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O fundo e a questão

Apontamentos do Maio – 7

Para que estes não se sintam desprotegidos no meio de tanta informação e de um debate que os possa deixar sem argumentos, o PP espanhol, avisado e muito organizadinho, trata de explicar aos seus militantes o que foi e para que serviu o Maio do qual se fala. Terá sido muito nocivo porque «socavou o princípio da autoridade e incitou a população a depreciar os valores morais partilhados». Ora eis a questão.

    Atualidade, História, Memória

    Maísmos

    Apontamentos do Maio – 6

    Tropeço no fio que liga o computador à corrente e faço um gesto brusco, procurando equilibrar-me. Acabo por dar uma cotovelada no amontoado de papéis que atulha um dos lados da mesa de trabalho e caem-me ao chão, pesadamente, todos os suplementos, recortes, webpages impressas, livros e revistas sobre o Maio de 68 que tenho vindo a acumular. Alguns deles há anos, mas a maior parte deste material que me entretenho agora a apanhar do chão entrou cá em casa nas últimas semanas. Percebo assim, de repente, como esse pedaço do passado ao qual eles se referem regressou à minha vida, às nossas vidas, e como tem funcionado como um apelo da memória. Nada que me seja particularmente estranho nestes últimos tempos, pois tenho andado a falar destas coisas em aulas e seminários, tenho escrito um pouco sobre elas, e o mínimo que devo fazer é documentar-me sobre aquilo de que falo ou sobre o qual escrevo. Subitamente, porém, tomo consciência de que o que mais me interessa em toda esta overdose de informação e de opinião – grande parte dela com marcas geracionais diferentes mas bem nítidas – não é tanto o lembrar, o evocar, ou o descobrir «que reste-t-il» do Maio francês e para que nos serviu ele afinal. É antes, e será sobretudo, entender o modo como, enquanto representações das quais nos apropriamos, as suas múltiplas e discordantes leituras – mesmo aquelas que se esforçam por parecerem desprendidas, ou condescendentes – intersectam com estrondo a melodia do mundo. Aqui e agora, como dizia o outro.

      Atualidade, História, Memória

      Do verbo queimar

      Apontamentos do Maio – 5

      Como se percebe pelas referências regulares que tenho feito a posts seus na barra da direita deste blogue, simpatizo com muitas das posições de Pedro Sales, de quem sou habitualmente leitor. Mas divirjo da forma como, no Zero de Conduta, comenta uma frase escrita por José Pacheco Pereira em 1973, referindo-se a Maio e a Crise da Civilização Burguesa, de António José Saraiva, como livro «para ler atentamente e queimar». Comento-a como pretexto para falar de uma prática, utilizada por vezes no combate político, que recuso de todo.

      Não conheço ao pormenor, nem penso que tal interesse para o caso, aquilo que Pacheco Pereira possa ter dito agora, perante uma opinião pública sem memória, para minimizar os estragos que aquela frase possa provocar na sua imagem. O que sei, e aquilo que me importa, é que a sua posição na época se conformava com a atitude expressa pelos grupos maoístas – área na qual, como se sabe, então militava – a respeito da perspectiva estritamente lúdica, «idealista» e «pequeno-burguesa» de Saraiva sobre o Maio de 68. Um livro no qual se depreciava a função revolucionária da classe operária e da sua «ideologia de classe», insistindo-se, algo deslumbradamente, no papel criador que o Maio e as suas circunstâncias pareciam então destinar à juventude e à imaginação. Não se esqueça, a propósito, que se viviam então os ecos da Revolução Cultural Chinesa, durante a qual o libricídio – como a destruição de estátuas, retratos ou monumentos – era utilizado para promover o eclipse do conhecimento antigo e dos vestígios da cultura burguesa que o socialismo não tinha podido erradicar.

      Não me parece bem que se pegue agora num passado com 35 ou 40 anos e se faça deste bandeira para diminuir as posições de alguém. Sobretudo quando tal passado correspondeu a uma fase da vida sobre a qual assumidamente esse alguém virou uma página. Por outro lado, a esquerda está igualmente cheia de gente de quem será relativamente fácil encontrar frases, juízos e actos «comprometedores», associados a atitudes de intolerância ou mesmo de violência como esta que José Pacheco Pereira, metaforicamente ou não, alvitrou. Mas nem a discordância política nem a perseguição ad hominem justificam o recurso a argumentos que em circunstâncias normais descartamos. E que, muito justamente, condenamos nos outros.

        Apontamentos, Atualidade, História, Memória

        Heranças trocadas

        Apontamentos do Maio – 4

        Paul Berman (A Tale of Two Utopias) e Luc Ferry/Alain Renaut (La Pensée 68) falaram de uma «má ressaca» das experiências de 1968, no carácter vazio das propostas de mudança então adiantadas, na sua rápida redução a um estado de irrelevância. Uma certa direita, porém, não leva demasiado a sério esta desvalorização, vendo-se forçada, pela boca de Nicolas Sarkozy, a afirmar que «é preciso liquidar Maio de 68». A frase não passa de uma enorme boutade: como poderia Sarkozy ter a vida pessoal que tem, manter o estilo que mantém, e ao mesmo tempo ganhar umas eleições presidenciais, sem a cultura da informalidade e da complacência moral que o Maio legou e simboliza?

