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Mário Dionísio em Coimbra

Mário Dionísio

Essa quase sempre desgraçada fonte contemporânea do saber condensado que é a versão em português da Wikipédia, identifica Mário Dionísio (1916-1993), muito abreviadamente, como «um escritor e um pintor português do Século XX». Refere ainda em duas tristonhas linhas a sua atividade enquanto professor, crítico, polemista e tradutor. Mas sem descer a pormenores. Sem mencionar a força e a originalidade de um trajeto. E assim, por facilitismo e omissão, reduz a vida, a intervenção e a obra de um português de exceção – atento, sempre, tanto à inovação quanto à dimensão social da literatura, da arte e da política – a um apontamento baço no qual é fácil não reparar ou que num instante se esquece. Nada de mais imerecido em relação a um homem que tantos de nós, ou dos que nos antecederam, olham ou olharam como exemplo do escritor independente, do companheiro de muitas lutas ou do mestre de explicações do mundo. Pois se até o Pacheco, o insuspeito Luiz sempre adverso a louvores, escreveu em 1969 no Notícia de Luanda que «o homem, Mário Dionísio, a obra e sua repercussão (…), dão para muita conversa»!

É já neste dia 2 de Fevereiro, quinta-feira, que pelas 17H30 é inaugurada na Biblioteca Municipal de Coimbra a exposição «Mário Dionísio – Vida e Obra», organizada pela Casa da Achada/Centro Mário Dionísio e pelo Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra. Intervirão nesta sessão António Pedro Pita e Eduarda Dionísio. A exposição irá manter-se até ao dia 15 de Março. A iniciativa conta com o apoio da BMC, do CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX e das Ideias Concertadas.

    Artes, Coimbra, Memória, Novidades

    Guimarães 2012

    Foi fácil encontrar a melhor maneira de abrir este parágrafo. Começa assim: Eu gosto muito de Guimarães, já quase lá vivi, e as memórias que guardei são em geral boas ou muito boas. Também por lá passei fome quando andei clandestino, mas isso foi há tanto tempo que agora parece lenda ou episódio de romance. Gosto de alguns dos seus naturais e de os ouvir abrir as vogais, acho bonita uma boa parte da cidade e em Janeiro costuma fazer por ali um friozinho matinal que gela os pés e desperta a alma. Não partilho, não só por isso mas também por isso, da maledicência congénita de quem da empresa da Capital Europeia da Cultura apenas declara ou espera o pior. Como não aceito o bairrismo incontinente de quem descobre agora uma energia esquecida de propósito para poder ser revelada. Qualquer um sabe que a grande parte daquilo que está feito ou do que vai acontecer não saiu de um tesouro esquecido nas fundações de um velho edifício. É esforço comum, aberto quando ainda todos ingenuamente nos julgávamos escandinavos. O que não representará um mal, antes pelo contrário, se, no fim de tudo, quando os holofotes se apagarem, quando as ruas forem limpas e as secretárias esvaziadas, sobrar obra feita e pessoas e coletivos e a cidade e o seu termo ficarem a mexer. O que significará a ler, escrever, pintar, dançar, tocar. A expor, fazer teatro, ver cinema, debater este mundo e criar o outro. A fazer o sete, ou trinta por uma linha, sem precisar de um valente empurrão. Mas por enquanto ainda estamos de esperanças. Oxalá então tudo corra pelo melhor. Cá estaremos para aplaudir ou pedir contas.

      Apontamentos, Cidades, Memória, Olhares

      De fazer corar qualquer trotskista

      Tudo aconteceu no século passado, mas mora  ainda na memória de quem viveu para contá-lo. Nós, os maoistas, éramos bem mais do que se diz, embora bem menos do que pensávamos, e tínhamos um programa: libertar o país do fascismo, derrotar o colonialismo, destruir as bases da opressão capitalista, e, no fim, começar a construir uma sociedade mais feliz e igualitária, sem malfeitores ou parasitas. O inimigo principal era pois a burguesia, o colonial-fascismo e a PIDE. A seguir, vinham os reformistas, que identificávamos, algo exageradamente, com uma mescla de social-democratas, republicanos caquéticos, pequeno-burgueses hesitantes e comunistas pró-Moscovo. Na base da escala, e para honrar a origem estalinista que partilhávamos (com o querido camarada Lavrentiy Beria nos corações), estavam os trotskistas. A sua presença era no entanto reduzida a estereótipos sobre os exageros das preocupações teóricas e a mania congénita do fraccionismo, como aquele que dizia que onde existiam dois trotskistas o debate conduzia inevitavelmente ao surgimento de três tendências. Pura ilusão a nossa, que não olhávamos – por motivos de natureza conspirativa, obviamente – para os nossos próprios pés sectários. A um antigo camarada que há dias se referia com admiração ao mapa do maoismo em Portugal que o Miguel Cardina publicou no seu recente livro e o Ípsilon desta semana integra, com pequenos erros, apenas na edição para tablets (ver aqui), só me ocorreu dizer: «É de fazer corar de vergonha qualquer trotskista!»

