Bem sei que cada um de nós se olha a si próprio de uma forma diferente daquela que os outros usam para vê-lo, mas «tenho para mim», como se diz na Beira profunda, que foram obras como os romances Um Dia na Vida de Ivan Denisovich (1962) e O Pavilhão dos Cancerosos (1968), ou ainda os grossos volumes-libelo do Arquipélago Gulag (1973-78), que independentemente do seu valor literário me fizeram evoluir politicamente e me transformaram numa pessoa talvez um pouco melhor. Por isso as tenho conservado na biblioteca à distância de um olhar. E também por isso sou incapaz de receber a notícia da morte de Alexander Soljenitsine sem a sentir de alguma forma como uma perda. Pessoal e colectiva.
P.S.: Uma adenda ao excelente post do Luís Januário sobre Soljenitsine: o Arquipélago de Gulag (com este título) foi publicado em Portugal, em dois grossos volumes editados pela Bertrand. No ano, pouco propício para o efeito, de 1975 (o 2º tomo em 1977). Na altura foram apontados, obviamente, como mais uma «manobra da CIA». Tenho-os aqui, mas foram adquiridos mais tarde, quando já tinha percebido que afinal não fora a CIA a inventar todo o mal do mundo. E muito menos a criar a «Administração Geral dos Campos».
P.S. (2): Veja-se também a posição de Carlos Brito, que levanta aspectos para mim até agora desconhecidos e que não podem ser omitidos. Embora me pareça que devam ser avaliados considerando as circunstâncias da vida de Soljenitsine e a intensa manipulação das suas palavras e acções que ocorreram em meados da década de 1970.
Pior que um silêncio imposto é o apagamento das circunstâncias da sua imposição. Os silenciados cumprem então uma dupla pena: aquela à qual foram socialmente sujeitos e a que os impele para um irrevogável esquecimento. Vidas singulares que foram diminuídas, quebradas, interrompidas, e, no final, reduzidas a coisa nenhuma. Formas de emudecimento que adquiriram contornos singularmente dramáticos quando os totalitarismos as transformaram em simples factores instrumentais da sua monstruosa autoridade.
Por isso se torna indispensável, nas sociedades democráticas, a organização de um esforço destinado, tanto quanto a dar voz àqueles que não têm voz, a fazer ouvir os ecos dos silenciados. Esse esforço não pode devolver-lhes a parcela de existência que para sempre lhes foi roubada, mas pode, pelo menos em alguns casos, lançar um pouco de luz sobre o frágil rasto da sua exemplar vontade de escolherem o próprio caminho ou de pensarem a contracorrente. Ao mesmo tempo, pode projectar para as gerações mais recentes, que por vezes os desconhecem, a existência ou a forma de determinados casos de apagamento. Para que elas possam conhecer por si próprias de que maneira e em nome de que princípios se tornou possível, e continua a ser possível, esmagar aquilo que de mais intrinsecamente humano possuímos: a capacidade para fruir uma liberdade sem adjectivos e para construir um destino que podemos a qualquer instante fazer reverter.
Debaixo das experiências totalitárias, este pesado circunstancialismo tornou-se mais presente do que nunca, pois foi imposto em todos os recantos e não apenas na sua dimensão meramente policial e penal. Porque pôde ir até ao mais fundo das consciências. Porque em alguns momentos feriu até a capacidade para pensar o mundo de uma forma autónoma. Por isso, poucos foram aqueles que perseguidos, vilipendiados e reduzidos ao silêncio puderem enfrentá-lo com uma obra capaz de ultrapassar as circunstâncias e de lhes sobreviver. Poucos, muito poucos, foram os homens e as mulheres que, em tempos sombrios, puderam alimentar uma luz que emanasse, como escreveu Hannah Arendt, «da chama incerta, vacilante, e muitas vezes ténue». Luz que esses poucos foram capazes de «alimentar em quase todas as circunstâncias e projectar em todo o tempo que lhes foi dado viver neste mundo». A maioria, porém, jamais o conseguiu, reduzida ao silêncio – ainda que sob a capa protectora das melhores utopias –, pela brutal repressão, pela censura sem tréguas, pela prisão prolongada, pelo trabalho extenuante, pelo ruído seco do tiro na nuca.
A partir de Setembro seguirei aqui o rasto de algumas dessas vidas. Tentando mapear dolorosamente a linha frágil e irregular que através delas foi separando a esperança do horror. E este do esquecimento.
