As 1001 Noites (3)



Um quadro de A Lição de Salazar para turistas britânicos de passagem pelo Hotel Palácio do Estoril pelos inícios dos anos cinquenta? Não, não, trata-se antes de uma página de um manual de aprendizagem de inglês – oficial, naturalmente, como o eram todos também por aquelas bandas – publicado na União Soviética pela mesma época. Mais informação e imagens aqui.
É provável que passe despercebida nas livrarias, ou que apenas congregue o interesse de um pequeníssimo número leitores, uma obra de Rob Riemen chamada Nobreza de Espírito, um ideal esquecido (ed. Bizâncio). O título faz ressoar a defesa de um conceito presumivelmente gasto e fora de moda. O que até nem será de admirar se tivermos em conta que este ensaísta e filósofo holandês define como assumida inspiração para o seu trabalho a vida e a obra de Thomas Mann. E em 1955, quando desapareceu, Mann era já um homem de «outra época», que na derradeira palestra pública, «Os Anos da Minha Vida», decidira, contra a tendência que já se formava no horizonte, falar do ser humano como criatura una na diversidade, capaz de moldar o tempo e viver a vida cultivando-os, de forma autónoma, num sentido globalmente comum e forçosamente partilhado.
Mas ainda que possa corresponder a um ideal abandonado, seja o que for que possamos tomar por «nobreza de espírito» trata-se de algo, de uma escolha, de uma experiência, que apenas está ao alcance dos humanos. Irremediavelmente associada à fidelidade tenaz, necessariamente difícil porque requer coragem, a fatores que «nobilitam» – como verdade, liberdade, justiça e razão enunciados sem aspas – e, por isso mesmo, posta em causa sempre que se considera que valor algum tem uma dimensão universal, podendo caber, ainda que naturalmente adaptado a diferentes circunstâncias e distintas realidades, em qualquer tempo ou lugar. A relativização de todos os princípios e de todos os códigos, hoje imperante em muitas áreas do pensamento político, do saber científico, das práticas sociais ou do relacionamento entre os povos, tem feito desaparecer a afirmação de princípios gerais de entendimento, capazes de dotarem o humano de um sentido partilhado, solidário, que todos possam reconhecer e que a todos possa aproximar. Promovendo, de forma subtil mas contínua, um retorno histórico à sensibilidade pré-humanista, autárcica e anti-universalista que mergulha fundo na obscuridade medieval. Um ar do tempo que, no entanto, pode ser contrariado. O primeiro passo para o conseguir passará por uma compreensão das potencialidades da alternativa. Uma tarefa na qual, com este livro a contracorrente, Riemen procura participar.
Versão revista de um texto publicado na revista LER de Outubro de 2011.

Um grupo de técnicos de uma unidade industrial de Amarillo, Texas, dependente da National Nuclear Security Administration, acaba de concluir o desmantelamento daquele que o governo norte-americano afirma ter sido o último exemplar da B-53. O objeto não era de todo inofensivo, uma vez que continuava a ser considerado a bomba termonuclear mais poderosa do mundo, seiscentas vezes mais potente do que a lançada sobre Hiroxima em 1945. Esta arma assustadora fora um produto demencial da fase mais quente da Guerra Fria, e tinha sido concluído de forma acelerada, no início dos anos sessenta, na altura da Crise dos Mísseis de Cuba. A B-53, carinhosamente apelidada de Big Dog pelos militares que a haviam concebido com o objetivo de exterminar parte da humanidade, destinara-se a ser lançada de bombardeiros estratégicos de longo alcance B-52. Era capaz de rebentar com bunkers e de enviar ondas de energia através do solo semelhantes às dos sismos, fazendo desaparecer grupos de cidades ou países inteiros, e desimpedindo de vez o uso dos botões vermelhos da Casa Branca e do Kremlin. Despoletando então a batalha final, o dia antes do «day after», o fim dos tempos, esse Armagedão que, com forte sentido de realismo, Stanley Kubrick desenhou em 1964 na sequência derradeira do filme Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (em Portugal Dr. Estranho Amor ou: Como Aprender A Deixar De Me Preocupar E A Amar A Bomba). No entanto, este gesto simbólico da administração americana não parece suscitar agora qualquer sentimento de alegria, alívio ou segurança, surgindo nas notícias como uma simples curiosidade. Na realidade, todos sabemos que a indústria da guerra foi entretanto inventando outros meios menos espetaculares, menos definitivos, mas mais insidiosos e eficazes de gestão do medo e do poder. Por isso este objeto estrondoso pode muito bem ser abatido sem danos de maior para a atual ordem do mundo.