        Apontamentos, História, Memória

        Nostalgia e utopia

        Nostalgia

        A Priberam acaba de divulgar os dados anuais de acesso ao seu dicionário de português online. A palavra mais procurada em 2011 foi «nostalgia», seguida por «amor», que tinha conseguido o primeiro lugar em 2010, mas cujas buscas foram diminuindo ao longo do último ano. Existe uma leitura simples, linear, desta tendência, que remete sem grandes hesitações para um interesse pelo passado observado, no atual contexto de recuo dos direitos sociais e das expetativas individuais, como uma «idade do ouro» tão quimérica quanto desejável. Mas podemos ir mais longe na observação do conceito. Recordei então um artigo escrito em 2007 e que tem um pouco a ver com isto tudo. Sendo um texto mais académico, encontra-se num registo diverso daquele adotado neste blogue. Transcrevo, por isso, apenas o primeiro parágrafo, remetendo depois para um link externo que leva ao artigo completo. Dada a altura em que foi concluído, não segue as normas do último acordo ortográfico.

        A experiência contemporânea encerra uma sobrecarga da memória e um interesse pelo passado que adoptam a nostalgia como ferramenta da utopia. Percorremos os jornais e as colecções multimédia que oferecem, observamos a publicidade que apela a reminiscências identitárias, constatamos a atenção da crítica e a crescente popularidade dos filmes, romances, documentários e concursos que se cruzam com o fio da história. Reconhecemos também o revivalismo e as dinâmicas de celebração que integram a política cultural dos governos e das autarquias, ou se revelam em iniciativas públicas de diversas instituições. Ao mesmo tempo que o ensino da história recua nos currículos escolares e se reduz a banalidades, um interesse crescente pelo passado e pela sua carga simbólica emerge e expande-se aos nossos olhos, como via escolhida para a imaginação de uma vida-outra. [O artigo completo em formato pdf está aqui.]

          História, Memória, Olhares

          O chalet de Judt

          Quando foi publicado este pequeno livro de Tony Judt, o seu último, o destaque das notícias e da crítica centrou-se nas condições dramáticas em que foi escrito. Em 2008, três anos após a publicação do aplaudido Pós-Guerra, fora-lhe diagnosticada uma doença motora neurológica, incapacitante e irreversível, que rapidamente o iria fazer perder a mobilidade, a voz e por último a vida. Este seu derradeiro esforço reflexivo foi, por isso, produzido em condições particularmente difíceis e incomuns. No segundo capítulo, «Noite», saído originalmente em janeiro de 2010 – como a maioria dos textos que integram o volume na New York Review of Books –, fala da forma como as características da doença o foram deixando livre para contemplar, com um desconforto mínimo, o desenvolvimento catastrófico da sua própria destruição. Mas é o primeiro texto, que dará o título à obra, aquele que melhor caracteriza a sua intenção. Nele o historiador explica-nos o método de que se serviu, noite após noite de solidão e imobilidade, para, recorrendo aos mesmos artifícios mnemónicos utilizados pelos primeiros pensadores e viajantes modernos, revisitar, reorganizar e expor algumas das suas mais marcantes experiências. (mais…)

