Recomendado também nos Caminhos da Memória, é já absolutamente imprescindível, para quem se interesse pela história da fotografia e pela memória do século passado, o Archivo Rojo da Guerra Civil de Espanha, integrado agora no Portal de Archivos Españoles.
Segundo Halbwachs, toda a recordação é uma construção, ou um processo de reconstrução imaginativa, por intermédio do qual integramos imagens específicas, necessariamente formuladas no presente, em contextos que identificamos como passado. Um passado que perdemos para sempre – se a máquina do tempo de H. G. Wells ou de Robert Zemeckis se mantiver no território da ficção, se o buraco de minhoca passar de uma hipótese – e ao qual apenas podemos voltar através de um esforço de recuperação que tem no presente, e sempre no presente, o seu ponto de partida. Quanto muito observamos esse passado à distância, de uma forma que tanto pode ser melancólica quanto excessiva, mas que dele retira apenas, enquanto memória, aquilo que queremos e da forma como o queremos. As imagens recordadas não são assim meras evocações de um «real» acontecido, mas antes representações desse «real» (sem hesitar, Pascale Piolino chama-lhes mesmo ficções). Por isso é a recordação menos um meio de acesso ao passado que um instrumento para explorar, a cada momento, os conflitos em volta do modo como deve ser evocado e transmitido o que aconteceu algures, de esta ou daquela forma, num lugar mais ou menos recôndito das nossas cronologias.
Nestas condições, sugere-nos María Inés Mudrovcic em Historia, narración y memoria, «os erros factuais são tão significativos como os esquecimentos ou as referências exactas». Ou, poderá acrescentar-se ainda, como as «recordações-ecrã», que para Freud nos protegem das verdadeiras recordações. Esta ideia configura um cenário de pesadelo para os historiadores que buscam aproximar-se apenas de um retrato tão «exacto» quanto possível, e sem som de retorno, do passado sobre o qual trabalham, mas pode produzir um efeito dinâmico sobre todos aqueles – principalmente os que se preocupam mais com a história do nosso tempo – que procuram hoje servir de mediadores entre o presente do qual participam e um passado ainda recente. Num «tempo curto», onde a recordação sobrevive na consciência viva de muitos dos seus actores e das suas testemunhas, essa dimensão de incerteza não imobiliza a compreensão do passado nem a transforma necessariamente numa selva impenetrável; ao invés, pode torná-la até mais completa, avivando a vigilância crítica e a ponderação dos critérios de prova e de verdade, sempre centrais em todos os processos de construção e de reconstrução da história. À pergunta «que fazer com tanto passado?», a única resposta só pode ser «aproximamo-nos dele e enfrentamo-lo de todas as formas possíveis», sabendo que jogamos sempre com a vantagem de actuarmos de uma forma móvel, buscando a melhor posição para intervirmos, sobre um objecto granítico – o acontecido – que possui uma grande força de atracção mas permanece imóvel.
Tal como reconhece desde há muito a neurologia, a memória é menos um simples mecanismo de registo do que um instrumento selectivo, que dentro de determinados limites muda constantemente de sentido. Só nos lembramos daquilo que queremos lembrar, ou que somos capazes de lembrar, e escolhendo o ângulo de observação que pretendemos. Investigações no campo da psicologia clínica e da psicopatologia cognitva (com Van Der Linden, por exemplo) mostram que temos tendência para lembrar-nos de uma forma muito mais viva de episódios que evocamos positivamente, ou que servem para construir uma imagem confortável de nós próprios.
É neste contexto que a memória colectiva funciona como um necessário complemento da memória individual, com a qual constantemente dialoga e que de alguma forma «corrige». De facto, ela não consiste apenas num conjunto de factos do passado socialmente reconhecidos, nem existe «por si», como defendem aqueles que nela buscam por vezes a «essência» de um povo ou de um destino, mas é antes, e acima de tudo – retomo Mudrovcic – «um código semântico que opera como contexto no processo de recuperação das recordações individuais». As recordações assumem-se então como «configurações de sentido» de eventos seleccionados a partir de «lugares da memória». Estes podem ser físicos (uma praça, uma prisão, um tribunal ou uma estátua), mas também imateriais (uma ideia, um sentimento, uma tradição, uma crença), e apenas adquirem sentido na forma como a cada momento são lidos e manipulados.
