Posso garantir aos potenciais interessados que Miss Johansson canta bastante melhor do que Marilyn Monroe antes de falecer ou do que Carla Bruni antes de mudar de estado civil. Não tenho a certeza de que isto funcione como um elogio.
PS – Para quem ler esta mensagem semanas ou meses depois e não pode detectar o duplo sentido: referia-me também à tomada do poder em Itália pelo Sr. Berlusconi.
Completam-se hoje precisamente 45 anos sobre o lançamento de Please Please Me, o primeiro álbum dos Beatles, gravado numa única sessão de 15 horas em 11 de Fevereiro de 1963. O valor simbólico deste momento na cultura popular do século XX tem sido desvalorizado por quem não possui uma clara memória da época ou tende a menosprezar o impacto da então nova cultura juvenil. A ingenuidade quase pueril das letras dos primeiros temas, a linearidade dos arranjos iniciais, a forte concorrência transgeracional dos mais longevos Stones (cujo álbum inaugural saiu apenas um ano depois), bem como a complexificação posterior do rock, contribuíram também para a instalação de um certo desinteresse pelos primeiros tempos dos fab four junto das gerações mais recentes. Olhando este vídeo, percebemos que existia uma nova energia no ar.
Todo o país viu as imagens e fala no caso da agressão da aluna da Carolina Michaëlis à sua professora de Francês. A atitude é de unânime condenação, embora eu desconfie que alguns estudantes da faixa etária da agressora possam considerá-la uma heroína e, em certos casos, tenha já «molhado o pão» no apetitoso lombo de outro infeliz docente (ou, pelo menos, tenha sentido uma quase-irreprimível vontade de o fazer). Têm sido distribuídas as culpas por toda a gente, colocando-se por vezes a agressora – que não deixa de o ser pelo facto de não ter batido na cara da professora – numa posição protegida de «vítima do sistema» que lamentavelmente perdeu a compostura. Sem querer insistir no que tem sido dito (um largo leque de posições pode ser encontrado na caixa de comentários de um post de Daniel Oliveira), chamo a atenção para algumas coisas que me perturbaram particularmente e que estão para além da agressão em si. São elas a cumplicidade ou a inacção do conjunto da turma, a falta de uma reacção decidida da professora, a não-apresentação imediata de queixa, a incapacidade da direcção da Escola para tomar medidas claras e prontas (e depois para esclarecer devidamente a opinião pública), a revelação de uma sucessão de casos análogos ou piores entretanto silenciados, o facto da esmagadora maioria das vítimas destes casos serem mulheres, o silêncio conivente dos pais dos jovens agressores (que terão a dizer disto as sempre tão buliçosas «comissões de pais»?). E ainda a real responsabilidade dos governos que têm vindo a retirar prestígio e autoridade aos professores.
O caso leva-me a reflectir sobre a minha própria experiência, e a falar aqui de um assunto que permanece tabu, ainda que falado entre dentes, com sinais de vergonha, por professores, agora do ensino superior, que não sabem o que fazer e começam também a temer o pior. Dou aulas numa universidade desde 1981, e, naturalmente, ao longo de todos estes anos tenho-me confrontado, na relação mantida com dezenas de milhar de alunos, com comportamentos muito diferenciados no espaço das aulas. Apesar dessa diversidade, e tendo conservado sempre uma relação nada autoritária com a generalidade deles, jamais tive o menor problema disciplinar. Tanto quanto sei, a mesma coisa se passava com quase todos os meus colegas (as raríssimas excepções ficaram quase sempre a dever-se a atitudes de incompetência ou de arbitrariedade). Quando começaram a suceder-se os problemas disciplinares nas escolas secundárias, estes não se reflectiram logo nas universidades, presumindo-se sempre que os estudantes entretanto «cresceriam» e manteriam já comportamentos responsáveis quando chegassem aos nossos anfiteatros.
Mas tudo mudou há cerca de dois ou três anos atrás. A verdade é que, após as sucessivas vagas de alunos com deficiente formação científica imposta por programas e métodos no mínimo discutíveis, começaram a chegar às escolas superiores estudantes com uma quase nula formação cívica e frágil capacidade de autoresponsabilização. E, pela primeira vez, eu e muitos colegas – com toda a experiência de anos de trabalho, com todo o prestígio que a maioria acreditava ter conquistado para a vida – começámos a ter problemas: alunos que conversam sistematicamente durante as aulas, que chegam atrasados todos os dias, que entram e saem sem uma palavra, que não desligam o telemóvel, que se dirigem ao professor de forma impertinente, que exigem facilidades confundidas com direitos sem cumprirem deveres, que em muitos casos nem sequer distinguem claramente as competências de quem ensina e as suas próprias obrigações. Falta o último passo que, ao que se vê, no ensino secundário há já muito tempo foi dado: transformar as aulas num campo de batalha. Este passo não é inevitável: quero acreditar que, a ser bem aplicado, o previsto sistema de tutorias possa ajudar a melhorar os processos de responsabilização e a articulação entre a vida e a escola, como quero acreditar que a ampliação dos cursos de 2º e 3º ciclo traga para a vida nas escolas superiores pessoas mais amadurecidas e tolerantes. Como acredito nos alunos interessados, empenhados e até afectuosos. Mas temo que, entretanto, algo de mau possa acontecer.