Recebo a notícia da morte acidental, aos 76 anos, de Bronislaw Geremek. Faço uma breve ronda por blogues e sites que referem o acontecimento e vejo que a generalidade dos obituários destaca, da sua quase sempre agitada vida, principalmente, ou exclusivamente, a actividade política. Desde os tempos de militante do PZPR Comunista, que abandonou por discordar invasão da Checoslováquia pelos tanques do Pacto de Varsóvia, até à intervenção directa no processo complexo de abertura e democratização da sociedade polaca iniciado em 1989 e ao combate europeísta. Todavia, para mim, de Geremek o que fica foram sobretudo umas quantas tardes de Inverno passadas numa biblioteca gelada e quase vazia, lendo e anotando alguns dos artigos fundadores que escreveu sobre os pobres e os marginais na Idade Média. Foi um daqueles historiadores – e foram bem poucos, infelizmente – que me ensinou a necessidade, e a beleza, de procurar e de decifrar, por detrás dos gestos dos poderosos gravados na pedra e nos documentos oficiais, a voz dos silenciados, dos esquecidos e dos desalinhados. Por isso, que não é pouco, jamais o esquecerei.
Protecção anti-nuclear chinesa para equídeos. Concebida em 1970. No tempo em que o Glorioso Pensamento do Presidente Mao ensinava que tudo era possível desde que o povo fosse capaz de se apoiar «nas suas próprias forças». Quando a convicção era tudo e o grande inimigo – fosse ele o abominável imperialismo americano ou o horrendo social-imperialismo russo – não passava de «um tigre de geleia de feijão».
O número de Julho-Agosto do Magazine Littéraire transporta consigo, para além de um notável dossiê sobre as conexões entre humor e literatura, a reprodução de uma conversa – «L’Histoire, victime de la mémoire?» – entre o académico Pierre Nora, actual director da revista Débat e autor do incontornável Les Lieux de la Mémoire, e Élie Barnavi, professor da universidade de Tel Aviv e conselheiro científico do Museu da Europa, em Bruxelas. Mais do que a exposição de duas formas absolutamente opostas de olhar a relação entre memória e história, ela serve para ajudar a desmistificar a ideia segundo a qual esta última é um saber frio e unívoco, do qual os valores da subjectividade e da cidadania se devem manter desejavelmente afastados.
Traduzindo os destaques (que sugerem muito bem o tom de toda a conversa a duas vozes):
Barnavi: «A História tem sido notificada para se colocar ao serviço da memória. Esta apropriação da História parece-me uma das características mais graves da nossa época.»
Nora: «O tempo no qual os positivistas conservavam à distância a história contemporânea parece hoje completamente ultrapassado. Fazer História é fazer história contemporânea.»
Barnavi: «Um dos males que corrói a nossa época é a confusão de papéis entre o historiador e o ideólogo.»
Nora: «A memória incorpora doravante uma reivindicação particularista, subjectiva e peremptória, quando não é terrorista.»
Pietro Ingrao permanece aos 93 anos, «um homem brilhante, idealista e romântico». Assume, em entrevista ao suplemento Babelia realizada a propósito da tradução espanhola do autobiográfico Volevo la Luna, que o comunismo falhou, «que o assalto ao Palácio de Inverno fracassou». Mas não se rende. Ao seu modo poético de ser comunista, de se não rebaixar à repetição e ao estereótipo, de evocar a memória rejeitando o azedume, de conservar em tempos difíceis o optimismo revolucionário, é possível admirá-lo. Mesmo quando dele nos afastamos.
Recomendado também nos Caminhos da Memória, é já absolutamente imprescindível, para quem se interesse pela história da fotografia e pela memória do século passado, o Archivo Rojo da Guerra Civil de Espanha, integrado agora no Portal de Archivos Españoles.
