Espartanos e hedonistas


I Festival de Vilar de Mouros (Agosto de 1971)
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Apontamentos do Maio – 3

Só hoje li aquilo que Joana Lopes escreveu sobre os «diferentes Maios». Chamou-me particularmente a atenção – para além da referência que fez à vivência dos então jovens «católicos progressistas» – o passo no qual refere uma opinião recentemente expressa por Fernando Rosas. Segundo este, os jovens portugueses, ou pelo menos os então ligados a partidos ou a grupos radicais de inspiração marxista, estariam de tal modo ideologicamente concentrados na luta contra o regime e contra a guerra colonial que teriam passado relativamente ao lado das influências libertárias do Maio de 68 em França. Nesta direcção, tanto os seus hábitos como os seus valores, expressos no plano colectivo mas também no individual, manteriam essencialmente, segundo Joana Lopes, uma «militância mais ou menos espartana». Sob este aspecto, digo agora eu, em pouco se distinguiriam os jovens militantes comunistas estudantis dos da extrema-esquerda, embora estes últimos, no processo de rejeição da sua própria condição de classe, assumissem quase sempre posições particularmente inflexíveis, próximas do que acreditavam ser uma «moral proletária» suprema e redentora.

Esta perspectiva afigura-se-me essencialmente correcta, sobretudo quando aplicada ao meio estudantil em si, embora me pareça também um pouco incompleta. É verdade que em Portugal, se exceptuarmos núcleos muito reduzidos de jovens integrados em ambientes artísticos e literários, não era perceptível à época – e falamos já do período marcelista – uma componente social do caldo de cultura sixtie, dotada de uma dimensão hedonista, contracultural e libertária, e da qual Maio de 68 terá constituído talvez o símbolo maior. Todavia, e ainda que tardiamente em relação à matriz original, ela encontrava-se em construção, do que constitui prova o surgimento dos primeiros grandes festivais musicais, uma clara modificação dos consumos, o interesse por determinados tipos de literatura e de cinema, a atracção pela french theory, transformações profundas ao nível do divertimento, da moral e até do look, reconhecíveis principalmente entre os estudantes (universitários e do secundário) e os jovens quadros, mas que se encontravam, pelo menos nas maiores cidades, em pleno processo de alargamento a outros sectores.

Por outro lado, encontra-se por fazer – a intervenção de testemunhos pessoais poderá vir a documentar melhor este aspecto – o reconhecimento do que se me afigura uma evidência «silenciada»: muitos dos jovens que partilhavam das convicções e das metas de diversos sectores da esquerda, incluindo-se nestes até muitos dos radicais, levavam uma espécie de «vida dupla», de natureza militante mas também escapista, integrando consumos provindos de origens aparentemente contraditórias: de Moscovo ou Pequim, mas também de Paris, Londres ou São Francisco. Lenine e Marcuse, Luis Cília e Janis Joplin, Léo Ferré e Dylan, Eisenstein e Godard, Murais da Revolução Cultural e Andy Warhol. Uma prova desta duplicidade? Basta seguirem-se os conteúdos de jornais então muito lidos entre a juventude estudantil e urbana, como o «cor-de-rosa» Comércio do Funchal e o Diário de Lisboa, verificar-se qual o seu padrão de leitor e ter-se uma ideia das suas tiragens.

    Atualidade, História, Memória.