Road Movie [1]

Banda sonora: Raz Ohara and The Odd Orchestra – Love For Mrs. Rhodes
[audio:http://aterceiranoite.files.wordpress.com/2008/06/10-love-for-mrs-rhodes.mp3]

Banda sonora: Raz Ohara and The Odd Orchestra – Love For Mrs. Rhodes
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Li algures que La Chinoise, de Godard, é «um belo hino à juventude». Provavelmente foi-o, na enunciação plástica de uma atitude de entrega e de convicção tão própria daqueles jovens m-l, filhos (eles achavam-se enteados) da burguesia, que pelos finais dos sixties trocava o conforto dos sofás paternos pelo frio das oficinas, noites de conversa à volta de uma frase de Mao e porrada da polícia. A retórica primitiva e o despojamento, a defesa de uma crueldade justiceira, a adoração das unhas negras e rachadas, eram coisas menores perante um combate que só os jovens, aqueles e não outros, perfeitos e imunes às dúvidas, saberiam travar. Parece feio, visto daqui. Mas era lindo e impreterível.

Soube agora pelo Luís que morreu o Esbjorn Svensson. Fiquei mais triste e mais surdo.
[audio:http://aterceiranoite.files.wordpress.com/2008/06/1-05-viaticum.mp3]EST – Viaticum


Uma das mais impressionantes descrições do horror da guerra, da total combustão provocada pelas bombas de enorme potência, da devastação para além do imaginável, foi produzida por Sebald na História Natural da Destruição, ao descrever Hamburgo reduzida, em Julho de 1943, a escombros, fantasmas errantes e cadáveres feitos em papa. E no entanto o escritor alemão referia-se a uma devastação silenciada, olhada durante décadas como justificável por ter acontecido do lado dos vencidos. Não tanto os nazis, que esses puderam sempre suicidar-se ou mudar de identidade, mas todos aqueles, pessoas mais ou menos comuns, que viram desmoronar-se o prometido «Reich de Mil Anos» e deveriam expiar até ao fim, na humilhação, no silêncio e na carne, a cumplicidade, involuntária ou não, com um horror considerado maior pelos vencedores.
Não me surpreende, pois, o emudecimento daqueles que calam hoje os crimes resultantes das bombas largadas nos últimos vinte anos sobre todo esse território, vasto e arenoso, que vai de Gaza até Cabul. Aqueles que mais de perto têm experimentado o seu impacto não estão do lado dos vencedores, pouco sabem do que representou Auschwitz, e jamais ouviram falar do Gulag ou mesmo de Guantánamo. Pouco sabem até das «fronteiras bíblicas» que lhes são atribuídas. Ou da liberdade da qual falam em seu nome. Não escolhem nem sabem que podem escolher, apenas vivem. E o horror que conhecem, e o ruído dos voos rasantes dos F-16 dos quais nos falam os títulos da manhã, apenas lhes importam na medida em que lhes interrompem os hábitos de sobrevivência. Vistos daqui do nosso conforto, ou lá de cima desde os cockpits, são apenas pontos negros que se movem e que olhamos com a mesma dose de piedade que experimentamos ao olharmos as moscas de verão liquidadas com um jacto de spray. O horror dos outros não existe quando o não vemos ou desviamos o olhar.
Publicado originalmente, por convite, no Corta-Fitas

Obama é o escolhido. Começou o tempo de todos os compromissos.




Apontamentos do Maio – adenda
Tinha decidido fechar a série de apontamentos sobre o Maio de 68. Terminara o mês da efeméride e toda a gente estava, e por certo continua, mais ou menos farta de tanta evocação. Mas porque só o pude fazer na noite passada, não quero deixar de referir o visionamento doméstico de Grands Soirs et Petits Matins (traduzido como Os Dias de Maio), o documentário de William Klein que me chegou há cerca de duas semanas com o exemplar do Público.
O filme não é, como eu descuidadamente pensara, uma simples montagem de fragmentos particularmente importantes da revolta estudantil e operária. Ainda que se reporte a episódios e a ambientes que tiveram lugar já na segunda parte do mês – quando a revolta transbordara dos ambientes estritamente estudantis e intelectuais, e o PCF considerara já que talvez pudesse resgatar em seu proveito o estardalhaço dos jovens radicais «pequeno-burgueses» – é muito mais que isso. Expõe diante dos nossos olhos um conjunto de testemunhos inequivocamente espontâneos, reveladores todos eles de um ambiente de intensa politização, e de questionamento do próprio conceito de revolução, que é tão rico quanto revelador. E um conflito de códigos e de valores observado em plena construção (impagável a sequência na qual um comité inteiro procura serenar telefonicamente a mãe que desconhecia há vários dias o paradeiro do seu filho rebelde).
Aquilo que mais me parece ressaltar deste documentário é, porém, a percepção de um «estado geral de exaltação» que apenas é possível captar em momentos revolucionários, com instantes densos, nos quais parece concentrar-se todo o destino da história, e também da vida, daqueles que o protagonizam. Não que o Maio de 68 tivesse constituído uma revolução – claro que o não foi. Mas, de uma certa forma, assistiu sem qualquer dúvida à materialização de uma série de questionamentos que confluíram, explodiram e foram verbalizados naquela precisa ocasião. E isso Grands Soirs et Petits Matins mostra-o muito bem.
No topo da minha leitura emerge ainda, como um símbolo, a personalidade cujo perfil eu julgava conhecer razoavelmente e que aqui, imersa na acção e na intensidade insone daquelas semanas, se me afigura de uma forma mais completa. Aquilo que Daniel Cohn-Bendit mostrou, o que o tornou então uma figura influente e de grande capacidade magnética, o que levou anfiteatros à pinha a ouvi-lo como a um semideus, foi sobretudo o seu discurso optimista e bravo, descomprometido, isento de clichés e profundamente irónico. Longe, a anos-luz, da seriedade rígida e do discurso previsível dos protagonistas («responsáveis», tal como se autodesignavam) da esquerda, ortodoxa ou radical, para quem, ontem como hoje, o humor jamais supera o nível do sarcasmo. No Cohn-Bendit «histórico» que este filme me revelou com um fulgor visual que não conhecia, impera o sentido da provocação, mas também o prazer e o riso, por vezes um júbilo que não carece de explicação. Como se sabe, categorias que embeberam particularmente a cultura juvenil universitária e urbana cujo processo de afirmação pontuava a época. Aquela que o adorava e estava na rua, em massa, durante as irrepetíveis movimentações parisienses do Maio-passado que aqui se evocou.

