesse pelo passado, é cada vez mais fácil detectar momentos nos quais esta dimensão dinâmica da nostalgia emerge, armando muitos movimentos e correntes de opinião interessados em manipularem o passado para alcançarem alguns dos seus objectivos programáticos. E reparar na forma como uma parte importante da comunicação social morde o isco sem grandes problemas de consciência.
O suplemento Digital do Público divulgou um conjunto de artigos sobre o processo de construção e a forma de funcionamento da Wikipédia. Assim mesmo, com acento agudo, pois foi principalmente a versão em português da enciclopédia online que foi referida. Aspectos como a credibilidade, a originalidade ou a relevância dos contributos foram ali abordados e devem, sem dúvida, suscitar algum exame crítico. Mas prefiro falar do assunto a partir de uma outra perspectiva.
A experiência como professor tem-me permitido observar, a propósito do funcionamento da Wikipédia, três comportamentos que me parecem preocupantes: 1) um número crescente de alunos utiliza-a como fonte praticamente única de conhecimento em relação a determinados temas leccionados, situação que é agravada pela impreparação da maioria dos docentes para se aperceberem desta realidade; 2) são poucos os alunos que têm consciência do carácter incompleto, por vezes falacioso ou mesmo erróneo, de muitos dos artigos; 3) para piorar as coisas, a esmagadora maioria destes utilizadores serve-se apenas da versão em português, quase sempre incomparavelmente mais pobre do que as versões em inglês, em francês ou em castelhano (para referir apenas aquelas que consulto mais vezes).
Incentivo os alunos a utilizarem a Wikipédia. É um óptimo ponto de partida para o estudo e para a preparação de aulas ou de trabalhos, uma vez que se trata de um processo acessível, barato e que pode abrir inúmeras pistas em hipertexto a aprofundar posteriormente (os links oferecidos, por exemplo, são muitas vezes bastante mais interessantes e úteis do que o são as próprias entradas). Mas apenas como muleta, para se guiarem, ou para encontrarem referências que se cruzam com a informação que recolhem em sites mais fiáveis ou noutros suportes. E aviso sempre que, na correcção dos trabalhos ou das provas, estarei atento ao copy-paste desonesto que a curto ou a médio prazo se volta sempre contra quem dele se serve (não garantindo apanhá-los todos, naturalmente, mas isso eu não devo dizer). Tento desta forma evitar que este instrumento se transforme num factor de desastre, valorizando-o ao mesmo tempo, como ele efectivamente merece. Ignorar o assunto, ou fazer de contas que ele é irrelevante, é que me parece perigoso.
«Vocês são mesmo ordinários, foda-se!». Foram as palavras de um Al Berto em «fúria controlada», quando, em 1992, foi vaiado por um grupo de estudantes universitários, soi-disant irreverentes e mais ou menos etilizados, durante uma sessão de leitura de poesia que decorria em Coimbra. A mesma Coimbra onde o poeta, morto há dez anos, nascera em 1948, e cuja Câmara Municipal proclama agora o «Museu da Irmã Lúcia» e o concurso local de Misses como parte integrante do seu roteiro cultural. A minha cidade tem também destas tonterias, mas o problema não é com ela, garanto. É (tem sido) apenas com alguns dos seus habitantes (verdadeiros ou putativos).
O lamentável episódio foi gravado e pode ouvir-se aqui (16m08s):
A recordação do momento e esta gravação chegaram-me através d’A Origem das Espécies, de Francisco José Viegas, e foram inicialmente colocadas em linha, no blogue Frenesi – Livros, por Paulo da Costa Domingos.