        Por outro lado, resulta igualmente equívoca a ideia de que a esquerda actual é a herdeira única e universal de 68. Transcrevo o essencial do argumento do filósofo e ensaísta espanhol José Luis Pardo a este propósito, retirado de um artigo surgido há duas semanas no suplemento Babelia do El País. Ele suscita leituras críticas dessa vinculação exclusivista da esquerda aos acontecimentos do Maio:

        «Primeiro, porque existem coisas provenientes de 68 que ninguém deseja herdar (como os grupos terroristas); segundo, porque a nova direita é muito mais ‘sessenta-e-oitista’ do que confessa: é-o na sua aversão à ordem jurídica e à regulação estatal, no seu culto da identidade ou na substituição da discussão política pelos valores morais; e, finalmente, porque se alguém tivesse então falado do casamento homossexual, das quotas de género ou da conciliação entre o trabalho e a família – justamente quando se previa a abolição concertada do casal, dos géneros, do trabalho e da própria família -, teria sido perseguido sem piedade como um reaccionário dos mais recalcitrantes.»

          Atualidade, História, Memória

          Uma campanha mórbida

          A SIC-Notícias acaba de passar uma reportagem sobre uma iniciativa da Liga dos Combatentes e da União Portuguesa de Paraquedistas no sentido de localizar e de levantar os restos mortais dos 11 militares que há 35 anos foram enterrados em Guidage, na Guiné-Bissau, após terem sido abatidos numa batalha muito dura para as tropas portuguesas. Intitulado «Ninguém fica para trás!», o programa expôs aos olhos do espectador-voyeur todo o detalhado trabalho de pesquisa e identificação dos mortos, cujos despojos foram tratados como meros objectos à disposição de uma observação científica voraz, mas também o confronto da sua descoberta com a memória dos familiares a quem a dor foi agora reacendida.

          No debate que se seguiu, percebeu-se que a Liga pretende que esta iniciativa seja apenas um começo: propõe-se organizar equipas e partir para os territórios dos três antigos teatros da Guerra Colonial, com o substancial apoio financeiro do Estado e de pá e picareta em punho, à procura dos restos mortais dos milhares de militares portugueses que ali ficaram enterrados. Em grande número de casos com um convencimento, por parte das famílias, de que os seus mortos haviam regressado à «Metrópole» para se lhes fazerem os funerais. Numa campanha mórbida que visa, como ficou claro do inenarrável discurso de um dos responsáveis pela iniciativa – que se apresentou como «ex-combatente do ultramar» e «doutorado em neuropsiquiatria» -, um claro revanchismo militarista pós-conflito. Mais preocupado com «a honra» (daqueles que jazem, afinal, em território «inimigo» das «ex-províncias ultramarinas») que com o luto das famílias (um luto que não se importam de reanimar em nome dessa «honra» que inventaram).

          Lúcida apenas a voz do Coronel Carlos Matos Gomes – um dos antigos combatentes que esteve nas três frentes de guerra e que presenciou inúmeras mortes em combate -, sublinhando com veemência o carácter doentio e chocante de uma reportagem que apenas explorou a curiosidade pelos dados científicos e pela emoção sentida das famílias envolvidas, desrespeitando a paz dos que caíram. E de uma iniciativa que pode dar início a um festim negro de busca e confirmação dos cadáveres dos mortos da Guerra Colonial. Reacendendo feridas, traumas e conflitos que julgávamos a caminho de serem resolvidos. Como se sabe, é perigoso brincar com fósforos.

            História, Memória, Opinião

            A vida a 26

            Deixei de frequentar «cerimónias comemorativas» de Abril. Sessões de reprise, quase sempre organizadas por pessoas com saudades de si próprias ou por autarcas com escassez de imaginação. Transformadas tantas vezes em dever. Repetindo, ano após ano, as mesmas palavras de ordem, as mesmas canções, as mesmas histórias, o mesmo cravo vermelho ao peito «que a todos fica bem». Sempre o que se me afigura uma idêntica, pesada e opressiva nostalgia. Aborrecem-me, admito. Aborrecem-me quase tanto quanto aborrecem a generalidade dos portugueses normais com menos de quarenta e oito anos. Transferi pois o 25 de Abril para a memória-cache, como parte central da minha vida e como âncora da memória colectiva que partilho. Como uma dobra, separando o que ficou para trás – a desigualdade como princípio, a vida triste, a fealdade no poder, o medo persistente como a caspa – de tudo aquilo que ali mesmo começou. Um campo aberto a sucessivos trilhos, a mil e uma quimeras, a todos os desígnios e precipícios possíveis e impossíveis. Mesmo aos piores. Prefiro por isso falar do 24. E de como a vida a 26 se tornou infinitamente mais trepidante, mais bela, melhor apesar de tudo. Graças a um 25 inesquecível para quem o viveu.

            PS1 (a 25) – Estou a tornar-me repetitivo, eu sei.
            PS2 (a 26) – Cruzo este post com este outro que escreveu Luís Januário.

              Apontamentos, Atualidade, História

              Espartanos e hedonistas


              I Festival de Vilar de Mouros (Agosto de 1971)
              um dos fotografados é o autor deste blogue – clique para ampliar

              Apontamentos do Maio – 3

              Só hoje li aquilo que Joana Lopes escreveu sobre os «diferentes Maios». Chamou-me particularmente a atenção – para além da referência que fez à vivência dos então jovens «católicos progressistas» – o passo no qual refere uma opinião recentemente expressa por Fernando Rosas. Segundo este, os jovens portugueses, ou pelo menos os então ligados a partidos ou a grupos radicais de inspiração marxista, estariam de tal modo ideologicamente concentrados na luta contra o regime e contra a guerra colonial que teriam passado relativamente ao lado das influências libertárias do Maio de 68 em França. Nesta direcção, tanto os seus hábitos como os seus valores, expressos no plano colectivo mas também no individual, manteriam essencialmente, segundo Joana Lopes, uma «militância mais ou menos espartana». Sob este aspecto, digo agora eu, em pouco se distinguiriam os jovens militantes comunistas estudantis dos da extrema-esquerda, embora estes últimos, no processo de rejeição da sua própria condição de classe, assumissem quase sempre posições particularmente inflexíveis, próximas do que acreditavam ser uma «moral proletária» suprema e redentora.