Porém, se a valorização de determinados «lugares» é transitória, nunca é unívoca ou se inscreve num trajecto linear. Muitas das vezes, por exemplo, a destruição dos velhos símbolos é posta em causa por sectores da sociedade, minoritários ou não, a quem um determinado passado suscita um efeito de sedução. Pode então acontecer que certos grupos – menos conformados com a ordem vigente, mais identificados com algumas causas – releiam a memória colectiva e a partir dela formulem uma vontade de recuperação dos monumentos destruídos, como tem acontecido na Europa de Leste ou, mais pontualmente, em países como Espanha ou Portugal (veja-se a polémica, entretanto aparentemente serenada, acerca do «museu de Salazar» e da estátua do ditador). São formas de pensamento nostálgico que suscitam esse tipo de retorno, e o seu espaço de afirmação e de combate é o da memória que o presente integra, mas inevitavelmente modifica e reescreve.
Por isso o combate pela memória é um espaço de permanente conflito entre leituras do passado. Por isso ele carece tanto de uma abordagem crítica que assuma não a vitória da «verdade histórica» – a qual jamais será una ou definitiva, como presumiam as grandes metanarrativas – mas um eterno confronto entre «verdades» que se digladiam. Só assim se tornará possível impedir que uma leitura do passado se sobreponha às outras, impondo a ditadura dos vencedores ou daqueles que controlam os saberes e os meios de comunicação de massas. Erguendo fronteiras e produzindo margens cada vez maiores de silenciados e de esquecidos.
Li algures que La Chinoise, de Godard, é «um belo hino à juventude». Provavelmente foi-o, na enunciação plástica de uma atitude de entrega e de convicção tão própria daqueles jovens m-l, filhos (eles achavam-se enteados) da burguesia, que pelos finais dos sixties trocava o conforto dos sofás paternos pelo frio das oficinas, noites de conversa à volta de uma frase de Mao e porrada da polícia. A retórica primitiva e o despojamento, a defesa de uma crueldade justiceira, a adoração das unhas negras e rachadas, eram coisas menores perante um combate que só os jovens, aqueles e não outros, perfeitos e imunes às dúvidas, saberiam travar. Parece feio, visto daqui. Mas era lindo e impreterível.
Tinha decidido fechar a série de apontamentos sobre o Maio de 68. Terminara o mês da efeméride e toda a gente estava, e por certo continua, mais ou menos farta de tanta evocação. Mas porque só o pude fazer na noite passada, não quero deixar de referir o visionamento doméstico de Grands Soirs et Petits Matins (traduzido como Os Dias de Maio), o documentário de William Klein que me chegou há cerca de duas semanas com o exemplar do Público.
O filme não é, como eu descuidadamente pensara, uma simples montagem de fragmentos particularmente importantes da revolta estudantil e operária. Ainda que se reporte a episódios e a ambientes que tiveram lugar já na segunda parte do mês – quando a revolta transbordara dos ambientes estritamente estudantis e intelectuais, e o PCF considerara já que talvez pudesse resgatar em seu proveito o estardalhaço dos jovens radicais «pequeno-burgueses» – é muito mais que isso. Expõe diante dos nossos olhos um conjunto de testemunhos inequivocamente espontâneos, reveladores todos eles de um ambiente de intensa politização, e de questionamento do próprio conceito de revolução, que é tão rico quanto revelador. E um conflito de códigos e de valores observado em plena construção (impagável a sequência na qual um comité inteiro procura serenar telefonicamente a mãe que desconhecia há vários dias o paradeiro do seu filho rebelde).
Aquilo que mais me parece ressaltar deste documentário é, porém, a percepção de um «estado geral de exaltação» que apenas é possível captar em momentos revolucionários, com instantes densos, nos quais parece concentrar-se todo o destino da história, e também da vida, daqueles que o protagonizam. Não que o Maio de 68 tivesse constituído uma revolução – claro que o não foi. Mas, de uma certa forma, assistiu sem qualquer dúvida à materialização de uma série de questionamentos que confluíram, explodiram e foram verbalizados naquela precisa ocasião. E isso Grands Soirs et Petits Matins mostra-o muito bem.
No topo da minha leitura emerge ainda, como um símbolo, a personalidade cujo perfil eu julgava conhecer razoavelmente e que aqui, imersa na acção e na intensidade insone daquelas semanas, se me afigura de uma forma mais completa. Aquilo que Daniel Cohn-Bendit mostrou, o que o tornou então uma figura influente e de grande capacidade magnética, o que levou anfiteatros à pinha a ouvi-lo como a um semideus, foi sobretudo o seu discurso optimista e bravo, descomprometido, isento de clichés e profundamente irónico. Longe, a anos-luz, da seriedade rígida e do discurso previsível dos protagonistas («responsáveis», tal como se autodesignavam) da esquerda, ortodoxa ou radical, para quem, ontem como hoje, o humor jamais supera o nível do sarcasmo. No Cohn-Bendit «histórico» que este filme me revelou com um fulgor visual que não conhecia, impera o sentido da provocação, mas também o prazer e o riso, por vezes um júbilo que não carece de explicação. Como se sabe, categorias que embeberam particularmente a cultura juvenil universitária e urbana cujo processo de afirmação pontuava a época. Aquela que o adorava e estava na rua, em massa, durante as irrepetíveis movimentações parisienses do Maio-passado que aqui se evocou.
