Arquivo de Categorias: Memória

A coragem

coragem

Não vivemos em guerra, pelo menos por enquanto, nesta parte do mundo que nos cabe habitar. E todavia precisamos de coragem para enfrentar um dia, depois o outro, num tempo em que o nosso futuro material se tornou imprevisível, quando os laços pessoais são cada vez mais instáveis, quando o horizonte ecológico se mostra mais sombrio, quando a História acelera e desafia a todo o instante as nossas capacidades de adaptação. Mas onde encontrar hoje modelos de coragem? Diferentemente do tempo no qual se destacavam as figuras modelares do herói ou do santo, agora não existe um, ou dois, mas sim inúmeros exemplos de coragem, medidos por diferentes bitolas. No limite, cada um de nós pode servir-se do que lhe parecer conveniente: Aquiles, o guerreiro homérico, ou o  ser «condenado a ser livre» de Sartre, o grande homem ou o homem comum, o sábio eminente ou o herói por um dia que vemos no telejornal. Aqui não há lugar para o relativismo: todos eles põem em campo, cada um à sua maneira, paciência e perseverança, acção e reflexão, conhecimento e ousadia. É da essência da coragem, dos seus novos padrões, e de algumas pessoas corajosas, que trata o último número, o 29, da revista francesa Philosophie Magazine. Para perceber um pouco melhor como eles mudaram e não mudaram ao mesmo tempo. [Este texto apropria-se parcialmente, reescrevendo-o, de um parágrafo da PM.]

    Etc., Memória, Olhares

    Despudor mal atribuído

    Coimbra - B

    O número do semanário Visão que saiu na semana passada atribui-me, com algum destaque, uma frase que apareceu no Público: «Em Coimbra, há 40 anos, bebia-se e amava-se despudoradamente.» A tirada saiu, de facto, num artigo do diário para o qual fui ouvido, mas é do realizador João Botelho, antigo activista estudantil e à época dirigente do CITAC. Acontece uma troca destas logo comigo, que tenho andado por aí a dizer à boca cheia que a «crise de 69» representou  um ponto de viragem, um momento novo, mas inicial, ainda algo tímido, na construção de uma nova sociabilidade estudantil coimbrã. A frase de João Botelho, que me perdoe o próprio, soa aliás a uma nostalgia – talvez até um nada megalómana e autocentrada, como acontece na maioria das histórias de caça – que não faz bem o meu género.

      Devaneios, Memória

      Memória supérflua

      Canada Dry

      A memória supérflua do meu pré-Abril está cheia de sabores, odores, sonidos. O gosto do refrigerante Canada Dry, consumido como sucedâneo da acossada Coca-Cola. O dos chocolates Candy-Bar com recheio, nos quais fui viciado. O do melão verde escuro vendido porta-a-porta. O cheiro a tinta do Século Ilustrado que saía aos sábados. E o do creme Benamor usado pelas senhoras. O da cola Peligon. O da graxa para sapatos nas manhãs de domingo. O compasso dos tangos e pasodobles no Programa da Manhã da Emissora Nacional. Os Shadows a tocarem Apache. O Nat King Cole. A Filarmónica transpirando Verdi atrás do turíbulo de Agosto. O fado no rádio de pilhas. O toque de caixa no 10 de Junho. Como tudo passava devagar e na aparência nada sucedia, havia tempo para registar os detalhes. Ainda à sombra do retrato do velho.

        Devaneios, Etc., Memória

        Palavras públicas (sobre o Twitter)

        Notificador

        Ando há dias a congeminar este post. A medir o que nele poderia dizer sem passar por inimigo das redes sociais na Internet, ou fazer figura de antipático aos olhos de pessoas que irão pensar que me estou a referir a elas. Acabei por ser impelido a escrevê-lo por um pequeno apontamento, para a qual me chamaram a atenção, e no qual se equipara ao Twitter uma geringonça, instalada no ano de 1935 em ruas, lojas, estações de comboio e outros locais públicos da cidade de Londres. O Notificador – assim se chamava o aparelhómetro – permitia que o utilizador deixasse pequenas mensagens, escritas em papelinhos, as quais funcionavam como recados destinados a determinadas pessoas. A ideia, aparentemente simples, parecia boa e útil, sendo estranho que não tivesse pegado.

