Deserção

Três textos disponíveis nos respectivos blogues – um de José Pacheco Pereira e dois outros de Vítor Dias (este e mais este) – reconduzem-nos até um dos aspectos da Guerra Colonial dos quais ainda se não falou o suficiente. O relativo silêncio à volta da deserção política como acto de resistência reconhece-a, de facto, como algo que se mantém incómodo. Os conservadores, mesmo aqueles que já tiveram tempo de se converterem à democracia, continuam a evitar um problema que afronta a sua noção de patriotismo e a ética militar. Os socialistas defendem-se de falar de um assunto sobre o qual nunca tomaram uma posição clara e que a maioria dos portugueses hoje com direito de voto jamais compreendeu. Os comunistas contornam a posição ziguezagueante, crescentemente moderada, que foram mantendo sobre o assunto. E muitos dos «arrependidos» da extrema-esquerda preferem não falar de um dos lados do seu antigo combate no qual a radicalidade das atitudes foi mais longe.

Apesar do esforço para centrarem os seus discursos em experiências e estados de espírito de natureza essencialmente pessoal, ambos os autores são reconduzidos às posições políticas que mantiveram durante o conflito e que, independentemente das revisões que foram assumindo ao longo da vida, se reconhecem em aspectos da matriz ética que hoje adoptam. José Pacheco Pereira destaca a coragem daqueles a quem «nunca passou pela cabeça fazer a guerra», e que, por esse motivo, optaram por desertar, escolhendo a via do exílio ou da emigração. Vítor Dias fala dos homens para quem desertar significava inevitavelmente um «afastamento do combate em Portugal», optando em consequência por se manterem nas fileiras e por seguirem até aos teatros da Guerra. Sem tirar nem pôr as posições dominantemente mantidas, à época, pela esquerda radical e pelo PCP. A primeira, assentando o seu combate numa atitude de grande radicalidade e de ruptura, de natureza simultaneamente individual e geracional, tanto em relação ao regime quanto em relação aos códigos e valores que o sustentavam. O segundo, mantendo nesta matéria uma posição cautelosa, evitando fracturas que considerava desnecessárias e procurando justificar uma política que visava gerir riscos, não contrariar a política de aproximação interclassista «de todos os portugueses honrados» e tentar subverter o aparelho militar do regime a partir de dentro.

Como Pacheco Pereira reconhece, em adenda ao texto escrita após ter sido interpelado por Vítor Dias, não é possível estabelecer aqui um grau de «medição de coragens». É a pura verdade, claro: como comparar os graus de bravura dos soldados dispostos em diferentes trincheiras e distintas frentes, ainda que de uma mesma batalha? Mas é possível entrever nesta troca de posições, e de recordações, duas atitudes, dois modelos, duas formas de entender a mudança em Portugal e no mundo, a dos esquerdistas e a dos comunistas, que então não só divergiam profundamente como se confrontavam no terreno.

Resta dizer, para evitar sugestões de ligeireza e já que tanto José Pacheco Pereira como Vítor Dias invocaram o seu percurso pessoal para esclarecerem a sua posição sobre o assunto, que o autor destas linhas tem uma parte da sua vida ligada a esse universo agora distante. Detido durante uma manifestação contra a Guerra Colonial, viria por tal motivo a ser compulsivamente incorporado no exército onde fez trabalho político e foi alvo de uma segunda detenção, tendo desertado quando foi confirmada a sua mobilização para África. Após viver algum tempo na clandestinidade, seria reintegrado depois do 25 de Abril nas forças armadas, acabando por cumprir ainda, já na fase de transição para a independência, uma comissão de serviço em Angola. Muitos anos depois viria a escrever um pequeno trabalho académico sobre o lugar ocupado pelas diversas esquerdas na resistência interna à Guerra.

Ver: Rui Bebiano, «As Esquerdas e a Oposição à Guerra Colonial» (2002), em A Guerra do Ultramar: Realidade e Ficção. Actas do II Congresso sobre a Guerra Colonial. Lisboa: Editorial Notícias – Universidade Aberta, pp. 293-313.

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