Em tempo de «loucura do Europeu», torna-se quase imprescindível a leitura do Babelia deste sábado, que transporta consigo um energético dossiê sobre a cultura do futebol. Para abrir o apetite e acabar de vez com os preconceitos – ou então enjoar os mais fracos de estômago – proponho desde já o artigo introdutório de Vicente Verdú.


Um bom exemplo do regionalismo no seu pior é-nos dado todos os dias por uma estação de televisão por cabo chamada Porto Canal. Ao acaso do zapping pós-prandial, tenho deparado ali com programas que, com raríssimas excepções, são de uma qualidade realmente deplorável (um bom exemplo é «Por um Canudo», provavelmente o pior programa de apanhados do hemisfério norte). Quase todos eles se esforçam por alimentar o penoso sentimento de inferioridade que muitos cidadãos do Porto experimentam em relação a Lisboa. Há dias, por exemplo, um debate entre quatro comentadores residentes com acentuado sotaque da Cedofeita tentava descodificar, com aparência de seriedade, a razão pela qual «as pessoas de Lisboa chamam habitualmente galegos» aos naturais da cidade (tratamento do qual, devo confessar, jamais tinha ouvido falar até esse momento). Num outro procurava provar-se que sendo «a percentagem» (sic) do rendimento per capita do Porto «metade da de Lisboa» (sic), deveria ser o Estado a restabelecer o equilíbrio. Ora tive hoje outro extraordinário exemplo daquele padrão de provincianismo: apesar de considerar diversas capitais europeias, o boletim meteorológico do Porto Canal apenas fornece previsões de temperatura e de pluviosidade relativos às cidades portuguesas que vão de Viana do Castelo a Aveiro.
Antes que alguém se impaciente desnecessariamente com este post, declaro desde já que gosto muito do Porto, onde aliás já morei por dois períodos. E que vivo numa cidade – que eu considerava do centro do país mas que afinal parece ser do sul – na qual a relação entre media e provincianismo é igualmente forte.

Entra-me pela mailbox adentro um anúncio de um espectáculo que recomenda, subvertendo a velha frase, «Relax, don’t have a cigar». Acreditem os seus autores que produziu o efeito inverso. Uma bandeira da resistência ao higienismo dominante esvoaça desde há meses na janela do meu gabinete de trabalho. Sem a hipótese de ser trocada pelas ordens verde-rubras de mister Scolari ou do professor Marcelo. Ao menos aqui deixem-me em paz.

Apontamentos do Maio – 14
Vi hoje à hora de almoço, por um acaso, a maior parte do documentário televisivo 1968. O Mundo em Revolta, de Michèle Dominici. Nada de particularmente novo, para além de mais uma revisitação à memória do tempo por parte de alguns dos seus mais conhecidos actores de ambos os lados do Atlântico (Cohn-Bendit, Robin Morgan, Tommie Smith, Felix Dennis, Alain Krivine, o argelino Nadir Boumaza e o irmão mais velho do estudante checo suicida Jan Palach). Todos eles, exceptuando naturalmente o último, pessoas que permanecem activas e que não entendem a sua experiência militante como simples desvario de uma juventude consumida em gestos equívocos (como o fazem alguns dos nossos ex-maoístas, por exemplo, que insistem em falar do seu próprio passado como de uma velha medalha oxidada).
Particularmente interessante, porque mais prospectivo, o testemunho de Krivine, na época figura central da Juventude Comunista Revolucionária, de orientação trotskista, e hoje dirigente da LCR. A um dado momento, refere um pormenor ao qual acaba por dar relevância: para ele, o Maio de 68 terá representado, talvez, um dos derradeiros momentos nos quais, no interior das democracias parlamentares do ocidente, se utilizaram fotografias de figuras associadas ao conceito de revolução socialista (Marx, Engels, Lenine, Rosa Luxemburgo, Trotsky, Mao, Ho Chi Minh, Fidel, o Che, e outras) como ícones de um movimento de massas. De todas elas, apenas o Che permanece visível, e ainda assim, como se sabe, mais como uma insígnia do que como representação de um «guia para acção». Krivine conclui esta constatação conferindo-lhe uma dimensão positiva: olhando este desaparecimento como sinal contemporâneo de uma certa dessacralização da mitografia marxista e de um tempo de procura de uma nova ideia de transformação, capaz de dispensar a imagem ou mesmo a presença simbólica de guias admiráveis e inspiradores. Não deixa de ser uma percepção que vale a pena recolher.