Segundo Halbwachs, toda a recordação é uma construção, ou um processo de reconstrução imaginativa, por intermédio do qual integramos imagens específicas, necessariamente formuladas no presente, em contextos que identificamos como passado. Um passado que perdemos para sempre – se a máquina do tempo de H. G. Wells ou de Robert Zemeckis se mantiver no território da ficção, se o buraco de minhoca passar de uma hipótese – e ao qual apenas podemos voltar através de um esforço de recuperação que tem no presente, e sempre no presente, o seu ponto de partida. Quanto muito observamos esse passado à distância, de uma forma que tanto pode ser melancólica quanto excessiva, mas que dele retira apenas, enquanto memória, aquilo que queremos e da forma como o queremos. As imagens recordadas não são assim meras evocações de um «real» acontecido, mas antes representações desse «real» (sem hesitar, Pascale Piolino chama-lhes mesmo ficções). Por isso é a recordação menos um meio de acesso ao passado que um instrumento para explorar, a cada momento, os conflitos em volta do modo como deve ser evocado e transmitido o que aconteceu algures, de esta ou daquela forma, num lugar mais ou menos recôndito das nossas cronologias.
Nestas condições, sugere-nos María Inés Mudrovcic em Historia, narración y memoria, «os erros factuais são tão significativos como os esquecimentos ou as referências exactas». Ou, poderá acrescentar-se ainda, como as «recordações-ecrã», que para Freud nos protegem das verdadeiras recordações. Esta ideia configura um cenário de pesadelo para os historiadores que buscam aproximar-se apenas de um retrato tão «exacto» quanto possível, e sem som de retorno, do passado sobre o qual trabalham, mas pode produzir um efeito dinâmico sobre todos aqueles – principalmente os que se preocupam mais com a história do nosso tempo – que procuram hoje servir de mediadores entre o presente do qual participam e um passado ainda recente. Num «tempo curto», onde a recordação sobrevive na consciência viva de muitos dos seus actores e das suas testemunhas, essa dimensão de incerteza não imobiliza a compreensão do passado nem a transforma necessariamente numa selva impenetrável; ao invés, pode torná-la até mais completa, avivando a vigilância crítica e a ponderação dos critérios de prova e de verdade, sempre centrais em todos os processos de construção e de reconstrução da história. À pergunta «que fazer com tanto passado?», a única resposta só pode ser «aproximamo-nos dele e enfrentamo-lo de todas as formas possíveis», sabendo que jogamos sempre com a vantagem de actuarmos de uma forma móvel, buscando a melhor posição para intervirmos, sobre um objecto granítico – o acontecido – que possui uma grande força de atracção mas permanece imóvel.
Tal como reconhece desde há muito a neurologia, a memória é menos um simples mecanismo de registo do que um instrumento selectivo, que dentro de determinados limites muda constantemente de sentido. Só nos lembramos daquilo que queremos lembrar, ou que somos capazes de lembrar, e escolhendo o ângulo de observação que pretendemos. Investigações no campo da psicologia clínica e da psicopatologia cognitva (com Van Der Linden, por exemplo) mostram que temos tendência para lembrar-nos de uma forma muito mais viva de episódios que evocamos positivamente, ou que servem para construir uma imagem confortável de nós próprios.
É neste contexto que a memória colectiva funciona como um necessário complemento da memória individual, com a qual constantemente dialoga e que de alguma forma «corrige». De facto, ela não consiste apenas num conjunto de factos do passado socialmente reconhecidos, nem existe «por si», como defendem aqueles que nela buscam por vezes a «essência» de um povo ou de um destino, mas é antes, e acima de tudo – retomo Mudrovcic – «um código semântico que opera como contexto no processo de recuperação das recordações individuais». As recordações assumem-se então como «configurações de sentido» de eventos seleccionados a partir de «lugares da memória». Estes podem ser físicos (uma praça, uma prisão, um tribunal ou uma estátua), mas também imateriais (uma ideia, um sentimento, uma tradição, uma crença), e apenas adquirem sentido na forma como a cada momento são lidos e manipulados.
Porém, se a valorização de determinados «lugares» é transitória, nunca é unívoca ou se inscreve num trajecto linear. Muitas das vezes, por exemplo, a destruição dos velhos símbolos é posta em causa por sectores da sociedade, minoritários ou não, a quem um determinado passado suscita um efeito de sedução. Pode então acontecer que certos grupos – menos conformados com a ordem vigente, mais identificados com algumas causas – releiam a memória colectiva e a partir dela formulem uma vontade de recuperação dos monumentos destruídos, como tem acontecido na Europa de Leste ou, mais pontualmente, em países como Espanha ou Portugal (veja-se a polémica, entretanto aparentemente serenada, acerca do «museu de Salazar» e da estátua do ditador). São formas de pensamento nostálgico que suscitam esse tipo de retorno, e o seu espaço de afirmação e de combate é o da memória que o presente integra, mas inevitavelmente modifica e reescreve.