        Ela dependia, porém, de uma certa capacidade de permanência dos referidos papelinhos, pois estes deveriam manter-se visíveis durante pelo menos 2 horas. Ora é justamente aqui que falha a comparação com o Twitter. O defeito poderá ser meu, mas desde que por ali comecei a ter bastantes friends que escrevem 100, 150, 200 mensagens diárias, a interactividade tornou-se quase impossível, uma vez que essa cortina de recados impede uma leitura adequada – por vezes, ao fim de 5 ou 6 minutos as nossas mensagens foram já afogadas por largas dezenas de outras – e quase inviabiliza uma verdadeira conversa. A não ser que as pessoas envolvidas estejam durante horas com boa parte da sua atenção virada para esta actividade.

        Vejo o Twitter como uma coisa divertida e certas vezes bastante útil, mas que se pode tornar maçadora para quem está absorvido noutras tarefas e, logo que se liga, vê a mesma pessoa, a mesma cara, a surgir no ecrã em cascata. Durante tanto tempo diário que, certas vezes, nos questionamos sobre a forma como essas pessoas encontrarão lugar para lerem os artigos e os livros que recomendam, para verem os filmes e programas de televisão que sugerem, para viverem a vida «lá fora» da qual falam. Julgo, sinceramente, que deveria existir uma espécie de twittiquette. Uma boa regra, provavelmente a única, consistiria então em que ninguém pudesse enviar mais do que 10 mensagens por hora. Mesmo assim os viciados ainda poderiam enviar mais de 200 por dia, mas dariam tempo aos outros para respirarem e deixarem os seus próprios recados, informações ou fugazes tonterias. Admito, no entanto, que não tenha percebido muito bem a lógica da coisa e possa andar a marinar num erro qualquer.

          Apontamentos, Cibercultura, Memória, Olhares, Opinião

          O Largo

          Forgive| Never

          Neste 25 de Abril, a Câmara de Santa Comba Dão irá inaugurar um Largo António Oliveira Salazar «requalificado» em conjunto com «o seu espaço envolvente». Festa rija, aguarda-se, pois a cerimónia contará com «a actuação da Tuna de Santo Estêvão» e «haverá porco no espeto» à discrição para fidalgos e vilões. O vice-presidente do município afirmou, entretanto, que a escolha da data para a inauguração não tem qualquer significado político: «não há nenhum significado especial nisso». E o próprio presidente declarou, num rasgo de lucidez, que o espaço «já tem esse nome desde antes do 25 de Abril». Afinal o Dia da Liberdade também não possui, como sabemos, um significado de maior. Comemora-se uma revolução que por acaso determinou a segunda morte do ditador do Vimieiro e entre outras coisas permitiu, ao que parece, a valorização do próprio poder autárquico, mas nada disso parece relevante face à magnitude do vulto assombroso do sempiterno senhor doutor. Valorizando o papel depurador do esquecimento na construção de uma memória mais justa, Marc Augé frisou que é preciso esquecer para lembrar, mas aqui inverte-se processo: trata-se de evocar o passado, de celebrá-lo, para fazer de conta que apenas ocorreu um ténue virar de página. Imposto, talvez, por uma arreliante brisa.

            Atualidade, História, Memória, Opinião

            Corín e o amor

            Corin Tellado

            Vale a pena confirmar no El País de hoje aquilo que já se sabia: a Dona Maria del Socorro Tellado (1926-2009), poeta de tantas mulheres solitárias e de uns quantos homens não menos abandonados, mulher «muy lanzada, que montaba en bicicleta cuando estaba mal visto y que fumaba cigarrillos a escondidas», era uma grande fingidora.

            Me emocionan las cosas reales, las que palpo, las que tienen vida. No me seducen las puestas de sol, ni las estrellas, ni la luna llena. Yo nunca he dicho ‘te amo’, ‘te quiero’, ‘vida mía’. Sólo lo sugiero en las novelas para que se emocionen otros. A mí me conmueven los animales, los prados, las personas, la roca viva, los acantilados.

              Memória, Recortes

              Querem matar Monsieur Hulot

              Mon Oncle

              O cachimbo sinalizou repetidamente a imagem projectada por políticos (Estaline, Roosevelt, H. Wilson), escritores (Baudelaire, Joyce, Chandler), actores (B. Crosby, S. Tracy, J. Lemon), filósofos (B. Russell, Sartre), pintores (Van Gogh, Manet), músicos (Coltrane, Mingus), cientistas (Einstein, Oppenheimer) ou personagens de banda desenhada (Haddock, Mortimer). Sem o acessório tabaqueiro, nenhum deles teria sido quem os seus contemporâneos pensaram que foi. Jamais teriam sido quem a história nos conta que foram. Ninguém explorou porém as capacidades da pequena peça fumegante como o actor e realizador Jacques Tati. Em O Meu Tio, As Férias do Sr. Hulot e Há Festa na Aldeia, mais brevemente em Playtime, o cachimbo transformou-se num interlocutor capaz de alvejar o objecto, a situação, o personagem, que de seguida a câmara persegue sem piedade. A sua função não é sorver nicotina, mas antes interrogar, desaprovar, sublinhar. Serve sempre de ponteiro, de microfone, de auxiliar da invectiva, omnipresente e insubstituível no universo tatiano. Mas esse lugar incontornável não bastou para impedir que no poster que divulga em Paris uma retrospectiva da obra de Tati se tenha feito desaparecer do olhar dos cidadãos o «vicioso» cachimbo. Insatisfeitos com a instalação perversa da sua tirania sobre os espaços públicos, os maníacos higienistas querem também apoderar-se do nosso passado.