Há alguns dias deixei no meu mural do Facebook uma ligação para um post de J. Rentes de Carvalho publicado no Tempo Contado. A propósito da atual crise e da necessidade de muitos portugueses de classe média cortarem nas despesas correntes, referia-se aí o recurso imoderado aos serviços das chamadas mulheres-a-dias como sinal de um certo desperdício e de menosprezo pelo trabalho manual recorrente entre muitos de nós. A partir desse texto, abriu-se então uma conversa que divergiu em algumas direções: a necessidade ou o direito a fruir de trabalho manual pago, a relação entre esse tipo de serviço e o complexo horário de trabalho de quem a ele recorre, ou o modo como ele é importante para a economia doméstica das pessoas que dele fazem o seu meio de vida. No entanto, talvez tenha passado um pouco ao lado da discussão aquela que me pareceu ser a intenção do autor e a razão pela qual chamei a atenção para o que ele escrevera no seu blogue. Sublinho: a desvalorização do trabalho manual que afasta do horizonte de muita gente a simples possibilidade de sacudir uma passadeira, de cozinhar o seu próprio almoço ou de limpar o quarto de banho que sujou.
O tema é tanto mais pertinente quanto se sabe que no norte da Europa – objetivamente mais rico, com mais pessoas de vida desafogada – esse tipo de serviço é usado apenas em situações especiais, não diria raríssimas mas bastante limitadas. Além disso, trata-se por ali de um serviço muito bem pago. No seu post, o escritor invocava o caso holandês e a influência da ética calvinista, que conhece diretamente, mas poderíamos alargá-lo a outros exemplos e tradições. Ao seu comentário, que não será indiscutível mas no essencial faz para mim todo o sentido, posso entretanto juntar um outro. O costume da casa burguesa arrumada todos os dias, com tudo no seu lugar, os metais a brilhar e o ambiente a cheirar a limpeza recente, é típico das classes média e alta do sul da Europa. Um estudo sociológico recente que me foi relatado – não tenho a referência completa mas a pessoa que me falou dele merece confiança – refere a forma como essa obsessão cultural pela limpeza irrepreensível é responsável até pelo agravamento, em alguns países, das condições de trabalho das chamadas donas de casa, por sua causa forçadas a uma sobrecarga de trabalho. É possível cartografar esta situação: Portugal, a Espanha, o sul de França, a Itália. A ética católica será aqui irrelevante, uma vez que a Irlanda não participa deste culto do detergente e do espanador. No norte, de facto, ninguém se incomoda tanto em ter de tirar uma pilha de papéis de cima de uma cadeira para se sentar ou receber as visitas. Ou de ter os brinquedos dos miúdos espalhados pela casa. Ou de reparar em que está um pouco mais de pó sobre o parapeito. Não sei se não teremos de nos adaptar rapidamente a tais hábitos.

Três apontamentos ainda a propósito da execução pública de Kadaffi e do filho Mutassim, bem como da repercussão que a divulgação mediática desses momentos tem merecido. São também três dificuldades na leitura de um horror que podemos não aceitar mas teremos de compreender.
1. Mais chocante até do que a morte medonha do ex-líder líbio parece-me ser a do filho Mutassim. O que mais perturba a nossa sensibilidade é vê-lo, em fotografias e vídeos tomados depois da captura, bebendo água mineral por uma garrafa e fumando serenamente um cigarro. Percebermos que por minutos lhe foi oferecida a expectativa da salvação («pronto, acabou…»), seguindo-se a esta uma execução sumária e sem piedade. Dar e tirar repugnam a nossa consciência de matriz judaico-cristã, onde castigo e perdão são faces da mesma moeda. Mas nem todos pensam e agem como nós. E nem em todos os momentos ela tem validade. Na guerra, aliás, a primeira coisa a ser perdida é sempre a codificação ética aplicada em tempos de paz.