Por isso o combate pela memória é um espaço de permanente conflito entre leituras do passado. Por isso ele carece tanto de uma abordagem crítica que assuma não a vitória da «verdade histórica» – a qual jamais será una ou definitiva, como presumiam as grandes metanarrativas – mas um eterno confronto entre «verdades» que se digladiam. Só assim se tornará possível impedir que uma leitura do passado se sobreponha às outras, impondo a ditadura dos vencedores ou daqueles que controlam os saberes e os meios de comunicação de massas. Erguendo fronteiras e produzindo margens cada vez maiores de silenciados e de esquecidos.
Tinha decidido fechar a série de apontamentos sobre o Maio de 68. Terminara o mês da efeméride e toda a gente estava, e por certo continua, mais ou menos farta de tanta evocação. Mas porque só o pude fazer na noite passada, não quero deixar de referir o visionamento doméstico de Grands Soirs et Petits Matins (traduzido como Os Dias de Maio), o documentário de William Klein que me chegou há cerca de duas semanas com o exemplar do Público.
O filme não é, como eu descuidadamente pensara, uma simples montagem de fragmentos particularmente importantes da revolta estudantil e operária. Ainda que se reporte a episódios e a ambientes que tiveram lugar já na segunda parte do mês – quando a revolta transbordara dos ambientes estritamente estudantis e intelectuais, e o PCF considerara já que talvez pudesse resgatar em seu proveito o estardalhaço dos jovens radicais «pequeno-burgueses» – é muito mais que isso. Expõe diante dos nossos olhos um conjunto de testemunhos inequivocamente espontâneos, reveladores todos eles de um ambiente de intensa politização, e de questionamento do próprio conceito de revolução, que é tão rico quanto revelador. E um conflito de códigos e de valores observado em plena construção (impagável a sequência na qual um comité inteiro procura serenar telefonicamente a mãe que desconhecia há vários dias o paradeiro do seu filho rebelde).
Aquilo que mais me parece ressaltar deste documentário é, porém, a percepção de um «estado geral de exaltação» que apenas é possível captar em momentos revolucionários, com instantes densos, nos quais parece concentrar-se todo o destino da história, e também da vida, daqueles que o protagonizam. Não que o Maio de 68 tivesse constituído uma revolução – claro que o não foi. Mas, de uma certa forma, assistiu sem qualquer dúvida à materialização de uma série de questionamentos que confluíram, explodiram e foram verbalizados naquela precisa ocasião. E isso Grands Soirs et Petits Matins mostra-o muito bem.
No topo da minha leitura emerge ainda, como um símbolo, a personalidade cujo perfil eu julgava conhecer razoavelmente e que aqui, imersa na acção e na intensidade insone daquelas semanas, se me afigura de uma forma mais completa. Aquilo que Daniel Cohn-Bendit mostrou, o que o tornou então uma figura influente e de grande capacidade magnética, o que levou anfiteatros à pinha a ouvi-lo como a um semideus, foi sobretudo o seu discurso optimista e bravo, descomprometido, isento de clichés e profundamente irónico. Longe, a anos-luz, da seriedade rígida e do discurso previsível dos protagonistas («responsáveis», tal como se autodesignavam) da esquerda, ortodoxa ou radical, para quem, ontem como hoje, o humor jamais supera o nível do sarcasmo. No Cohn-Bendit «histórico» que este filme me revelou com um fulgor visual que não conhecia, impera o sentido da provocação, mas também o prazer e o riso, por vezes um júbilo que não carece de explicação. Como se sabe, categorias que embeberam particularmente a cultura juvenil universitária e urbana cujo processo de afirmação pontuava a época. Aquela que o adorava e estava na rua, em massa, durante as irrepetíveis movimentações parisienses do Maio-passado que aqui se evocou.
Neste Maio que se completa deixei por aqui algumas notas sobre esse outro Maio evocado. É provável que elas tenham projectado – foi essa, pelo menos, uma das intenções – uma certa recusa da perspectiva nostálgica e melancólica que a chamada periódica da data sempre comporta. Ainda assim, não terá sido possível evitar, neste meio e neste tempo que instigam a leitura apressada e oblíqua, a ideia de que se tratavam apenas de umas quantas efabulações de soixante-huitiard reincidente. Mas contra isso, batatas.