Neste Maio que se completa deixei por aqui algumas notas sobre esse outro Maio evocado. É provável que elas tenham projectado – foi essa, pelo menos, uma das intenções – uma certa recusa da perspectiva nostálgica e melancólica que a chamada periódica da data sempre comporta. Ainda assim, não terá sido possível evitar, neste meio e neste tempo que instigam a leitura apressada e oblíqua, a ideia de que se tratavam apenas de umas quantas efabulações de soixante-huitiard reincidente. Mas contra isso, batatas.
Reconheço, porém, a validade dessa outra nostalgia, positiva e construtora, da qual fala Svetlana Boym. Aquela que busca no passado um sopro, uma inspiração, um balanço para a interferência emocional do passado no presente. Uma capacidade exemplar, capaz, em circunstâncias completamente diversas, de invocar pelo exemplo o génio da mudança e da insubmissão. Ela fica por aqui, na companhia das canções de Dominique Grange, a soixante-huitiard (ela sim) assumida, acompanhadas do traço militante de Tardi, que a Casterman editou há pouco tempo. Chama-se o álbum 1968-2008… N’effacez Pas Nos Traces! «Não apaguem as nossas pegadas!» Pode lá haver melhor forma de fechar este balanço!?
De vez em quando colhemos frases. Muitas delas riscadas na areia, durando apenas o tempo de uma emoção, de um desejo ou de uma pequena rajada de vento. Outras parecem-nos escritas sobre a pedra: aparentemente únicas, esplêndidas, imperecíveis. Usei há muitos anos um pequeno caderno de capa de oleado negro para guardar algumas, que acreditava perpétuas e depois se mostraram desleais, fugidias. Ou insensatas. Agora acredito sobretudo em frases-boomerang. Que passam por nós, e se vão, e depois podem voltar. Únicas e incólumes, irrompendo de novo nas nossas vidas distraídas. Como esta, proclamada por Raoul Vaneigem, que retiro do Aviso aos alunos do básico e do secundário: «Não queremos ser os melhores, queremos que nos caiba o melhor da vida, segundo o princípio da inacessível perfeição que revoga a insatisfação em nome do insaciável.»
Aos 98 anos, morreu hoje a polaca Irina Sendler, «a Schindler desconhecida» que salvou 2.500 crianças judias do Gueto de Varsóvia de uma morte certa e ajudou a minorar o sofrimento de muitos dos perseguidos. Pessoas como Irina merecem ser lembradas, particularmente num tempo no qual se começa a considerar desnecessário referir o horror do Holocausto e a palavra «judeu» volta a funcionar, até em círculos que habitam confortavelmente as praças das sociedades democráticas, como estigma inapelável.
Algumas frases de parede menos conhecidas. Daquelas que me tocam um pouco a espinal medula.
L’Anarchie c’est je (Nanterre) Colle-Toi contre la vitre croupis parmi les insectes (Nanterre) Soyons Cruels (Rue des Écoles) Staliniens Vos Fils Sont Avec Nous (Place Denfert-Rochereau) Explorons le Hasard (Boulevard Saint-Michel) À bas le crapaud de Nazereth! (La Sorbonne) Comment penser librement a l’ombre d’une Chapelle? (La Sorbonne) Le Sacré voilà l’ennemi (Nanterre) Ayez des Idées (Faculté de Droit du Panthéon) Cache Toi, Object (La Sorbonne) Faites l’Amour et Recommencez (Rue Jacob) Vite! (Collège de France) Camarades Vous Enculez les Mouches (Nanterre) C’est pas fini! (Boulevard Saint-Michel)
Fonte: Mai 68 a l’usage des moins de 20 ans (Babel, 1998)
Parece-me um tanto estúpido, para não dizer completamente idiota, procurar dividir o mundo entre aqueles que andam por aí a falar do Maio de 68 como instante fundador de uma nova era e aqueles que não querem saber dele para nada porque ele para nada lhes serviu. Entre os fatigados e repetitivos soixante-huitiards e as suas enérgicas e desmemoriadas crias. Entre os que se esgotam na prostração nostálgica e aqueles que apenas acreditam no poder de um novo que precisa assassinar para ser novo. Pelo meio, os outros: os que fazem de conta que foi tudo um mal-entendido, os que pensam que não passou de uma monumental bebedeira seguida de ressaca, os que só vêem a coisa pelo lado arenoso da arqueologia. Creio que, à excepção dos indiferentes, todos têm razão. Acontece que uma pequena frase fundadora e quarentona, escrita a negro numa parede de Nanterre, falava já disto: «Tout ce qui est discutable est a discuter».