                Cinema, Democracia, Memória

                Coimbra’69

                Coimbra'69

                17 de Abril. A maioria dos cidadãos que conservam reminiscências da Coimbra dos idos de sessenta – do meio pequeno, professoral, santacombadense, mas também universal, quimérico e inquieto – conhece aquilo que a data significa. As prestimosas autoridades locais, essas dormem na ignorância de uma parte da memória viva da cidade que vão gerindo. Por vezes na cumplicidade ao retardador com o lado mau do filme. Dia da audácia de uns quantos, das oportunidades conquistadas, do mito que enuncia parte da verdade e inventa e reinventa a outra. Primeiro dia do resto da vida da cidade salazarenta que um dia há-de morrer.

                Seguir o testemunho ocular do Marcelo Correia Ribeiro, a visão de retrovisor do Miguel Cardina e o olhar de viés do Luís Januário.

                  Apontamentos, Cidades, Coimbra, História, Memória

                  O dress code e a política do corpo

                  In the sixties

                  Quando falo em algumas aulas das grandes alterações dos anos 60, recorro muitas vezes ao exemplo do vestuário diverso que todos usam na sala, à atitude física que mantemos dentro e fora daquele espaço, ao modo informal como falamos uns com os outros, olhando-nos nos olhos e defendendo os nossos pontos de vista sem receio de estarmos a ofender alguém, para mostrar de que maneira existiu um tempo – para a maioria dos alunos o dos seus pais, ou mesmo o dos seus avós; para muitos destes, porém, algo que jamais conheceram – no qual o mundo como eles o observam, este mundo, se formou, rompendo abertamente, assumidamente, com um tempo-outro que o precedeu e que para muitos é hoje inimaginável. No centro da mudança uma nova política do corpo, que terá sido talvez o eixo em volta do qual as transformações políticas, culturais e vivenciais que marcaram aqueles anos – e que todos herdámos, mesmo aqueles de nós que hoje as procuramos desvalorizar – se organizaram. Por vezes sob a forma de combates duros e prolongados, que requeriam coragem e tenacidade.

                  Nascido nos fifties, num país fechado e manietado, vivendo até aos dezassete ou dezoito anos num ambiente pequeno, isolado e bastante preconceituoso – embora nas cidades as coisas não fossem então, é preciso reconhecê-lo, substancialmente diferentes -, travei um combate complicado por coisas que hoje certamente parecem ridículas, e das quais agora até prescindo, como usar o cabelo comprido e despenteado, vestir umas calças de bombazina grená se me apetecesse vestir umas calças de bombazina grená, ou passear à noite com uma amiga sem ter de casar com ela. Coisas que nunca me impediram, que eu saiba, de tratar mais ou menos bem as pessoas com quem fui convivendo, de cuidar da higiene pessoal, e de ir cumprindo o melhor que sei e sou capaz o meu trabalho, mas que me permitiram, com toda a certeza, estar no mundo, e projectar-me nele, de uma feição mais livre, individualizada, de alguma forma cosmopolita, que os meus pais, e os pais deles, jamais sonharam viver. Foi essa área da luta pela liberdade que me fez então – pude na altura dar-me a esse luxo, admito, e o facto de ser homem ajudou um pouco – recusar uma profissão que me constrangeria a um «código de apresentação». Muitos daqueles que o não puderam fazer iriam bater-se – na escola, no trabalho, na rua, por vezes dentro das suas próprias casas – por uma liberdade que passava também pelo reconhecimento da sua forma própria, não necessariamente padronizada, de estar no mundo. Uma luta hoje silenciada, mas não silenciosa, bastando para a reconhecer um apelo à memória de quem a viveu e uma consulta da imprensa da época (incluindo nesta, um aspecto muito importante, a regional).