Claro que a maioria dos estudantes universitários – sei-o por tentar andar de olhos abertos e graças a uma sucessão de óptimas experiências pessoais – não se enquadra neste cenário de catástrofe anunciada. A maioria dos alunos do secundário, acredito, também não se adequará a ele. Só que aos outros, aos elementos de uma minoria a quem é permitido protagonismo, o sistema educativo em vigor e as políticas que estão a ser aplicadas, minando a centralidade do professor na escola como na sociedade, conferem um grau de manobra cada vez mais perigoso. Que o meio social envolvente observa demasiadas vezes com um encolher de ombros.
P.S. – Pouco deve interessar, em casos como aquele que desencadeou o actual debate, o desculpabilizador discurso pedopsi sobre o telemóvel enquanto prótese. A admissibilidade do seu uso imoderado começa quase sempre em casa e apenas é possível porque, daí até à escola, tem sido mantida toda uma rede de permissibilidade que não deixa muitos jovens perceberem (ou não os obriga a perceberem) que existe uma dimensão de sociabilidade moderadora da utilização lúdica ou produtiva da máquina, de qualquer máquina. Que há vida para além dela.
Para nós, que vivemos neste «país de poetas» de fábula no qual os jornais de grande circulação – se é que tal existe por estes lados – deixaram de ter suplementos literários, não pode deixar de funcionar como um deprimente motivo de reflexão o facto de Babelia, o suplemento de sábado do vizinho El País, anunciar neste momento uma tiragem de 2.086.000 exemplares.
Utilizado no português, de acordo com o Houaiss, pelo menos desde 1557, o substantivo e adjectivo mulato aplica-se àquele «que é filho de pai branco e de mãe preta (ou vice-versa)», «que apresenta traços das raças negra e branca», ou que possui uma visível «cor parda, acastanhada». Omnipresente nos territórios colonizados pelos europeus, o tipo encontra-se hoje em expansão numa Europa crescentemente multiétnica e miscigenada. Mas a designação, historicamente recorrente no léxico da lusofonia, é hoje muito menos utilizada do que o era há vinte ou trinta anos atrás. Pelas razões mais diversas. Por um lado, a decadência do conceito de raça, actualmente trocado pelo de etnia, tem levado a que se evitem designações determinadas pelos traços físicos. Ao mesmo tempo, e apesar de valorizar a mestiçagem e a hibridez, a nova tradição pós-colonial tende frequentemente a escamotear o legado do colonizador, incluindo-se neste o seu contributo genético. Aliás, foi já nesta linha que, a partir dos tempos de definição do conceito de negritude e de constituição das correntes emancipalistas, uma parte das novas elites africanas começou a depreciar um pouco o lugar e o papel do mulato. A partir dos anos 50/60, a crítica do lusotropicalismo não deixou, também ela, de intervir neste processo.
Entre nós, porém, o eclipse parcial da palavra ficou a dever-se ainda à influência global do discurso dominante dos media americanos. Nos quais o conceito de negro possui uma amplitude que os falantes nativos do português até há bem pouco tempo praticamente excluíam. Por isso, para a América, o mulato Barack Obama é um negro. E é a partir da afirmação desta condição que tem definido o seu trajecto político e poderá vir a construir a sua vitória eleitoral. O que não podemos senão compreender. Mas já me parece um sintoma de passividade perante a aculturação que os meios de comunicação europeus, e muito em especial os portugueses, se lhe refiram sistematicamente como «negro». O que fizemos nós afinal, e em tão pouco tempo, da memória partilhada desse passado de trocas que produziu o mulato?