            História, Memória, Olhares

            O riso de Václav Hável

            Václav HávelNo início dos anos oitenta conheci alguns estudantes universitários de Praga integrados numa trupe de teatro em visita semioficial a Portugal. O contacto foi breve mas o suficiente para deixar uma impressão indesmentível: pelo menos na aparência todos eles eram anti-regime, «decadentes» filhos de Woodstock de cabelos desgrenhados e fanáticos do rock’n’roll, e, sem contradizerem o resto, seres humanos desdenhosamente anticapitalistas. Quer isto dizer, tão libertários e antiautoritários quanto se podia ser num país como o seu, ainda a esforçar-se por sobreviver debaixo da bota impiedosa do Pacto de Varsóvia. Mesmo que lá pelo meio viesse com toda a probabilidade algum inevitável agente da StB, a pouco amável polícia de Segurança do Estado, e aquela fosse gente «especial», como o é invariavelmente a que se movimenta nos meios das artes, a sua atitude constituía um sintoma. O contacto com aquelas pessoas revelava também, aos olhos de quem estivesse atento, aquilo que a rua checa havia mostrado já quando da Primavera de Praga e do seu violento epílogo marcado pela repressão e pela raiva impotente: que ali se tinha desenvolvido uma apreciável e dinâmica corrente social, para a qual a prepotência do Estado e a imposição do pensamento único se haviam tornado insuportáveis, produzindo uma forte e obsessiva vontade de os ver desaparecer do seu horizonte.

            Essas foram as circunstâncias da afirmação como ativista e voz escutada de Václav Hável (1936-2011), o dramaturgo, poeta, ensaísta, amante de jazz, de rock e de Frank Zappa, ex-dissidente e político checo falecido na manhã deste último domingo. Conhecemos o seu percurso contado pelos amigos, anotado em referências autobiográficas e entrevistas, pelas páginas dos artigos e livros que escreveu, pelas fotografias noturnas tiradas em noites de boémia num país no qual estas eram um grave sinal de devassidão moral, de subversão e de «decadência capitalista». A participação na Carta 77, abrindo o processo de contestação do regime de partido único que haveria de culminar na «Revolução de Veludo», iria acabar por conduzi-lo a responsabilidades às quais, como repetidamente disse, jamais tivera a intenção de chegar. Estas metamorfosearam-no de «burguês reaccionário» em homme d’État, com dimensão simbólica e exigências diárias que acabaram por condicinar a sua evolução como artista. Coagindo-o até a tomadas de posição que noutras circunstâncias, provavelmente, teria assumido de outra forma. Mas esse foi o preço a pagar por quem, num dado momento, decidiu optar pelo enorme risco de passar das conjeturas filosóficas e das digressões literárias à gestão diária da política do factível. Nem todos temos a coragem, ou a vocação, de assumir tal escolha e de pagar por ela, oferecendo um pouco da nossa própria liberdade pela liberdade dos outros. Mas Václav Hável teve-a, tentando fazê-lo sem pôr em cheque o belo juízo que um dia anotara como seu: «Todo aquele que se leva demasiado a sério corre o risco de parecer ridículo; um risco que não corre quem desenvolva de forma consistente o hábito de rir de si próprio.» Os que o conheceram recordam como gostava imenso de o fazer.

              Atualidade, Biografias, História, Memória

              Contra a supressão dos feriados

              Abaixo-assinado da responsabilidade de um conjunto de historiadores.

              A recente proposta do Governo de acabar com quatro feriados (dois religiosos e dois civis: o feriado do 1º de Dezembro e o do 5 de Outubro) merece da parte dos historiadores que subscrevem este documento uma clara oposição.

              Em primeiro lugar, porque assenta numa evidente demagogia: ao contrário do que o Governo, pela mão do seu Ministro da Economia, vem atabalhoadamente explicar ao país, a produtividade e a competitividade da economia nacional não dependem em nada de essencial do número dos feriados em vigor. Países europeus ou fora da Europa com tantos ou mais feriados registam níveis de produtividade e competitividade muito superiores aos de Portugal, sendo que é precisamente nas economias mais competitivas e avançadas que se verifica um menor número médio de horas de trabalho. As razões são obviamente outras e bem mais profundas, tal como são outras as razões para atacar os feriados, em especial os que, como o 1 de Dezembro e o 5 de Outubro, são depositários de um elevado valor simbólico para a comunidade. (mais…)

                Atualidade, História, Memória, Opinião

                Num filme neorealista

                Enzo Staiola (Bruno) e Lamberto Maggiorani (Antonio)
                em «Ladrões de Bicicletas», de Vittorio de Sica (1948)