              Esta perspectiva afigura-se-me essencialmente correcta, sobretudo quando aplicada ao meio estudantil em si, embora me pareça também um pouco incompleta. É verdade que em Portugal, se exceptuarmos núcleos muito reduzidos de jovens integrados em ambientes artísticos e literários, não era perceptível à época – e falamos já do período marcelista – uma componente social do caldo de cultura sixtie, dotada de uma dimensão hedonista, contracultural e libertária, e da qual Maio de 68 terá constituído talvez o símbolo maior. Todavia, e ainda que tardiamente em relação à matriz original, ela encontrava-se em construção, do que constitui prova o surgimento dos primeiros grandes festivais musicais, uma clara modificação dos consumos, o interesse por determinados tipos de literatura e de cinema, a atracção pela french theory, transformações profundas ao nível do divertimento, da moral e até do look, reconhecíveis principalmente entre os estudantes (universitários e do secundário) e os jovens quadros, mas que se encontravam, pelo menos nas maiores cidades, em pleno processo de alargamento a outros sectores.

              Por outro lado, encontra-se por fazer – a intervenção de testemunhos pessoais poderá vir a documentar melhor este aspecto – o reconhecimento do que se me afigura uma evidência «silenciada»: muitos dos jovens que partilhavam das convicções e das metas de diversos sectores da esquerda, incluindo-se nestes até muitos dos radicais, levavam uma espécie de «vida dupla», de natureza militante mas também escapista, integrando consumos provindos de origens aparentemente contraditórias: de Moscovo ou Pequim, mas também de Paris, Londres ou São Francisco. Lenine e Marcuse, Luis Cília e Janis Joplin, Léo Ferré e Dylan, Eisenstein e Godard, Murais da Revolução Cultural e Andy Warhol. Uma prova desta duplicidade? Basta seguirem-se os conteúdos de jornais então muito lidos entre a juventude estudantil e urbana, como o «cor-de-rosa» Comércio do Funchal e o Diário de Lisboa, verificar-se qual o seu padrão de leitor e ter-se uma ideia das suas tiragens.

                Atualidade, História, Memória

                Deserção (adenda)

                Na sequência do post anterior sobre a deserção, Vítor Dias interpela-me no seu blogue. Mescla aí, porém, a legítima vontade de ver publicamente esclarecidas algumas das minhas afirmações que considera erróneas com pedidos de esclarecimento acerca do que penso de antigas decisões do PCP. Como no texto em causa procurei não revelar simpatias mas apenas proceder a uma abordagem o mais imparcial que me foi possível, a estes não irei responder aqui. Quanto ao que poderei clarificar a propósito das tais afirmações, creio que será suficiente a leitura de um texto que escrevi em 2001 e que aqui parcialmente disponibilizo (a versão final, da qual não disponho neste momento, inclui pequenas revisões formais e meia dúzia de considerações complementares que hoje me parecem menos relevantes).

                Admito que a palavra ziguezagueante que utilizei num parágrafo possa não ser inteiramente correcta. Coisas dos blogues, onde se edita quase sem revisão. Sugiro a sua troca por hesitante.

                Quanto às expectativas, não agradeço, mas obviamente retribuo.

                Uma nota complementar por causa de referências feitas ao métier que exerço durante a maior parte do tempo: o historiador inquire a História, não a oficia.

                PS – Em resposta a esta adenda Vítor Dias tece mais algumas considerações, de novo pautadas pela vontade de justificar uma posição unívoca do PCP que este, de facto, nesta matéria nem sempre teve. Apenas faço uma correcção, destinada a quem tenha lido com pouca atenção o artigo para o qual remeti e se fie apenas no que diz Vítor Dias: a posição «hesitante» da abordagem da Guerra nos 2º e 3º Congressos da Oposição Democrática refere-os no seu conjunto. Mas logo adiante se afirma que «no Congresso de 73, todavia, notamos alguma preocupação com o assunto por parte de diversos participantes, sobretudo no que se refere aos sectores mais próximos dos comunistas.» A deturpação é uma arma, como todos sabemos. Já agora: não me limitei a ler sobre o 3º Congresso, estive em sessões de preparação e estive lá, em Aveiro.

                  Atualidade, História, Memória

                  Deserção

                  Três textos disponíveis nos respectivos blogues – um de José Pacheco Pereira e dois outros de Vítor Dias (este e mais este) – reconduzem-nos até um dos aspectos da Guerra Colonial dos quais ainda se não falou o suficiente. O relativo silêncio à volta da deserção política como acto de resistência reconhece-a, de facto, como algo que se mantém incómodo. Os conservadores, mesmo aqueles que já tiveram tempo de se converterem à democracia, continuam a evitar um problema que afronta a sua noção de patriotismo e a ética militar. Os socialistas defendem-se de falar de um assunto sobre o qual nunca tomaram uma posição clara e que a maioria dos portugueses hoje com direito de voto jamais compreendeu. Os comunistas contornam a posição ziguezagueante, crescentemente moderada, que foram mantendo sobre o assunto. E muitos dos «arrependidos» da extrema-esquerda preferem não falar de um dos lados do seu antigo combate no qual a radicalidade das atitudes foi mais longe.