A revista Manière de Voir dedica o último número (Fevereiro-Março) ao que chama «a batalha das línguas». Trata-se desse confronto em crescendo, vivido neste momento à escala planetária, que associa a cartografia dos falares a uma ordem política e económica que se sobrepõe à liberdade das escolhas individuais. Em «Une idée en marche, la latinité», Philippe Rossillon, actual secretário-geral da União Latina, fornece mesmo um exemplo dramático desta realidade, na qual a exclusão em relação a uma língua pode até conduzir ao mais extremo desespero: em Itália foram já registados muitos casos de depressões nervosas, e até de suicídios, ocorridos com alunos cujos acasos da vida escolar os haviam forçado à aprendizagem do francês em detrimento do inglês, afastando-os aparentemente de uma vida profissional com boas expectativas.
Nesse artigo, Rossillon sublinha a necessidade de elaborar um padrão de resposta a este estado de coisas, assegurando a força de outras opções. O seu ponto de vista, favorável a um retorno do protagonismo das línguas novilatinas, merece a atenção desde logo porque exclui, o que me parece do mais elementar bom senso, qualquer hipótese de revanche do francês (hoje a língua materna de «apenas» 77 milhões de pessoas, contra, por exemplo, os 358 milhões do espanhol e os 170 milhões do português). Depois porque propõe um esforço conjunto das línguas de matriz latina fundado numa tomada de consciência de um perigo partilhado – a larga maioria dos seus falantes podem ver-se forçados, em breve, a comunicarem entre si em… inglês – e na necessidade destas se orientarem, um pouco como o fazem já os países escandinavos, para uma reciprocidade nos domínios linguístico e cultural indispensável para a sua sobrevivência neste território de batalha. E, por fim, porque entende que o seu papel neste combate implica uma mobilidade, uma modernização e um esforço de aproximação capazes de fundarem uma verdadeira alternativa à fluidez pragmática do inglês. Língua que conta com 322 milhões de native speakers mas é falada, em larga medida devido à posição hegemónica da cultura americana e à sua adaptação à inovação tecnológica, por pelo menos 530 milhões de seres humanos.
O ex-chanceler social-democrata alemão Helmut Schmidt, de 89 anos, e a sua mulher Loki, de 88, foram ambos processados por autoridades policiais de Hamburgo após terem sido denunciados por uma organização de vigilância e pressão de não-fumadores – sim, parece que na Alemanha já há disto – que os acusa de terem fumado durante um acto público num teatro da cidade. De acordo com o El País, Schmidt foi operado por duas vezes devido a problemas cardíacos mas fuma sem parar cigarros mentolados e gaba-se mesmo de o fazer como um acto de desobediência civil e expressão da sua própria liberdade («eu só não fumo na igreja», declarou há dias). Loki Schmidt é um pouco mais diplomática e objectiva: «os médicos aconselham-nos a não deixar de fumar pois isso provocaria uma situação de stress para o nosso corpo».
Esta semana foi divulgado publicamente um documento assinado por um amplo grupo de cidadãos de Coimbra com responsabilidades e com actividade na área de cultura, destinado – esgotadas que parecem estar todas as possibilidades de um diálogo construtivo e razoável com os responsáveis autárquicos – a chamar a atenção para o estado trágico e calamitoso em que se encontra a política cultural municipal. Nada melhor, para se entender o sentido do documento, do que segui-lo de perto: «Coimbra é hoje uma cidade amarfanhada do ponto de vista cultural, que só não se tornou absolutamente insignificante a nível nacional graças à actividade que, no limiar da sobrevivência, os poucos agentes culturais que ainda restam conseguem ir desenvolvendo. A Câmara Municipal já não se limita a não apoiar devidamente a actividade cultural que aqui é feita; assume-se, pelo contrário, como um elemento dificultador e tendencialmente destruidor do potencial de criação artística que a cidade possui e que é uma das suas principais mais-valias.»
Quem vive em Coimbra ou conhece bem a cidade tal qual ela é hoje, e tem uma noção actualizada e democrática do que pode e de qual deve ser o lugar dos executivos municipais na dinamização e na modernização cultural, sabe bem do que se fala quando se desenha um panorama funesto daquilo que a este nível ali (aqui) se tem vindo a passar. O que é tanto mais grave quanto se sabe que a «cidade dos estudantes» é principalmente habitada por quadros de formação universitária, bem como por uma classe média e por uma população juvenil bastante numerosas, que possuem expectativas culturais, de uma natureza urbana e crescentemente globalizada, totalmente incompatíveis com a dimensão popularucha e kitsch que neste domínio a gestão camarária tem assumido. Voltada quase exclusivamente para um público semi-rural, adepto de um certo «folclorismo» passadista e minoritário já em termos demográficos, a Câmara de Coimbra nem sequer parece aperceber-se da forma como essa atitude cria um mal-estar que prejudica a sua própria imagem. No presente e para o futuro. É importante – e urgente – contrariar este estado de coisas.