                Na minha escola primária, nós, as crianças – apenas rapazes –, dividíamo-nos em quatro grupos que se distinguiam pelos pés. Um, pequeno mas muito expressivo, chegava à escola descalço, mesmo de inverno, usando sacos de sisal para se proteger da chuva e do frio da manhã, e todos os colegas sabiam que aqueles eram os filhos dos pobres, sobrevivendo no limiar da miséria e da caridade. No extremo oposto, outro grupo, igualmente pequeno, usava sapatos de sola de cabedal, sempre a reluzirem e com aspeto de novos: era o dos que vinham de famílias com mais posses e melhores ligações, ou que se faziam passar por tal. No meio, um segundo conjunto de alunos usava calçado velho, de baixa qualidade, por vezes tamancos de madeira. Compunham-no os filhos da gente humilde mas aprumada, que fazia, sabiam Deus e o Diabo como, por se manter à tona, no rebordo da «pobreza honrada». E havia ainda um terceiro, ao qual eu pertencia, naquela escola talvez o maior de todos eles, que era composto pelos mais novos membros de uma classe média que via na poupança a única forma de encarar um futuro sempre imprevisível. Usávamos sapatos apresentáveis aos domingos e dias santos de guarda, que as nossas mães engraxavam com atenção e carinho, reservando para outros dias o calçado mais usado, reforçado com «protetores», pequenas peças de ferro ou de chumbo que serviam para prolongar a vida das solas e das capas dos saltos. Ontem, pela primeira vez em muitos anos, encontrei na vitrina de uma velha loja «protetores» à venda. Fiquei na dúvida sobre se seriam um vestígio arqueológico recuperado ou um sinal dos tempos. Ou se sempre ali estiveram e só agora, condicionado pela realidade, eu reparei neles.

                  Apontamentos, Cinema, Memória

                  O fim da grande máquina

                  Percebi hoje como carrego comigo qualquer coisa de excessivamente antigo ao receber, através da crónica mensal que Pedro Mexia escreve para a revista Ler, a informação de que a empresa Godrej & Boyce, de Bombaim, última fabricante em atividade de máquinas de escrever, resolveu «descontinuar» o produto. Apesar de já terem passado duas décadas e meia, ainda recordo o tormento que foi passar a limpo na minha Olivetti portátil azul, para entregar na manhã seguinte, as duzentas e tal folhas da tese de mestrado – ou melhor, do seu equivalente – sobre as práticas ostentatórias do poder absoluto no tempo do rei João V. Particularmente daqueles momentos, ao chegar ao fim da página, em que verificava não caberem já as notas de rodapé e tinha de começar tudo de novo. Antes disso, muito antes, na poderosa Underwood do meu avô (ou seria uma Royal?), a escrita «a limpo» em teclado HCESAR dos primeiros textos públicos destinados ao pequeno jornal local. E antes ainda, no mesmo engenho, o preenchimento, por encomenda do meu pai que mantinha um biscate suplementar como correspondente bancário, dos avisos destinados aos clientes devedores nos quais se comunicava a proximidade do vencimento dos títulos de crédito enviados pelo sacador. É estranho mas até dessa tarefa monótona sinto, agora que desapareceu para sempre a possibilidade de a repetir, uma certa falta. Daquele barulho tac-tac tac-tac, sim, e do caráter tátil da ação. Mas, mais ainda, do aroma único, para mim aroma a infância, do óleo que lubrificava a engrenagem e do rolo da fita que sujava os dedos e marcava o papel a vermelho e a negro.

                    Apontamentos, Memória, Olhares

                    O soldado britânico de Auschwitz

                    É recorrente o testemunho, transmitido por aqueles que sobreviveram ao Holocausto e puderam contar a experiência do horror, segundo o qual passada a Guerra quase ninguém aceitava escutá-los. Primo Levi transportou toda a restante vida esse fardo e, quando encontrou finalmente quem o quis ouvir, não se cansou de lembrá-lo. Este A Última Testemunha de Auschwitz, um relato de Denis Avey (n. 1919), antigo soldado do exército britânico que se bateu contra os alemães no Egito e na Líbia – e depois de capturado viveu o pesadelo do trabalho escravo nas instalações da IS Farben em Buna-Monowitz, anexas ao campo de Auschwitz-Birkenau –, é ilustrativo dessa realidade. Para além da dor legada pelo que viu e viveu, carregou quase até ao fim com a contrariedade de não encontrar quem aceitasse perder algum tempo com aquilo que tinha para contar. De tal forma que só depois dos noventa, e com a ajuda de Rob Broomby, um jornalista da BBC que soube da sua história, teve condições para falar do que presenciara e daquilo que os outros mereciam e deviam conhecer.