2. Não tem sido devidamente considerado o facto de o fim horrível de Kadaffi ter chegado às mãos da famosa brigada de choque de Misrata, que jurara apanhá-lo à mão. Misrata, relembre-se, foi a cidade que mais sofreu durante o cerco imposto pelas tropas do ex-ditador, devastada e quase integralmente transformada em escombros, com muitos milhares de mortos, incluindo-se entre estes doentes hospitalizados. Lembrando-nos disto mais facilmente entenderemos a dificuldade do perdão e a tontura da vingança. E a vontade de transportar o corpo para a cidade e de o expor de modo a que as vítimas pudessem olhar de frente o rosto do algoz. Tem milhares de anos e é universal a tradição da decapitação e da exposição entre ao povo vencedor da cabeça do chefe vencido.
3. Uma vez mais, a NATO, e em consequência «os americanos», estão a ser cegamente apresentados por alguns setores como principais responsáveis morais destes atos brutais e definitivos. É óbvio que esta barbárie filmada – e toda aquela que não pudemos ver – lhes escapou ao controlo e que, apesar de instrumentais no derrube de Kadaffi, teriam todo o interesse em evitá-la. Até pela consabida posição dúbia dos líderes ocidentais perante aquilo que se vinha passando desde há décadas na Líbia. Só quem não se esforce por entender a especificidade e a força dos conceitos de honra e vingança no mundo islâmico, ou os distúrbios potenciados por uma guerra civil, pode escandalizar-se com o que aconteceu no terreno e nas horas decisivas. Para nós lamentável e escusado, sem dúvida, mas para «eles» inevitável como exorcismo.

Um parágrafo sobre o fim de Kadaffi. Toda a morte é lamentável e esta não o é menos. Observada daqui, em imagens horríveis, não deve alegrar ninguém. Já o mesmo não acontecerá, com toda a certeza, com quem viu pais, filhos, irmãos, amigos, presos, torturados e mortos sob o seu regime. E para quem o combateu, nesta fase definitiva, de armas na mão. Na guerra, e principalmente numa guerra civil, é muito difícil o perdão no momento do combate, pois trata-se de matar ou de morrer, e paira no ar um forte odor a vingança. Mas custa a entender que se possa condenar esta morte terrível sem condenar as outras que o morto assinou, só porque andam uns quantos aviões pouco inocentes a cruzar os céus em voo picado. Como custa a entender, lá mais adiante, o silêncio cúmplice diante dos milhares de mortos sírios de Bashar Al-Assad. O futuro agora é complexo, muitas e discordantes são e permanecerão as forças em presença, o petróleo líbio será sempre bastante tentador. A liberdade e a justiça, para os que vivem naquele país de pequenos oásis e um imenso deserto, fazem parte de um caminho longo e sinuoso, com troços intransitáveis, que apenas começou. Tudo está evidentemente por decidir. Teria sido melhor, é verdade, que o ciclo encerrasse de outra maneira. No entanto, assim o quiseram uns e os outros.

«No começo não há sangue, os indícios são inofensivos.»
(Hans Magnus Enzensberger, Perspectivas da Guerra Civil)
A violência de rua está nas primeiras páginas. Em Atenas, Roma ou Madrid, ela emerge como manifesto visível dos protestos dos mais lesados pela crise artificial, rigorosa e prolongada que afeta as sociedades do sul europeu. Em Lisboa – como em Dublin, que não fica a sul mas para lá vai resvalando – o ruído de uma indignação agressiva e da chuva de pedras caindo sobre os escudos da polícia é ainda ténue, resultado provável de uma maior predisposição cultural para a resignação, mas quando o último dos limites for ultrapassado cá chegará também. Não se trata de uma paisagem agradável, embora ela seja provavelmente necessária, ou pelo menos compreensível, uma vez que a ausência de uma resposta forte e sonora apenas acentuaria a condição de impunidade que domina os responsáveis últimos por toda esta situação. Esta não é, no entanto, a pior das violências a temer, uma vez que será sempre episódica e localizada. O mal, o verdadeiro mal, está na diminuição brutal dos direitos que a Europa está a viver e no descrédito da democracia, produzindo todas as condições para que o uso da força seja mostrado como instrumento de salvação e, em consequência, para que comece a moldar-se um futuro sombrio no qual as liberdades serão limitadas e os cidadãos viverão iludidos e humilhados.