                  Apesar do esforço para centrarem os seus discursos em experiências e estados de espírito de natureza essencialmente pessoal, ambos os autores são reconduzidos às posições políticas que mantiveram durante o conflito e que, independentemente das revisões que foram assumindo ao longo da vida, se reconhecem em aspectos da matriz ética que hoje adoptam. José Pacheco Pereira destaca a coragem daqueles a quem «nunca passou pela cabeça fazer a guerra», e que, por esse motivo, optaram por desertar, escolhendo a via do exílio ou da emigração. Vítor Dias fala dos homens para quem desertar significava inevitavelmente um «afastamento do combate em Portugal», optando em consequência por se manterem nas fileiras e por seguirem até aos teatros da Guerra. Sem tirar nem pôr as posições dominantemente mantidas, à época, pela esquerda radical e pelo PCP. A primeira, assentando o seu combate numa atitude de grande radicalidade e de ruptura, de natureza simultaneamente individual e geracional, tanto em relação ao regime quanto em relação aos códigos e valores que o sustentavam. O segundo, mantendo nesta matéria uma posição cautelosa, evitando fracturas que considerava desnecessárias e procurando justificar uma política que visava gerir riscos, não contrariar a política de aproximação interclassista «de todos os portugueses honrados» e tentar subverter o aparelho militar do regime a partir de dentro.

                  Como Pacheco Pereira reconhece, em adenda ao texto escrita após ter sido interpelado por Vítor Dias, não é possível estabelecer aqui um grau de «medição de coragens». É a pura verdade, claro: como comparar os graus de bravura dos soldados dispostos em diferentes trincheiras e distintas frentes, ainda que de uma mesma batalha? Mas é possível entrever nesta troca de posições, e de recordações, duas atitudes, dois modelos, duas formas de entender a mudança em Portugal e no mundo, a dos esquerdistas e a dos comunistas, que então não só divergiam profundamente como se confrontavam no terreno.

                  Resta dizer, para evitar sugestões de ligeireza e já que tanto José Pacheco Pereira como Vítor Dias invocaram o seu percurso pessoal para esclarecerem a sua posição sobre o assunto, que o autor destas linhas tem uma parte da sua vida ligada a esse universo agora distante. Detido durante uma manifestação contra a Guerra Colonial, viria por tal motivo a ser compulsivamente incorporado no exército onde fez trabalho político e foi alvo de uma segunda detenção, tendo desertado quando foi confirmada a sua mobilização para África. Após viver algum tempo na clandestinidade, seria reintegrado depois do 25 de Abril nas forças armadas, acabando por cumprir ainda, já na fase de transição para a independência, uma comissão de serviço em Angola. Muitos anos depois viria a escrever um pequeno trabalho académico sobre o lugar ocupado pelas diversas esquerdas na resistência interna à Guerra.

                  Ver: Rui Bebiano, «As Esquerdas e a Oposição à Guerra Colonial» (2002), em A Guerra do Ultramar: Realidade e Ficção. Actas do II Congresso sobre a Guerra Colonial. Lisboa: Editorial Notícias – Universidade Aberta, pp. 293-313.

                  Ler a Adenda »»

                    Atualidade, História, Memória

                    Reescritas

                    Apontamentos do Maio – 2

                    Tomo conhecimento, através do blogue de Vítor Dias, da saída de um número especial do L’Humanité dedicado à celebração dos quarenta anos passados sobre o Maio de 68. Vou tentar adquiri-lo, até porque fico bastante curioso a respeito da inevitável reescrita, por parte dos sectores intelectuais ligados ao PCF, da posição reaccionária e depois seguidista que os comunistas franceses (e não só) mantiveram na altura sobre os acontecimentos do Maio que ainda não era «o Maio». E que hoje, muito naturalmente, farão por rever. Reescrevendo a história para fazerem o elogio do movimento que na altura rejeitaram. Mas não há como ler para crer.

                      Atualidade, História, Memória

                      Esquecer Maio para o Maio não morrer

                      Apontamentos do Maio – 1

                      Durante algumas semanas, Dany «Le Rouge», o libertário, foi para o Ministério do Interior «judeu alemão» e para o PCF «anarquista alemão». Hoje permanece inclassificável, com atitudes que desagradam à esquerda e à direita. Em 2001, a defesa pública da intervenção armada anti-taliban retirar-lhe-ia a simpatia política de muitos dos antigos correligionários e desacreditá-lo-ia junto daqueles que jamais aceitarão o mais pequeno pacto com o arquivilão americano. A leitura que Daniel Cohn-Bendit (DC-B) tem vindo a fazer do Maio de 68 e do seu rastro tem alargado ainda mais o círculo da rejeição.

                      Em Forget 68, um pequeno livro das Éditions de l’Aube que transcreve uma conversa mantida com o jornalista Stéphane Paoli e o sociólogo Jean Viard, DC-B indica aquelas que considera serem as duas grandes incompreensões mantidas a propósito do significado do movimento. A primeira, afirma, «é a de Sarkozy e da direita, para quem todos os males da França de hoje derivam de 68», a segunda residirá «nessa fábula da extrema-esquerda para quem concluir 68 se mantém na ordem do dia» (p. 123-4). Contra a depreciação ou o maravilhamento, admite a derrota política do Maio, mas destaca a sua vitória a longo prazo, determinada principalmente pelo impacto das ideias e das vivências que o acompanharam.