O TBR chamou-me a atenção para um artigo de Slavoj Zizek aparecido no El País de ontem («Mayo del 68 visto con ojos de hoy»). Sublinho o parágrafo final: «Lo que mejor condensa el auténtico legado del 68 es la fórmula Soyons realistes, demandons l’impossible! (“Seamos realistas, pidamos lo imposible”). La verdadera utopía es la creencia de que el sistema mundial actual puede reproducirse de forma indefinida; la única forma de ser verdaderamente realistas es prever lo que, en las coordenadas de este sistema, no tiene más remedio que parecer imposible.»
«Certos grupúsculos (anarquistas, maoistas, trotsquistas, compostos em regra de filhos da grande burguesia e dirigidos pelo anarquista alemão Cohn-Bendit) tomaram as carências governamentais como pretexto para se dedicarem a agitações que procuram impedir o funcionamento normal da Universidade.» (L’Humanité, órgão oficial do Partido Comunista Francês, em Maio de 1968)
Segui a sugestão feita há semanas atrás no blogue O Tempo das Cerejas e encomendei o número especial do L’Humanité sobre o Maio de 68. Previa então um exercício de reescrita da recusa, e depois de uma gradual acomodação à sequência dos acontecimentos, que os comunistas franceses adoptaram durante o movimento. A previsão não falhou. Percorrendo as 132 páginas, que transportam uma extensa série de artigos, testemunhos e imagens, pode dizer-se que o número materializa uma leitura «a contracorrente» em relação às interpretações do Maio hoje dominantes, despojando-o em larga medida da sua carga libertária, sinal da irrupção de um anti-autoritarismo militante, e retirando-lhe também as características de instante de viragem.
Desde logo, a dimensão da revolta estudantil propriamente dita, essencial para sinalizar o movimento e garantir a sua originalidade, sai claramente diminuída, embora possamos dizer que se trata de uma opção editorial (discutível mas legítima). Nota-se depois que a presença tão paralela quanto coincidente da «insubordinação operária» é sobrevalorizada (o que é sublinhado ainda no DVD que acompanha a revista). Omite-se, em absoluto, uma referência consistente à crítica dos sectores radicais ao «reformismo» do PCF. Exalta-se de um modo desproporcionado o papel do Partido e dos estudantes comunistas. Insiste-se no carácter «anarquista» de Cohn-Bendit e de outros activistas não enquadráveis pelas organizações da esquerda tradicional. Em pouco ou nada se revela uma clara percepção desse tempo de brusca mudança na irrupção dos novos movimentos sociais e na transformação das sensibilidades colectivas, que o Maio de 68 condensou.
Os redactores do L’Humanité não perceberam o que se passou, continuam sem perceber aquilo que estava então a mudar, e insistem basicamente nos mesmos erros.
Para que estes não se sintam desprotegidos no meio de tanta informação e de um debate que os possa deixar sem argumentos, o PP espanhol, avisado e muito organizadinho, trata de explicar aos seus militantes o que foi e para que serviu o Maio do qual se fala. Terá sido muito nocivo porque «socavou o princípio da autoridade e incitou a população a depreciar os valores morais partilhados». Ora eis a questão.
Tropeço no fio que liga o computador à corrente e faço um gesto brusco, procurando equilibrar-me. Acabo por dar uma cotovelada no amontoado de papéis que atulha um dos lados da mesa de trabalho e caem-me ao chão, pesadamente, todos os suplementos, recortes, webpages impressas, livros e revistas sobre o Maio de 68 que tenho vindo a acumular. Alguns deles há anos, mas a maior parte deste material que me entretenho agora a apanhar do chão entrou cá em casa nas últimas semanas. Percebo assim, de repente, como esse pedaço do passado ao qual eles se referem regressou à minha vida, às nossas vidas, e como tem funcionado como um apelo da memória. Nada que me seja particularmente estranho nestes últimos tempos, pois tenho andado a falar destas coisas em aulas e seminários, tenho escrito um pouco sobre elas, e o mínimo que devo fazer é documentar-me sobre aquilo de que falo ou sobre o qual escrevo. Subitamente, porém, tomo consciência de que o que mais me interessa em toda esta overdose de informação e de opinião – grande parte dela com marcas geracionais diferentes mas bem nítidas – não é tanto o lembrar, o evocar, ou o descobrir «que reste-t-il» do Maio francês e para que nos serviu ele afinal. É antes, e será sobretudo, entender o modo como, enquanto representações das quais nos apropriamos, as suas múltiplas e discordantes leituras – mesmo aquelas que se esforçam por parecerem desprendidas, ou condescendentes – intersectam com estrondo a melodia do mundo. Aqui e agora, como dizia o outro.