                    E, no entanto, a sua experiência foi provavelmente única. Não apenas pelo relato circunstanciado, a partir da perspetiva do militar não graduado, das dificuldades reais do combate nas campanhas do Norte de África contra as tropas de Rommel. Não apenas por nos fornecer um retrato muito menos benévolo do que aquela doado pela tradição cinematográfica das condições reais nas quais viveram acantonados os militares aliados capturados pela Wermacht. Mas, para além disso, por nos oferecer a experiência absolutamente singular de alguém que, pela sua própria iniciativa e risco, decidiu trocar de identidade com um prisioneiro judeu destinado ao extermínio. O objetivo foi vivenciar de forma direta, para poder passar para fora uma informação que muitos resistiam ainda a aceitar como válida, as condições sub-humanas em que vegetavam, a caminho da morte certa, os prisioneiros sinalizados com a estrela de David. O relato intenso das noites de pesadelo que passou deitado nos catres dos mortos-vivos, seus fugazes companheiros de martírio, preenchem algumas das páginas mais perturbantes que sobre esse inferno na Terra alguém foi capaz de escrever.

                    Denis Avey (com Rob Broomby), A Última Testemunha de Auschwitz. Trad. de Ana Glória Lucas. Clube do Autor. 320 págs. Publicado na revista LER de Novembro de 2011.

                      História, Memória

                      O peso da memória

                      Não sou antifadista. Aliás, o Vasquinho da Anatomia, d’A Canção de Lisboa, era-o – «Morra o fado!», chegou a gritar do fundo da alma – e acabou por ser chamado à razão, passando, por via da redentora mudança proporcionada pelo estudo e pela moderação, da condição de degenerado à de doutor. Como aconteceu com o estrangeirado moço Luís, n’O Feitiço do Império, de António Lopes Ribeiro, no momento em que trocou os prazeres tóxicos da jazz-band e a namorada americana Fay Gordon, que fumava e detestava Portugal, pela «canção nacional» e o amor de Mariazinha, esse símbolo casto, modesto e compassivo da «portugalidade» no feminino. Mas que tanto fado me reconduz ao passado, lá isso, perdoem a franqueza, reconduz. Admito que estejamos a precisar de qualquer coisa que nos sacuda a autoestima, mas não exageremos. «Viva o fado!», muito bem, levanto também o meu copo, mas não façamos dele o hóquei em patins que nos falta. O fado não merece que lhe façam isso.

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                        Apontamentos, Atualidade, Memória

                        How I Learned to Stop Worrying

                        Peter Sellers

                        Um grupo de técnicos de uma unidade industrial de Amarillo, Texas, dependente da National Nuclear Security Administration, acaba de concluir o desmantelamento daquele que o governo norte-americano afirma ter sido o último exemplar da B-53. O objeto não era de todo inofensivo, uma vez que continuava a ser considerado a bomba termonuclear mais poderosa do mundo, seiscentas vezes mais potente do que a lançada sobre Hiroxima em 1945. Esta arma assustadora fora um produto demencial da fase mais quente da Guerra Fria, e tinha sido concluído de forma acelerada, no início dos anos sessenta, na altura da Crise dos Mísseis de Cuba. A B-53, carinhosamente apelidada de Big Dog pelos militares que a haviam concebido com o objetivo de exterminar parte da humanidade, destinara-se a ser lançada de bombardeiros estratégicos de longo alcance B-52. Era capaz de rebentar com bunkers e de enviar ondas de energia através do solo semelhantes às dos sismos, fazendo desaparecer grupos de cidades ou países inteiros, e desimpedindo de vez o uso dos botões vermelhos da Casa Branca e do Kremlin. Despoletando então a batalha final, o dia antes do «day after», o fim dos tempos, esse Armagedão que, com forte sentido de realismo, Stanley Kubrick desenhou em 1964 na sequência derradeira do filme Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (em Portugal Dr. Estranho Amor ou: Como Aprender A Deixar De Me Preocupar E A Amar A Bomba). No entanto, este gesto simbólico da administração americana não parece suscitar agora qualquer sentimento de alegria, alívio ou segurança, surgindo nas notícias como uma simples curiosidade. Na realidade, todos sabemos que a indústria da guerra foi entretanto inventando outros meios menos espetaculares, menos definitivos, mas mais insidiosos e eficazes de gestão do medo e do poder. Por isso este objeto estrondoso pode muito bem ser abatido sem danos de maior para a atual ordem do mundo.