Reconheço, porém, a validade dessa outra nostalgia, positiva e construtora, da qual fala Svetlana Boym. Aquela que busca no passado um sopro, uma inspiração, um balanço para a interferência emocional do passado no presente. Uma capacidade exemplar, capaz, em circunstâncias completamente diversas, de invocar pelo exemplo o génio da mudança e da insubmissão. Ela fica por aqui, na companhia das canções de Dominique Grange, a soixante-huitiard (ela sim) assumida, acompanhadas do traço militante de Tardi, que a Casterman editou há pouco tempo. Chama-se o álbum 1968-2008… N’effacez Pas Nos Traces! «Não apaguem as nossas pegadas!» Pode lá haver melhor forma de fechar este balanço!?
Vi hoje à hora de almoço, por um acaso, a maior parte do documentário televisivo 1968. O Mundo em Revolta, de Michèle Dominici. Nada de particularmente novo, para além de mais uma revisitação à memória do tempo por parte de alguns dos seus mais conhecidos actores de ambos os lados do Atlântico (Cohn-Bendit, Robin Morgan, Tommie Smith, Felix Dennis, Alain Krivine, o argelino Nadir Boumaza e o irmão mais velho do estudante checo suicida Jan Palach). Todos eles, exceptuando naturalmente o último, pessoas que permanecem activas e que não entendem a sua experiência militante como simples desvario de uma juventude consumida em gestos equívocos (como o fazem alguns dos nossos ex-maoístas, por exemplo, que insistem em falar do seu próprio passado como de uma velha medalha oxidada).
Particularmente interessante, porque mais prospectivo, o testemunho de Krivine, na época figura central da Juventude Comunista Revolucionária, de orientação trotskista, e hoje dirigente da LCR. A um dado momento, refere um pormenor ao qual acaba por dar relevância: para ele, o Maio de 68 terá representado, talvez, um dos derradeiros momentos nos quais, no interior das democracias parlamentares do ocidente, se utilizaram fotografias de figuras associadas ao conceito de revolução socialista (Marx, Engels, Lenine, Rosa Luxemburgo, Trotsky, Mao, Ho Chi Minh, Fidel, o Che, e outras) como ícones de um movimento de massas. De todas elas, apenas o Che permanece visível, e ainda assim, como se sabe, mais como uma insígnia do que como representação de um «guia para acção». Krivine conclui esta constatação conferindo-lhe uma dimensão positiva: olhando este desaparecimento como sinal contemporâneo de uma certa dessacralização da mitografia marxista e de um tempo de procura de uma nova ideia de transformação, capaz de dispensar a imagem ou mesmo a presença simbólica de guias admiráveis e inspiradores. Não deixa de ser uma percepção que vale a pena recolher.
O escritor barcelonês Eduardo Mendoza publicou no último Babelia um artigo de página inteira («El mayo de nuestra juventud») que insiste a maior parte do tempo em muito daquilo que tem sido dito e redito sobre o Maio de 68. Reconhece sobretudo que não se tratou de um movimento revolucionário, mas sim «de um colocar em cena de diversas tendências». E sublinha a sua condição de primeira ocorrência retransmitida pelas televisões de quase todo o mundo, inaugurando de certa maneira uma era renovada da informação. A parte mais interessante ficou para o final, resumindo numa curta frase a dimensão de epílogo de um tempo, mais do que de madrugada de um mundo novo, que o terramoto de Paris lhe parece conter. Considera assim que ele «marcou sem sabê-lo o fim das grandes ideologias, especialmente do marxismo, que já não voltou a levantar a cabeça, e marcou também o fim de Paris como capital intelectual do mundo, título que havia adquirido na época do Iluminismo mas que agora cedia, sem reagir, a Londres e a Nova Iorque.» Dois aspectos que têm passado algo ao lado da actual vaga comemorativista.
Garanto que se tivesse metade da idade que tenho, não tivesse lido os livros que li e apenas passasse os olhos pelo inenarrável programa revisteiro sobre o «Maio de 68» que Júlio Isidro (com um casaco à Bob Geldorf) está a apresentar na RTP-1, ficava com uma tal aversão ao dito «Maio» que nem pintado o poderia ver. Grandes canções destruídas, frases desconexas e descontextualizdas, situações dramáticas transformadas em palhaçadas, invenções, remixes, tudo envolvido num pronto-a-servir para encher chouriços e entreter labregos. Mais a referência, sacramental e oca, a «uma juventude idealista, mas muito ingénua» (Isidro dixit). Pelo meio, algumas pessoas prezáveis são convidadas a dizer uma ou outra frase que se perde completamente no meio de todo aquele chiqueiro kitsch. Divertimento pelo divertimento, antes um congresso do PSD.