                  Estou certo de que me acompanham nesta evocação muitas pessoas que viveram ou que conheceram, ainda que apenas dos livros, experiências idênticas. As mesmas pessoas que viram com um pequeno arrepio este episódio – patético, é verdade, mas sintomático e talibanesco – em redor do dress code aplicado às funcionárias da tal Loja farense do Cidadão. Episódio que indicia um retorno a uma ordem política das aparências agressora da liberdade pessoal. Ou então um salto rumo a uma sua versão mais aperfeiçoada. Não fala de cor Zygmunt Bauman quando afirma, em Modernidade Líquida, que «a demarcação entre o corpo e o mundo exterior está entre as fronteiras contemporâneas mais vigilantemente policiadas».

                  P.S. – Claro que não vivemos num regime totalitário, onde estas coisas acontecem de forma sistemática e sem apelo. Vivemos sob a ditadura informal do realismo político, na qual tudo é normal e aceitável se em prol da boa gestão. Inclusive a agressão a direitos e a liberdades conquistados a pulso pelos cidadãos.

                    Atualidade, Democracia, História, Memória

                    A Praga de Sudek

                    Sudek

                    A propósito de uma exposição sobre a obra do fotógrafo checo Josef Sudek (1896-1976), aberta ao público até 17 de Maio no Círculo de Bellas Artes de Madrid, Antonio Muñoz Molina deixou no Babelia de ontem uma prosa bela e comovente, «El caminante de Praga», que – como acontecera já com a evocação de John Banville no seu livro precioso sobre a cidade das duas margens do Vltava – faz justiça ao trabalho único de um homem que viu o seu destino como artista determinado, aos vinte anos, pela amputação do braço direito. Josef, que estivera destinado a encadernador, passaria então a percorrer Praga em todas as direcções, dia após dia, muitas vezes pela noite fora, carregando pelo resto da vida, apenas com um braço, a pesada máquina Kodak de 1894 e o seu enorme tripé. Fotografando, sempre num tempo lento, praticamente imóvel, quase inabitado, os espaços e as coisas que não poderiam ser mostrados abertamente, «mas apenas dando pistas, revelando apenas o justo, para que o olhar completo pudesse permanecer na imaginação do espectador». Existe uma Praga, desolada como um eremitério, infinitamente poética, que habita apenas a fotografia do tímido e solitário Sudek.

                      Cidades, Memória, Olhares

                      Falsos berberes

                      Piratas

                      Conhecia já, de leituras antigas, a relativa autonomia política, face aos regimes islâmicos, daqueles a quem a tradição histórica europeia chama desde há séculos de piratas berberes. Sensivelmente desde os finais do século XVI até por volta de 1830, a sua presença temível e destruidora fez-se sentir muito para além das costas do Norte de África, de onde partiam e onde se abrigavam. Portugal e os portugueses sentiram com regularidade os ataques e razias que sistematicamente praticavam, existindo notícias de incursões suas até na Irlanda, na Islândia e mesmo na Groenlândia. Tanto nas suas actividades marítimas quanto nas maneiras de viver quando em terra, estes piratas conservavam uma independência que se mostrou particularmente notável e duradoura na chamada república de Salé, situada já na região costeira atlântica, frente a Rabat. Em larga medida povoada por repatriados muçulmanos de Espanha, o que me surpreende é que, durante séculos, foi local eleito de refúgio para inúmeros europeus rebeldes convertidos ao Islão, os quais, de acordo com Peter Lamborn Wilson em Utopias Piratas, forneceram em larga medida o saber técnico e a iniciativa que permitiram aos «berberes» ir tão longe e com tanto êxito nas suas acções de pilhagem e devastação. A ser provada, eis uma revelação surpreendente: o tão temido «berbere» era afinal, numerosas vezes, muito mais vezes do que o suposto, um europeu converso ou em dissídio, que conhecia bem as águas que cruzava e os territórios aos quais se dirigia.

                        História, Memória, Olhares

                        Alegadamente à esquerda

                        No telejornal da RTP, uma peça jornalística refere o papel do coronel Jaime Neves durante o biénio revolucionário pós-Abril – o ex-comando está na calha para ser «canonizado» como major-general, sendo esse o sentido da peça – como o de alguém «que se confrontou então com militares alegadamente mais à esquerda». Utilizando a expressão que habitualmente associa a presunção de inocência ao criminoso em vias de ser julgado. Mais um sinal de tontice e de ausência de perspectiva histórica do tamanho de uma viatura Chaimite. Existem livros de todos os tamanhos sobre os episódios desse «então» e alguns até são daqueles fininhos e com muitas imagens. Ninguém os avisou?

                          Apontamentos, Memória