                          Apontamentos, Cinema, Memória, Olhares

                          Memórias de um leitor #3

                          Os Três Mosqueteiros

                          Editado pela Bertrand em capa dura, eis o primeiro livro da colecção Histórias que me passou pelas mãos. Tinha a particularidade de conter o texto original de Dumas, mas também uma versão simplificada vertida em «quadradinhos». A coragem de D’Artagnan, o jovem gascão aventureiro e um pouco fanfarrão, era realçada pela sua oposição a figuras tão decididamente pérfidas como o antipático Cardeal Richelieu e a venenosa Milady. Um exemplo para qualquer rapaz de província desejoso de trespassar a vida a certeiros golpes de espada.

                            Apontamentos, Memória, Séries

                            Morenas de Angola

                            Riquita 1971
                            clique na imagem para seguir a história

                            Outros (e outras) poderão ter vivido semelhante experiência noutros lugares, quem sabe se até à porta de casa, mas nunca me cruzei com tantas mulheres tão perturbadoramente belas como naquele ano em Angola. Bonitas sem limite, de todas as cores, de todos os aromas, com corpos esplêndidos e um porte único. Capazes de «faire tourner la tête» e de deixar um sujeito parado na contramão atrapalhando o trânsito. Nos anos derradeiros do regime velho, aliás, certas beldades afro-portuguesas eram como um emblema usado para proclamar a dimensão planetária da pátria, disputando a glória e os favores públicos aos jogadores de futebol, aos fadistas, às estrelas do teatro revisteiro, aos ídolos do nacional-cançonetismo destacados na rádio, tv e disco (não havia ainda cassete pirata). Jornais e magazines de atualidades, os editados nas colónias mas também os da metrópole, transmutavam a mulher africana, e mais anda aquela cuja compleição resultava de uma mistura genética incutida pela mestiçagem, fosse ela negra assimilada, mulata, cafuza ou branca com sabor tropical, em ícone de um Portugal tórrido e multirracial, vestindo maillot, que começava na foz do Minho e seguia por aí afora, manejando as ancas num desfile que só deveria terminar nas praias de Timor.

                            Os concursos de misses eram, na época, momentos centrais desse esforço de transformação de forças da natureza em emanações morfológicas da identidade pátria que o regime inventara. Algumas fizeram até carreira na metrópole, onde, apesar do clima menos propício ao desabrochar dos corpos, as possibilidades profissionais eram maiores e mais aliciantes. Ainda assim, muitos viam já nesses concursos, para além de instantes de uma cultura predominantemente masculina que reconduzia a mulher ao papel de suave e subalterno adorno, a intervenção censurável da propaganda do regime na construção de um ideal de perfeição que tapava a realidade mais escura, nada bonita, nada dengosa, da situação da mulher sob o Estado Novo e o jugo do colonialismo. Custa por isso ver como, logo após as independências, os certames destinados a designar as misses isto-ou-aquilo se mantiveram como ocasiões de entretenimento das massas e de encenação da grandeza putativa – ditosa pátria que tais filhas gera! – de novos regimes mais ou menos despóticos. A recente aparição de Leila Lopes, a angolana consagrada Miss Universo 2011 em São Paulo, e sobretudo o estardalhaço feito em seu redor pelos propagandistas de Luanda, representam mais um momento dessa transformação da beleza feminina numa encenação buffa, e neocolonial, de um orgulho degradado.

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                              Edith 63

                              Edith

                              De repente, ao acaso de um post do Facebook, sobrevém uma das minhas reminiscências mais antigas e ao mesmo tempo mais cintilantes e imperecíveis. Associada a um sentimento de pena verdadeira pela perda de alguém que jamais conhecera. Na tarde do dia 10 de outubro de 1963, seguia por uma estrada secundária do norte geográfico no banco de trás do Carocha familiar quando o locutor de serviço da Emissora Nacional interrompeu a emissão para anunciar a morte de Edith Piaf. Passou de seguida «Non, je ne regrette rien» e eu, sem idade sequer para ter um passado e poder recusar o quer que seja, defrontei mudo a emoção instantânea, profunda e completa que consigo agora rememorar.