Algumas frases de parede menos conhecidas. Daquelas que me tocam um pouco a espinal medula.
L’Anarchie c’est je (Nanterre) Colle-Toi contre la vitre croupis parmi les insectes (Nanterre) Soyons Cruels (Rue des Écoles) Staliniens Vos Fils Sont Avec Nous (Place Denfert-Rochereau) Explorons le Hasard (Boulevard Saint-Michel) À bas le crapaud de Nazereth! (La Sorbonne) Comment penser librement a l’ombre d’une Chapelle? (La Sorbonne) Le Sacré voilà l’ennemi (Nanterre) Ayez des Idées (Faculté de Droit du Panthéon) Cache Toi, Object (La Sorbonne) Faites l’Amour et Recommencez (Rue Jacob) Vite! (Collège de France) Camarades Vous Enculez les Mouches (Nanterre) C’est pas fini! (Boulevard Saint-Michel)
Fonte: Mai 68 a l’usage des moins de 20 ans (Babel, 1998)
Parece-me um tanto estúpido, para não dizer completamente idiota, procurar dividir o mundo entre aqueles que andam por aí a falar do Maio de 68 como instante fundador de uma nova era e aqueles que não querem saber dele para nada porque ele para nada lhes serviu. Entre os fatigados e repetitivos soixante-huitiards e as suas enérgicas e desmemoriadas crias. Entre os que se esgotam na prostração nostálgica e aqueles que apenas acreditam no poder de um novo que precisa assassinar para ser novo. Pelo meio, os outros: os que fazem de conta que foi tudo um mal-entendido, os que pensam que não passou de uma monumental bebedeira seguida de ressaca, os que só vêem a coisa pelo lado arenoso da arqueologia. Creio que, à excepção dos indiferentes, todos têm razão. Acontece que uma pequena frase fundadora e quarentona, escrita a negro numa parede de Nanterre, falava já disto: «Tout ce qui est discutable est a discuter».
«Certos grupúsculos (anarquistas, maoistas, trotsquistas, compostos em regra de filhos da grande burguesia e dirigidos pelo anarquista alemão Cohn-Bendit) tomaram as carências governamentais como pretexto para se dedicarem a agitações que procuram impedir o funcionamento normal da Universidade.» (L’Humanité, órgão oficial do Partido Comunista Francês, em Maio de 1968)
Segui a sugestão feita há semanas atrás no blogue O Tempo das Cerejas e encomendei o número especial do L’Humanité sobre o Maio de 68. Previa então um exercício de reescrita da recusa, e depois de uma gradual acomodação à sequência dos acontecimentos, que os comunistas franceses adoptaram durante o movimento. A previsão não falhou. Percorrendo as 132 páginas, que transportam uma extensa série de artigos, testemunhos e imagens, pode dizer-se que o número materializa uma leitura «a contracorrente» em relação às interpretações do Maio hoje dominantes, despojando-o em larga medida da sua carga libertária, sinal da irrupção de um anti-autoritarismo militante, e retirando-lhe também as características de instante de viragem.
Desde logo, a dimensão da revolta estudantil propriamente dita, essencial para sinalizar o movimento e garantir a sua originalidade, sai claramente diminuída, embora possamos dizer que se trata de uma opção editorial (discutível mas legítima). Nota-se depois que a presença tão paralela quanto coincidente da «insubordinação operária» é sobrevalorizada (o que é sublinhado ainda no DVD que acompanha a revista). Omite-se, em absoluto, uma referência consistente à crítica dos sectores radicais ao «reformismo» do PCF. Exalta-se de um modo desproporcionado o papel do Partido e dos estudantes comunistas. Insiste-se no carácter «anarquista» de Cohn-Bendit e de outros activistas não enquadráveis pelas organizações da esquerda tradicional. Em pouco ou nada se revela uma clara percepção desse tempo de brusca mudança na irrupção dos novos movimentos sociais e na transformação das sensibilidades colectivas, que o Maio de 68 condensou.
Os redactores do L’Humanité não perceberam o que se passou, continuam sem perceber aquilo que estava então a mudar, e insistem basicamente nos mesmos erros.