                      Deve dizer-se que DC-B não partilha com muitos dos seus contemporâneos de uma visão nostálgica do movimento do qual continua a ser o rosto mais visível. E faz questão de afirmá-lo. Sublinha sempre o seu carácter episódico, datado, e a sua manifesta incapacidade para produzir na sociedade francesa uma qualquer ruptura de carácter revolucionário. Destaca também a sua inclusão na vaga de revolta que cruzou uma grande parte do planeta nos anos 60, representando um dos seus mais importantes momentos. Mas sublinha principalmente a sua dimensão simbólica como instante no decorrer do qual passaram para primeiro plano práticas e propostas que questionaram a ordem política e moral da burguesia, ao mesmo tempo que revelavam a inadequação das ortodoxias da esquerda a um universo social emergente.

                      Nesta direcção, pode aproximar-se parcialmente a posição de DC-B da expressa logo em 1970 por António José Saraiva, para quem, em Maio e a Crise da Civilização Burguesa, os acontecimentos de 68 teriam sido «obra de uma mudança espiritual». Mas, tal como o fez recentemente a americana Kristin Ross em May’68 And Its Afterlives, recusa também a leitura inócua de um Maio puramente festivo, reconhecendo-o sem equívocos como momento de aproximação das esperanças e da contestação dos intelectuais à luta dos trabalhadores e dos sectores anticolonialistas e anti-imperialistas que se incorporaram no movimento. Diversamente de Ross, porém, DC-B considera-o também como momento dotado de um significado simbólico que o tempo ampliou, acabando por ganhar vida própria ao materializar uma espécie de vitória a longo prazo, e de desforra, da geração derrotada pela polícia e pelos gaullistas nas ruas de Paris.

                      Propõe esquecer 68, mas apenas na medida em que a excessiva e recorrente lembrança tem servido para que os seus inimigos «em diferido» lhe atribuam um sentido perverso. E para que os seus partidários passadistas se não continuem a servir da sua memória oficial como obstáculo ao lançamento desse esforço de «recomposição do pensamento», associado «a uma exigência de liberdade e de autonomia tanto colectivas quanto individuais» (p.85), que se revela hoje indispensável, como um desafio, na procura de soluções para os ventos de mudança que varrem um mundo radicalmente outro.

                      Não se encontrará nada de substancialmente novo nem de particularmente original neste pequeno livro. Mas o discurso enérgico que percorre Forget 68 ajudará a pensar o Maio francês, o seu tempo e a sua posteridade sob perspectivas que não sejam a da rejeição liminar sugerida pelas palavras de Sarkozy, ou a da nostalgia de um mundo carregado como um fardo por todos esses soixante-huitiards que num dado momento das suas vidas deixaram de dar corda aos relógios. Esquecer para, talvez, melhor lembrar.

                        História, Memória, Opinião

                        Na tradição da contestação

                        Há 39 anos, precisamente na manhã do dia 17 de Abril de 1969, teve lugar em Coimbra o episódio que levou ao rubro o conflito conhecido na história e na memória do movimento estudantil português como «a crise de 69». Nos anos que se seguiram, mas principalmente após a instauração da democracia, a data passou a ser celebrada como um momento de profundo significado simbólico para a vida associativa coimbrã, a sua autonomia e o seu impacto no país. Porém, tal como acontece com todas as celebrações que não são acompanhadas de uma atitude crítica e interpretativa que as explique e actualize, esta lembrança tem vindo a transformar-se num ritual, integrando discursos pontuados por clichés, e até a exibição repetitiva de alguma iconografia, cuja leitura se revela progressivamente limitada. Principalmente para as novas gerações, mas também para muitos daqueles que participaram daquele «evento fundador» e que de forma alguma se revêem na dimensão litúrgica e celebratória da sua evocação.

                        Esta redutora simplificação vai-se tornando perceptível durante a leitura de A Tradição da Contestação. Resistência Estudantil em Coimbra no Marcelismo, de Miguel Cardina (MC), que a Angelus Novus acaba de editar. Resultante da tese de mestrado que o autor defendeu em 2005 mas entretanto actualizou, este livro cumpre desde logo uma importante função: bem documentado e reflectido, ajuda-nos a diluir algumas formas de ver o movimento estudantil, desde os finais da década de 50 até 1974, mas em particular durante os anos da governação marcelista, que são imperfeitas porque fundadas em leituras do passado mais apoiadas em generalizações e no rastro nostálgico de determinados momentos do que no estudo e na reflexão crítica.

                        Contribui também para mostrar de que forma narrativas pré-formatadas do passado do movimento têm servido como instrumento destinado a evocar instantes e gestos reputados como exemplares ou heróicos (como é o caso do referido episódio do 17 de Abril), que promovem um território de legitimidade e de reconhecimento público adequado à aceitação dos processos reivindicativos e das vozes do associativismo estudantil no presente. Deste modo, pode dizer-se que este livro relativiza uma leitura passiva, que reduz o movimento estudantil à evocação oficial de determinadas datas, limpando-o da poeira comemorativista que tende a esvaziá-lo da sua complexidade ou a transformá-lo numa caricatura de recorte mais ou menos nostálgico.

                        Este problema é visível no processo de hipervalorização, aqui comentado, da «crise de 69». Não se contesta que esta tenha correspondido a um momento central da história do movimento estudantil português e que foi decisiva para o aprofundamento do processo de decadência e crise do regime que desabou em Abril de 1974. No entanto, ela tem sido vezes de mais anotada como um «acontecimento em si», espécie de clímax antes do qual dominara o conformismo e depois do qual se estabelecera uma fase de refluxo, ou de esmorecimento, da iniciativa estudantil, que, de acordo com essas leituras, teria sido apanhada algo adormecida pela Revolução dos Cravos.