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                                O romance (e a realidade) do retorno

                                De regresso à perceção partilhada por muitos, menos pelos mais austeros taxionomistas do género literário, de que todo o romance é autobiográfico. Mas sem querer desviar a conversa, talvez se possa dizer também que todo processo de leitura de um romance confronta aqui ou além a biografia de quem com cuidado o vai lendo. Uma vez mais, é isto que acontece com O Retorno, o grande romance de Dulce Maria Cardoso (n. 1964) que a Tinta-da-China acaba de publicar. E o que se passa também com a forma como o fui seguindo. Vamos por partes.

                                Dulce Maria CardosoA autora foi, é, e já vai sendo tempo de não ter medo de usar a palavra que ainda há menos de vinte anos era uma mancha infamante para quem a arrastava, uma retornada de Angola. Fala bastante neste seu quarto romance dessa experiência, difícil e dolorosa nem será preciso dizê-lo – ou talvez seja –, como deixa claro na longa entrevista que deu à revista LER de Outubro. Conta também aí, sem rodeios, como esse lado da vida pessoal confluiu abertamente com o processo de inventiva e de escrita do livro agora publicado. Rui, o narrador, é a outra face, masculina por artifício, da escritora. Se todo o trabalho de escrita romanesca supõe, como é sabido, estudo, caminhada e engenho criativo, encontra-se aqui também, visivelmente, um trabalho tenaz de rememoração. Da vida africana que ficou para trás, sem dúvida, mas principalmente do trajeto longo, incompreendido, guetizado, daqueles que regressaram – muitos sem jamais terem saído de África antes da ponte aérea – para longos anos de silêncio, apagamento, humilhação, pesadelos e luta pela vida. A saga africana e lusíada dos seiscentos milhares de retornados, iniciada nos anos passados no outro hemisfério, não pode ser mantida na penumbra, os seus protagonistas não podem riscar o passado de lá e de cá, e livros como este de Dulce Maria Cardoso ajudam-nos a cumprir a tarefa ingente e urgente da reexposição à luz. Pois só quando esta estiver concluída, os naturais de Portugal, e os dos estados africanos com quem Portugal partilhou parte substancial da sua história, poderão viver sem o peso da incompreensão, do remorso e, o mais difícil de perder, do ressentimento.

                                O RetornoE agora a parte do leitor que se sentiu um pouco biografado. Saibam que nestas linhas estou aparentemente do lado dos maus: «Os soldados portugueses já quase não passam por aqui e os poucos que vemos têm os cabelos compridos e as fardas desleixadas, os botões das camisas desapertados e os atacadores das botas por atar. Derrapam os jipes nas curvas e bebem Cucas como se estivessem de férias. Para o pai os soldados portugueses são uns traidores reles (…).» Percorri a alta velocidade a Luanda sobreaquecida de 75, acompanhando como militar a transferência de poder e a partida desordenada de muitos colonos brancos, em parte empurrados pelo medo e pelo desentendimento da mudança, em parte pelo que pensavam ser (ou era de facto) a ausência de alternativas para a fantasiada utopia na qual habitavam. Vistoriei-lhes as malas, os contentores, levei crianças de colo ao avião, passei-lhes pelas casas abandonadas com camas, toalhas e fotografias de família devassadas, fumei sentado nos seus sofás, servi-me sem medo dos seus automóveis deixados ao abandono. Depois, na metrópole, fui ainda dos muitos portugueses – tantos deles anticolonialistas de última hora – para quem aquelas pessoas não passavam de figuras um tanto exóticas, difíceis de entender, e que era melhor não olhar de frente. Com quem era até preferível não conversar porque tresandavam a antigamente e falavam do que não importava falar. Gente cujo passado colonial deveria ser depurado de um crime indizível que de tão escabroso e indesculpável não merecia ser sequer apreciado. E cujos traços, marcas, experiências, deveriam ser definitivamente apagados. Mas não o foram e agora estão aqui, num rumor, pendurados nas nossas mãos. Contrariando os versos da cubana Dulce María Loynaz que esta outra Dulce Maria destaca na página final: «Las cosas que se mueren/no se deben tocar».

                                Dulce Maria Cardoso, O Retorno. Tinta-da-China. 272 págs.

                                  História, Memória, Olhares