Aproximam-se então dois cenários ainda há pouco considerados longínquos ou julgados impossíveis, apresentados como hipóteses académicas ou resíduos de um passado que pertencia apenas aos livros de História. O primeiro destes cenários subentende a emergência de um autoritarismo caracteristicamente conservador e de direita, de raiz populista, que apoiado no descontentamento dos cidadãos e no descrédito dos partidos tradicionais, possa tomar o poder através de eleições, destruindo depois o próprio regime, como aconteceu na Alemanha com a República de Weimar. Nada desta figuração se apresenta à vista desarmada, mas qualquer um percebe que, no presente momento, basta que apareça um nome e se reúnam algumas vontades para que a serpente saia do seu ovo. O segundo cenário não é, porém, menos dramático. Ele supõe o crescimento rápido de uma esquerda antiparlamentar, apoiada no entendimento da violência como «parteira da História» e nos velhos princípios do autoritarismo de matriz leninista, estruturalmente defensora da centralização do Estado e da repressão da divergência, observada sempre como «contra-revolucionária». Esta é uma possibilidade que, nas condições presentes, pode também ser imposta pelo voto de protesto anticapitalista da maioria dos cidadãos, de acordo com um panorama ainda há bem pouco tempo considerado delirante mas agora inteiramente plausível.
Num e noutro dos casos, é sempre o espetro da força e da coerção, a redução compulsiva do pluralismo e dos direitos individuais, que em nome de urgências maiores, como a necessidade de pão para a boca ou a sobrevivência do Estado-Nação, nos ameaça. Não de longe, mas já aqui, talvez mesmo ao virar da esquina. Estão praticamente reunidas, como dirá a cartilha, as condições subjetivas para que ele apareça à nossa frente. Resta esperar pelas objetivas, que podem não tardar muito. O filme, que parece de terror, está a correr depressa, demasiado depressa.

Outros (e outras) poderão ter vivido semelhante experiência noutros lugares, quem sabe se até à porta de casa, mas nunca me cruzei com tantas mulheres tão perturbadoramente belas como naquele ano em Angola. Bonitas sem limite, de todas as cores, de todos os aromas, com corpos esplêndidos e um porte único. Capazes de «faire tourner la tête» e de deixar um sujeito parado na contramão atrapalhando o trânsito. Nos anos derradeiros do regime velho, aliás, certas beldades afro-portuguesas eram como um emblema usado para proclamar a dimensão planetária da pátria, disputando a glória e os favores públicos aos jogadores de futebol, aos fadistas, às estrelas do teatro revisteiro, aos ídolos do nacional-cançonetismo destacados na rádio, tv e disco (não havia ainda cassete pirata). Jornais e magazines de atualidades, os editados nas colónias mas também os da metrópole, transmutavam a mulher africana, e mais anda aquela cuja compleição resultava de uma mistura genética incutida pela mestiçagem, fosse ela negra assimilada, mulata, cafuza ou branca com sabor tropical, em ícone de um Portugal tórrido e multirracial, vestindo maillot, que começava na foz do Minho e seguia por aí afora, manejando as ancas num desfile que só deveria terminar nas praias de Timor.