                        A verdade, mostra MC, é que o período que preparou a «crise», a «crise» em si, e os anos que se lhe seguiram, estabeleceram antes um continuum que incorporou, entre outros aspectos, transformações vivenciais (com a rápida desvalorização das praxes académicas), alterações culturais (com uma abertura rápida aos valores comuns à cultura juvenil internacional dos anos 60), e principalmente um alargamento muito grande da participação cívica estudantil, crescentemente politizada no sentido de integrar o activismo e as suas reivindicações nos processos mais gerais de transformação da sociedade portuguesa da época e na sua própria vida. A Tradição da Contestação mostra assim, com nitidez, que a «crise» não correspondeu ao apogeu do movimento, mas antes a um momento de mudança e de viragem.

                        De facto, a rápida e acentuada politização, notada sobretudo junto dos universitários comunistas e da esquerda radical – que apesar de ilegalizada e minoritária desenvolvia uma intervenção cada vez mais notória -, mas também entre os estudantes comuns, maioritariamente empurrados para um lugar de visível oposição ao regime e à sua guerra colonial, constituiu um das marcas mais salientes do movimento nos anos de 1971/1974, que MC aborda com particular detalhe. Essa politização extrema, associada a factores como o encerramento compulsivo da AAC, levou à perda de relevância da intervenção de índole essencialmente associativa, e formalmente reformista, que até essa altura dominara a actividade reivindicativa estudantil, traduzindo também o aprofundamento de um clima geral de desafectação em relação ao que restava do Estado Novo e aos seus intérpretes. Clima do qual apenas era possível excluir os então ultraminoritários sectores da direita estudantil.

                        Foi também ao longo destes anos estudados por MC que foram chegando os ecos do Maio de 68, traduzíveis em influências bastante mais amplas do que aquelas materializadas apenas no comprometimento político ou no revigoramento da reivindicação estudantil. Se é verdade que os acontecimentos de França ecoaram rapidamente no ambiente universitário de Coimbra – como ecoaram por quase todo o mundo – foi apenas nos anos seguintes que o sentido mais profundo do movimento, traduzido num recuo da esquerda ortodoxa, na visibilidade da extrema-esquerda e na construção de uma nova abordagem da política, da cultura, da moral e dos estilos de vida entre os sectores estudantis universitários, chegou a Portugal, e particularmente a Coimbra. E é esta mudança que MC mostra de uma forma aliciante.

                        A Tradição da Contestação evoca ainda uma imagem estereotípica da cidade de Coimbra, onde a palavra «tradição» se continua a cruzar com algumas referências recolhidas de um passado mais ou menos remoto, mas remete também para os ecos de uma vida estudantil até há bem pouco tempo ainda essencialmente masculina e boémia, feita de hierarquias, de praxes académicas e de formas inócuas de uma autoproclamada «irreverência», que nunca chega a sê-lo quando não assume uma dimensão participativa. Este livro mostra-nos que, afinal, existe também uma outra tradição possuidora de lastro histórico, provindo pelo menos da época das lutas liberais mas acentuado nos anos 50 e 60 do século XX, que é a da intervenção activa. Revela-nos uma outra Coimbra, mais plural, emancipada da imagem do lente inquisidor e do estudante truculento, mergulhada numa tradição de cidadania que integra o património identitário da própria cidade.

                        O livro de Miguel Cardina funciona pois como uma lição que os actores e os agentes da Coimbra de hoje não devem deixar de conhecer. E mostra a todos os leitores que, na história do movimento estudantil, como na história de qualquer movimento social, os episódios sonantes, por mais visíveis e mediáticos que se mostrem, representam apenas a ponta do iceberg.

                        Entrevista a Miguel Cardina aqui e aqui.

                          Coimbra, História, Memória

                          Reprise (2)

                          [YouTube=http://www.youtube.com/watch?v=F5fsqYctXgM]

                          Perfazem-se hoje 54 anos sobre a data da gravação num estúdio de Nova Iorque, por Bill Halley & His Comets, de Rock Around the Clock, o primeiro tema de rock’n’roll a chegar ao topo das vendas de discos nos Estados Unidos. No ano seguinte (1955), a canção já não saía das cabeças e dos pés de milhões de teenagers de ambos os lados do Atlântico. E a paisagem social mudava com eles.

                            História, Memória

                            Desamparados do Maio

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                            Sai na próxima semana, nas suíças Éditions de l’Aube, Forget 68, o mais recente livro de Daniel Cohn-Bendit (ou antes, contendo uma entrevista a DC-B). Levantou-se de imediato um clamor sobre a «traição» do homem ao qual terá faltado «apenas a fibra moral e social para viver a sua vida, coerente com as suas ideias». Para os desamparados do Maio de 68, que do movimento não vislumbram os efeitos culturais no longo prazo que o «judeu alemão» actualmente enfatiza, mas sim a sua dimensão simbólica de momento maior da fase terminal das ortodoxias marxistas, é insuportável imaginá-lo sob outro retrato que não seja aquele que preenche o seu próprio imaginário, construído sobre um episódio exaltante agora com quarenta anos de idade.