Os concursos de misses eram, na época, momentos centrais desse esforço de transformação de forças da natureza em emanações morfológicas da identidade pátria que o regime inventara. Algumas fizeram até carreira na metrópole, onde, apesar do clima menos propício ao desabrochar dos corpos, as possibilidades profissionais eram maiores e mais aliciantes. Ainda assim, muitos viam já nesses concursos, para além de instantes de uma cultura predominantemente masculina que reconduzia a mulher ao papel de suave e subalterno adorno, a intervenção censurável da propaganda do regime na construção de um ideal de perfeição que tapava a realidade mais escura, nada bonita, nada dengosa, da situação da mulher sob o Estado Novo e o jugo do colonialismo. Custa por isso ver como, logo após as independências, os certames destinados a designar as misses isto-ou-aquilo se mantiveram como ocasiões de entretenimento das massas e de encenação da grandeza putativa – ditosa pátria que tais filhas gera! – de novos regimes mais ou menos despóticos. A recente aparição de Leila Lopes, a angolana consagrada Miss Universo 2011 em São Paulo, e sobretudo o estardalhaço feito em seu redor pelos propagandistas de Luanda, representam mais um momento dessa transformação da beleza feminina numa encenação buffa, e neocolonial, de um orgulho degradado.
De repente, ao acaso de um post do Facebook, sobrevém uma das minhas reminiscências mais antigas e ao mesmo tempo mais cintilantes e imperecíveis. Associada a um sentimento de pena verdadeira pela perda de alguém que jamais conhecera. Na tarde do dia 10 de outubro de 1963, seguia por uma estrada secundária do norte geográfico no banco de trás do Carocha familiar quando o locutor de serviço da Emissora Nacional interrompeu a emissão para anunciar a morte de Edith Piaf. Passou de seguida «Non, je ne regrette rien» e eu, sem idade sequer para ter um passado e poder recusar o quer que seja, defrontei mudo a emoção instantânea, profunda e completa que consigo agora rememorar.

Um fragmento da crónica de Clara Ferreira Alves – «Agora, estamos a enlouquecer» – saída hoje no suplemento Única do semanário Expresso. Não sei se o mail do amigo grego que cita é verdadeiro ou um mero artifício de cronista. Não importa, pois num caso ou no outro ele é demasiado real, confrontando-nos com um clima geral de desesperança, depressão e raiva que não augura nada de bom. Principalmente se as tentativas para encontrar uma saída continuarem a ser conjunturais, sem tino e sem norte. Desculpem se vos estrago o sábado.
«O que está a matar a Grécia é a incerteza, com a incerteza ninguém põe aqui um tostão. Querem que privatizemos mas quando privatizamos quem é que vai investir num país que é considerado, diariamente, perdido? As notícias sobre a Grécia matam a Grécia, os alemães ajudaram a matar a Grécia. Como querem que um devedor pague a dívida depois de estar morto? Quando nos emprestaram dinheiro ninguém quis saber se o íamos pagar. Ninguém. Toda a gente fingiu que não viu o que se estava a passar, a corrupção, os partidos a contratar as clientelas, as contas aldrabadas. Vir dizer que foram apanhados de surpresa, os devedores, é uma colossal mentira. Os gregos sabiam, os bancos sabiam, toda a gente sabia, e toda a gente ganhava dinheiro à custa disso. Esperar que um povo se reforme de um dia para o outro é um erro. Tempo é do que precisamos mais, e ninguém nos dá». E o pior de tudo? O que é que a crise faz às pessoas? «O pior é a tristeza. Depois da indignação e da raiva desce a tristeza. Em Atenas a tristeza é uma coisa espessa, uma escuridão que não levanta. As famílias zangam-se, os casais separam-se, os amigos desconversam, a existência torna-se impossível quando nada funciona, quando não há dinheiro. Atenas vive em estado de terror e protesto. Era uma cidade alegre, é uma cidade desavinda. É como se a vida tivesse sido sugada das ruas e as ruas servem para a batalha campal. Pessoas que viviam bem agora contam os tostões para comer amanhã. As pessoas estão a perder as casas, a comida, as escolas dos filhos. Nem a emigração nos ajuda, porque ser-se grego nos tempos que correm é uma maldição. O grego tornou-se a escória da humanidade, o símbolo de tudo o que está errado como mundo financeiro e a Europa. Ninguém nos quer, só querem as nossas ilhas e a posição no Mediterrâneo. E cresce o sentimento antialemão. Coisas do tempo da guerra vêm ao de cima, rancores, ódios, vinganças. Nunca mais vamos recuperar dos danos morais desta crise. Nunca. Uma parte de nós já morreu. Estamos num comboio descontrolado. A Grécia era a última estação. Já passámos».