                            Mas Cohn-Bendit é o primeiro a avisar, num dos passos do livro que o Nouvel Observateur acaba de divulgar, que o título Forget 68 «não quer dizer que esse passado esteja morto, mas que ele foi soterrado sobre quarenta toneladas de calçadas [pavés, disse Daniel] que, depois dele, transformaram e mudaram o mundo». Porém, «culturalmente ganhámos», pois considera, a meu ver justamente, muitas das práticas que as democracias naturalizaram – como sejam aquelas associadas à democracia participativa, aos progressos no papel social das mulheres, à valorização dos direitos das minorias, à dissolução do rigor das antigas hierarquias, ou à liberdade de ensino e à sua democratização -, como tendo resultado, em larga medida, da vitória de um «espírito de 68» que ultrapassou as datadas circunstâncias do seu nascimento. Elas estão inscritas nos hábitos das sociedades democráticas e delas participam hoje praticamente todas as correntes de opinião, retirando-se apenas deste panorama os ultraminoritários grupos da extrema-direita.

                            Só que essa vitória partilhada conduziu inevitavelmente a uma outra realidade, a um outro tempo, no qual as contradições e as causas já não são aquelas que, há quarenta anos atrás, mobilizaram pessoas como Daniel Cohn-Bendit e muitos milhares de jovens «socialistas libertários» como ele foi. Da mudança das causas e da real dimensão da «traição» do «infame» Dany – como gosta que o continuem a tratar – fala entretanto o discurso que este acaba de proferir na sessão do Parlamento Europeu sobre a atitude da UE em relação aos Jogos Olímpicos de Pequim e à questão do Tibete. O discurso pode ser visto e ouvido aqui, sob o título «Il faut foutre le bordel pendant les Jeux Olympiques à Pékin».

                            Como os 40 anos sobre o Maio de 68 estão aí, regressarei inevitavelmente ao tema. Entretanto já encomendei Forget 68.

                              Atualidade, História

                              Viva a Morte!

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                              Originalmente em Os Livros Ardem Mal

                              Há alguns anos, em crónica do El País, Mario Vargas Llosa considerava excessivamente apocalíptico o mundo segundo Hans Magnus Enzensberger. Não sabemos se o escritor peruano, que parece cada vez mais céptico em relação à actualidade, dirá hoje a mesma coisa. Mas podemos reconhecer, sem grande margem de erro, que Enzensberger tem mantido a coerência na sua forma irónica e desiludida, ritmada «com raiva e paciência», de olhar a parte da realidade que lhe cabe.

                              Em 1992-93 publicou dois pequenos ensaios, Perspectivas da Guerra Civil e A Grande Migração (ambos editados em 1998 pela Relógio d’Água, num volume que levou o título do primeiro), nos quais aportava já a uma «cultura do ódio» tendente a multiplicar, dia após dia, os conflitos armados e a insegurança nas ruas. No final do segundo texto, referindo-se aqueles que municiavam este estado das coisas, considerava que «o instinto de autoconservação dessas pessoas é menos marcado do que geralmente se pensa». Em 2006 alargou esta percepção na edição revista de um artigo, escrito originalmente para o Der Spiegel, que a Sextante Editora acaba de traduzir sob o título Os homens do terror. Ensaio sobre o perdedor radical.

                              Enzensberger vira-se aqui para o protagonista, particularmente agressivo e perigoso, dessa violência que não cessa de subjugar o planeta, tornando virtualmente arriscado qualquer lugar ainda há pouco tempo tomado como tranquilo e seguro. Para o perdedor radical, que vive do lado de fora das civilidades comuns, das sociabilidades transparentes, incapaz de as adoptar ou de com elas tratar, e busca a redenção desse estado de auto-exclusão através do recurso a um terror sem piedade que tudo esmaga.

                              Este perdedor radical não pode ser, todavia, comparado ao simples falhado. Enquanto este se resigna com a sua sorte, esperando por melhores dias ou por uma oportunidade providencial, aquele «isola-se, torna-se invisível, cuida dos seus fantasmas, concentra a sua energia e espera pela sua hora» (p.10). O tempo da vingança é então preparado cuidadosamente, fora da luta de massas (age sozinho, ou em conjugação com outras solidões) e das aproximações impróprias para a missão que o deslumbra (é quase sempre homem, e instado à misoginia). Incapaz de reconhecer-se culpado do seu isolamento, da sua incapacidade para se inscrever num quadro social criador e optimista, projecta sobre os outros a causa da sua própria miséria.

                              Enzenberger anota que, no passado, a sua energia destrutiva foi mobilizada por uma multiplicidade de movimentos dotados de uma ideologia e de inimigos localizados (de carácter nacionalista, religioso, racista ou totalitário), mas actualmente a culpa é toda ela lançada sobre os cidadãos dos Estados Unidos e dos países que os apoiam, sobre os judeus (todos, sem excepção), sobre os cúmplices passivos ou beneficiários da globalização, sobre as mulheres que pretendem ocupar um lugar que se lhes afigura inaceitável, sobre os infiéis que não se conformam com uma percepção unívoca do mundo, sobre as democracias que não se conformam aos seus desejos.

                              Senhor da vida e da morte, o perdedor radical dilata a sua energia destrutiva «quando consegue vencer o seu isolamento, quando se socializa, encontra uma pátria de perdedores, da qual espera não só compreensão como reconhecimento, um colectivo de semelhantes a si, que lhe dá as boas vindas». Então, essa energia é potenciada, definindo-se «uma amálgama de desejo de morte e de megalomania» (p.37), ao mesmo tempo que um sentimento catastrófico de omnipotência o liberta da sua impotência. O momento da acção surge quando, neste processo da aproximação aos seus iguais, encontra um detonador ideológico capaz de induzir a explosão.

                              Para o ensaísta e poeta, no mundo actual, este detonador encontra-o o perdedor radical no islamismo, como «único movimento suficientemente poderoso que está em condições de agir globalmente» (p.49), uma vez que se apoia num universo humano que vive uma realidade particularmente difícil. O Islão não tem conseguido, de facto, examinar a parte de culpa que tem pela prostração económica e política dos seus 1300 milhões de fiéis. O declínio civilizacional do qual tem sido cúmplice, iniciado pelo século XV e associado à recusa da revolução tipográfica, terá hoje que ver com o modelo económico colonial e pós-colonial no qual vivemos. Mas os regimes islâmicos ampliam os seus efeitos ou reforçam constantemente os sentimentos de frustração e de inferioridade dos seus súbditos, submetendo-os à miséria e ao analfabetismo, escravizando as suas mulheres, conduzindo a um gigantesco brain drain, impossibilitando um desenvolvimento social harmónico, mas convencendo-os ao mesmo tempo da sua superioridade em relação aos demais habitantes do planeta.

                              É neste caldo de cultura que o perdedor radical se movimenta, ainda que a esmagadora maioria dos seus alvos seja afinal constituída por muçulmanos, como tem acontecido no Iraque, no Afeganistão, nos países do Magrebe, no Líbano e até na Palestina. O que não espanta Enzensberger, dado o facto de o seu objectivo consistir precisamente «em tornar o maior número possível dos outros em perdedores» (p.105). Na realidade, as correntes islamitas não estão interessadas em soluções para os dilemas do mundo árabe, limitando-se à negação: «Trata-se de um movimento apolítico, no sentido estrito, pois não se coloca numa exigência negociável. Em última análise, deseja que a maioria dos habitantes do planeta, composta por não crentes e infiéis, capitule ou seja morta.» (p. 109) Ao mesmo tempo organiza o suicídio de uma civilização inteira, numa orgia de morte que crê redentora.

                              Neste livro incómodo, Enzensberger dimensiona urgências. Aponta a mira telescópica para o perdedor radical isolado, suscitando a clara percepção de que este não é um perigo negligenciável. E muito menos passageiro.

                                Atualidade, História

                                Reprise (1)

                                [YouTube=http://www.youtube.com/watch?v=nE-yWpc91_A&feature=related]

                                Completam-se hoje precisamente 45 anos sobre o lançamento de Please Please Me, o primeiro álbum dos Beatles, gravado numa única sessão de 15 horas em 11 de Fevereiro de 1963. O valor simbólico deste momento na cultura popular do século XX tem sido desvalorizado por quem não possui uma clara memória da época ou tende a menosprezar o impacto da então nova cultura juvenil. A ingenuidade quase pueril das letras dos primeiros temas, a linearidade dos arranjos iniciais, a forte concorrência transgeracional dos mais longevos Stones (cujo álbum inaugural saiu apenas um ano depois), bem como a complexificação posterior do rock, contribuíram também para a instalação de um certo desinteresse pelos primeiros tempos dos fab four junto das gerações mais recentes. Olhando este vídeo, percebemos que existia uma nova energia no ar.

                                  História, Memória, Olhares

                                  Serviço público

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                                  Ainda que continue a sonegar informação crucial para o conhecimento público da história de Portugal no século XX e para o estudo do seu próprio passado – as memórias de Gabriel Pedro, por exemplo –, o PCP acaba de emitir um sinal positivo que talvez possa significar o princípio do fim de uma incompreensível política de secretismo: já se encontram disponíveis em linha e pesquisáveis todos os números do Avante! clandestino (1931-1974).

                                    História, Memória

                                    Da beleza e do medo

                                    Robert Capa
                                    Capa na frente de Segóvia (1937) – Gerda Taro, ©International Center of Photography

                                    Originalmente em Os Livros Ardem Mal

                                    Uma notícia sobre a descoberta de mais uma «mala mexicana» dentro da qual, ao longo de décadas, permaneceram guardados numa caixa de bombons 127 rolos de negativos de Robert Capa contendo cerca de 3500 fotografias que se julgavam perdidas, leva-nos a um dos temas recorrentes entre as representações visuais da história europeia dos últimos setenta anos. Mas a Guerra Civil de Espanha não legou apenas a memória dos seus episódios mais ou menos determinantes, mais ou menos dramáticos, ela alimentou também um lastro estético que se manteve perene no imaginário político das democracias e que, aparentemente sem evidenciar sintomas de fadiga, retorna a todo o momento. As canções de combate, os cartazes de propaganda, os documentários das actualidades cinematográficas, as fotografias que nos chegam, enunciam um pathos heróico, acentuadamente sedutor, que só a nostalgia de um tempo de causas vividas até ao limite e de convicções profundas de alguma forma justifica. E mesmo as imagens de dor e de ódio, tanto quanto as representações de um arrebatamento juvenil que ainda assombra, suscitam esse efeito. Por isso os resíduos do trabalho de Capa agora encontrados permanecem de alguma forma encantadores e capazes de intimarem a nossa atenção. E por isso também perturba um livro como Desertores. La Guerra Civil que nadie quiere contar, do jornalista e investigador Pedro Corral, construído, a contracorrente, sobre as recordações e os vestígios daqueles que de ambos os lados do conflito nos deixaram a percepção de um medo sem limites e de uma intensa vontade de sobreviver, que não ficaram até ao fim, que fugiram e se calaram para sempre. Desvela uma Guerra Civil destituída desse sentido épico e dessa dose de idealismo esteticizado que as velhas e as «novas» imagens do fotógrafo húngaro ainda parecem comunicar-nos.

                                      História, Memória