Da série Camouflage, de Liu Bolin.

Já aqui deixei há dias algumas notas sobre as razões que levarão Alberto João Jardim a ganhar de novo, eventualmente com maioria absoluta, as eleições para a Assembleia Regional que estão a decorrer. Nada tenho a acrescentar ao triste rol. Existe, todavia, um comentário adicional que importa fazer, tendo em consideração as sondagens que confirmam a tendência e a reação de muitos populares madeirenses a inquéritos de rua nos quais lhes perguntam o que acham das contas da região: os dados esmagadores que têm sido divulgados por entidades insuspeitas sobre a ocultação da dívida (não o excesso, pois esse não é exclusivo local, mas a ocultação) e o desvio sistemático de verbas das rubricas para as quais estavam previstas, aplicado ao longo de vários anos, muitas das vezes com a complacência medrosa do governo da República, não perturbam a esmagadora maioria dos eleitores de Jardim.
Lá como cá, a ausência em muitas cabeças de um sentido claro e solidário de cidadania, o desinteresse pelos conceitos de honradez e credibilidade na coisa pública, impõem que a malfeitoria, desde que usada em proveito próprio, seja transformada em gesto admirável, em prova de esperteza, e o malfeitor seja convertido em paladino dos beneficiados. De onde vem o dinheiro e por que processos foi obtido, ou de que forma e por quem vai ele ser devolvido com os respetivos juros, tal não importa desde que nos alarguem a estrada, nos componham o coreto, nos dêem um autocarro novo para levar os miúdos, nos arranjem uma ocupação remunerada para a prima ou para o cunhado. Quem sofre com isto é obviamente a democracia representativa tal como a concebemos. Sim, esse péssimo sistema do qual dizia o outro senhor, que também fumava charuto e governava uma ilha, ser ainda assim o menos mau dos sistemas. O mais negativo da ideia está porém em pensar que não pode haver melhor. E se calhar pode.
De regresso à perceção partilhada por muitos, menos pelos mais austeros taxionomistas do género literário, de que todo o romance é autobiográfico. Mas sem querer desviar a conversa, talvez se possa dizer também que todo processo de leitura de um romance confronta aqui ou além a biografia de quem com cuidado o vai lendo. Uma vez mais, é isto que acontece com O Retorno, o grande romance de Dulce Maria Cardoso (n. 1964) que a Tinta-da-China acaba de publicar. E o que se passa também com a forma como o fui seguindo. Vamos por partes.
A autora foi, é, e já vai sendo tempo de não ter medo de usar a palavra que ainda há menos de vinte anos era uma mancha infamante para quem a arrastava, uma retornada de Angola. Fala bastante neste seu quarto romance dessa experiência, difícil e dolorosa nem será preciso dizê-lo – ou talvez seja –, como deixa claro na longa entrevista que deu à revista LER de Outubro. Conta também aí, sem rodeios, como esse lado da vida pessoal confluiu abertamente com o processo de inventiva e de escrita do livro agora publicado. Rui, o narrador, é a outra face, masculina por artifício, da escritora. Se todo o trabalho de escrita romanesca supõe, como é sabido, estudo, caminhada e engenho criativo, encontra-se aqui também, visivelmente, um trabalho tenaz de rememoração. Da vida africana que ficou para trás, sem dúvida, mas principalmente do trajeto longo, incompreendido, guetizado, daqueles que regressaram – muitos sem jamais terem saído de África antes da ponte aérea – para longos anos de silêncio, apagamento, humilhação, pesadelos e luta pela vida. A saga africana e lusíada dos seiscentos milhares de retornados, iniciada nos anos passados no outro hemisfério, não pode ser mantida na penumbra, os seus protagonistas não podem riscar o passado de lá e de cá, e livros como este de Dulce Maria Cardoso ajudam-nos a cumprir a tarefa ingente e urgente da reexposição à luz. Pois só quando esta estiver concluída, os naturais de Portugal, e os dos estados africanos com quem Portugal partilhou parte substancial da sua história, poderão viver sem o peso da incompreensão, do remorso e, o mais difícil de perder, do ressentimento.
E agora a parte do leitor que se sentiu um pouco biografado. Saibam que nestas linhas estou aparentemente do lado dos maus: «Os soldados portugueses já quase não passam por aqui e os poucos que vemos têm os cabelos compridos e as fardas desleixadas, os botões das camisas desapertados e os atacadores das botas por atar. Derrapam os jipes nas curvas e bebem Cucas como se estivessem de férias. Para o pai os soldados portugueses são uns traidores reles (…).» Percorri a alta velocidade a Luanda sobreaquecida de 75, acompanhando como militar a transferência de poder e a partida desordenada de muitos colonos brancos, em parte empurrados pelo medo e pelo desentendimento da mudança, em parte pelo que pensavam ser (ou era de facto) a ausência de alternativas para a fantasiada utopia na qual habitavam. Vistoriei-lhes as malas, os contentores, levei crianças de colo ao avião, passei-lhes pelas casas abandonadas com camas, toalhas e fotografias de família devassadas, fumei sentado nos seus sofás, servi-me sem medo dos seus automóveis deixados ao abandono. Depois, na metrópole, fui ainda dos muitos portugueses – tantos deles anticolonialistas de última hora – para quem aquelas pessoas não passavam de figuras um tanto exóticas, difíceis de entender, e que era melhor não olhar de frente. Com quem era até preferível não conversar porque tresandavam a antigamente e falavam do que não importava falar. Gente cujo passado colonial deveria ser depurado de um crime indizível que de tão escabroso e indesculpável não merecia ser sequer apreciado. E cujos traços, marcas, experiências, deveriam ser definitivamente apagados. Mas não o foram e agora estão aqui, num rumor, pendurados nas nossas mãos. Contrariando os versos da cubana Dulce María Loynaz que esta outra Dulce Maria destaca na página final: «Las cosas que se mueren/no se deben tocar».
Dulce Maria Cardoso, O Retorno. Tinta-da-China. 272 págs.

No primeiro de novembro de 1954, Camus escreveu no seu caderno diário: «Leio frequentes vezes que sou ateu, oiço falar muito do meu ateísmo. Ora essas palavras nada me dizem, não têm qualquer sentido para mim. Não acredito em Deus e não sou ateu.» Uma forma íntima, e suficientemente simples, de insistir na abordagem de Deus, traduzida na decisão de não considerar o problema da sua existência como tema que mereça sequer grande atenção. Em A Peste, quando é perguntado ao Dr. Bernard Rieux se acredita em Deus, este responde com outra pergunta: «Não. Mas o que é que isso quer dizer?». Dito de outra maneira: a resposta a essa dúvida interessará a alguém? A aproximação mais completa ao tema surge, no entanto, em O Homem Revoltado. Aqui o sujeito em estado de revolta não põe necessariamente em causa a existência de um qualquer ser supremo, mas contesta a sua autoridade, que pensa dever ser aceite apenas com o consentimento unânime dos humanos. Uma religião consentida, um Deus democraticamente adotado, que não seja todo-poderoso, temível e castigador, eis a única medida aceitável do divino.

Os cinquenta artigos que compõem a coletânea A História Não Acabou foram quase todos publicados por Claudio Magris no Corriere della Sera entre 1999 e 2006. Ao lembrá-lo quase no final, o escritor sublinha a importância do meio utilizado para a forma tomada pela mensagem, declarando o jornal «um grande ginásio de luta kafkiana com a realidade e um laboratório de linguagem para a contar». Por isso todos esses textos, apesar de curtos e circunstanciais, travam um diálogo permanente, aberto ao leitor comum mas sempre exigente na forma, que materializa a aproximação criteriosa do autor com os acontecimentos que o vão confrontando. Só que, para este, o vínculo não impõe concessões ao fácil ou ao superficial, seja ao nível dos conceitos ou no campo da linguagem, tão comuns, como é sabido, entre os intelectuais que procuram a todo o custo o sucesso mediático. É pois um caminho árduo, mas por isso mesmo imprevisível e enriquecedor, o escolhido aqui para falar de muitas das feridas do presente e das opções que este nos vai fatalmente impondo. (mais…)