Francisco Franco y Bahamonde, antigo «caudillo de España por la gracia de Dios», acaba de ser publicamente despojado, pelo Ayuntamiento de Madrid, dos títulos e mercês de alcaide honorífico, filho adoptivo, medalha de ouro e medalha de honra da cidade. Após, há algum tempo, a Universidade de Santiago de Compostela lhe ter invalidado, «por falta de méritos», o doutoramento honoris causa. Com muitas pessoas a favor e umas quantas contra. Por aqui, o ajuste de contas com o corpo físico e simbólico da ditadura tem sido tratado quase sempre de uma forma menos frontal. Abstraindo os pontuais assomos iconoclastas dos meses do PREC, a solução adoptada passou quase sempre pelo emudecimento dos apectos práticos do passado do regime, pela ligeireza das atitudes incriminatórias, pelo elidir da dimensão do mal, pelo arejamento das responsabilidades dos seus protagonistas. Daí à presente esteticização do ditador local, do tempo que ensombrou e dos valores que soube impor, foi um passo apenas.
Ser-se ex-maoísta ou um antigo pró-chinês pode não ser condição invulgar para um europeu que ronde hoje os 50 ou 60. Existem bastantes, alguns deles sentados até, com razoável firmeza, em veryhigh places. Agora ter-se vivido algum tempo, nos idos de setenta, como «amigo da Albânia», parece coisa exótica, aparentemente inexplicável. Para lá da fidelidade política que mantínhamos perante uma espécie de micro-utopia que acreditávamos ter descido à Terra, tenho procurado entender as circunstâncias que levaram um grupo de jovens como nós, razoavelmente instruídos e assumidamente revolucionários, a aderir a tal causa. A ignorância, talvez, sem dúvida, mas o desejo de vermos materializado um ideal ascético de igualdade e militância seria a principal razão: a pobreza generalizada parecia-nos sobriedade, a monotonia dos discursos era para nós rigor, os traços caquécticos da classe dirigente eram rictos resultantes de uma vida com responsabilidades de Estado, o kitsch de um realismo socialista estéril e serôdio era uma marca excelsa e exemplar de um futuro que críamos inevitável. O nosso idealismo de «amigos da Albânia» – como o dos amigos da URSS, ou da RDA, ou de Cuba, por sua vez nossos mortais inimigos – fazia-nos ver claramente aquilo que queríamos ver e desejávamos, acima de tudo, revelar aos outros. De tal forma que olhávamos até com suspeição O General do Exército Morto, do albanês Ismail Kadaré, um «escritor de regime» demasiado «psicologista» que afinal não se parecia muito com outros escritores, para nós realmente exemplares, como o Nikolai Ostrovsky de Assim Foi Temperado o Aço, ou o Jorge Amado da Seara e dos Subterrâneos. Percebi isto um pouco melhor, e vi o filme andar para trás em câmara lenta, quando li parte da recente entrevista de Kadaré – vencedor do último Prémio Príncipe das Astúrias de Letras – à Folha de São Paulo.
Folha – É favorável à entrada da Albânia na União Europeia? Ismail Kadaré – Sim. É a única esperança para que os Balcãs entrem numa via de desenvolvimento normal. Ironicamente, o povo mais pró-europeu e ao mesmo tempo mais pró-americano são os albaneses. É curioso, porque era o povo mais estalinista. Há uma lógica interna para isso. Passamos de um extremo a outro, como uma reacção. Folha – E como foi a questão da dissidência ao regime, no seu caso? Ismail Kadaré – Na Albânia não se podia ser publicamente contra o regime, era totalitarismo absoluto. Mas pela literatura era possível contestar o regime. Tudo que escrevi e publiquei foi feito nesse contexto. Nunca fiz ataques directos ao Estado, somente ironias escondidas, um pouco mais evidentes às vezes. Quando me perguntam se sou um dissidente digo não. Sou um escritor normal, num país anormal. E isso já é muito. Folha – Mas teve um período de apoio ao regime, não? Ismail Kadaré – Desde o começo tive reservas ao regime, ainda que elas não fossem tão conscientes. Se você ama a literatura, não pode amar o regime comunista. Não pode amar ao mesmo tempo Macbeth e a direcção do comité central de Estaline.
Cerca de cem anos depois, a figura, a acção e o pensamento (se assim lhe podemos chamar) de Afonso Costa (1871-1937) – com Salazar, Cunhal e Soares, um dos quatro grandes políticos que protagonizaram o nosso século XX – continuam a levantar poeira e alguns engulhos. Na recém-publicada colectânea Portugal – Ensaios de História e de Política, Vasco Pulido Valente dá-nos um texto verrinoso, polémico, mas ao mesmo tempo bastante estimulante, sobre o prócere do nosso jacobinismo tardio. Num post titulado «Psicografia do Dr. Afonso Costa», agora é a vez de Nuno Resende pegar num velho artigo de Carlos Malheiro Dias e retomar a retórica anticostista, desenvolvida durante décadas por católicos ressentidos, monárquicos levemente coléricos e salazaristas da primeira geração. É capaz de merecer a pena, quando se aproxima o inevitável fragor associado ao centenário da República, que às comemorações oficiais e oficiosas possa também ficar ligada alguma controvérsia. Será bem mais útil e interessante.
No judaísmo e no cristianismo, o arrependimento é um acto central da virtude religiosa que consiste num sentimento de rejeição sincera, por parte do pecador, do seu comportamento pregresso, do qual resulta a intenção de um retorno à lei moral. Nesta direcção, o arrependido é um penitente, existindo uma relação de sinonímia entre ambas as palavras, ademais com raiz etimológica partilhada. «Repentudo» era ainda, no século XIII, uma palavra comum, híbrida, utilizada no português com idêntico sentido. As vidas dos santos encontram-se, aliás, repletas de relatos desse instante redentor no qual se abjura de um passado de transgressão em nome de um caminho novo, de rectidão e pena. Existem, no entanto, modelos distintos de arrependimento: desde aquele, sincero, que resulta de uma apreensão gradual da falta de justeza de uma atitude que é seguida da sua correcção, a um outro, meramente formal, que se segue à imposição, muitas das vezes condicionada pelo medo ou pela coacção, de uma atitude que não é sentida.
Os sistemas totalitários, consolidados por uma ideologia, de pendor laico ou não, que se vê transformada em «religião do poder», serviram-se sempre do arrependimento como processo para moldar a opinião pública ou isolar a dissidência. Foram diversos os intelectuais alemães que cumpriram o papel de arrependidos, o mesmo acontecendo em França durante a República de Vichy. Os Processos de Moscovo recorreram mesmo às declarações dos «arrependidos» como arma de arremesso lançada contra outras vítimas, transformando as suas palavras em libelos da acusação destinados a esmagar os «inimigos do socialismo». Na China pudemos ver, durante a Revolução Cultural, de que forma foi possível encenar, sem qualquer maquilhagem, o «arrependimento» público de um acusado, transformado publicamente num ser desprezável, cuja atitude de rejeição de si próprio visava confirmar a abjecção e a infâmia do próprio dissídio. De Cuba chegam ainda os ecos fantasmagóricos das declarações prestadas durante o julgamento do General Arnaldo Ochoa, o único guerrilheiro de origem proletária de Sierra Maestra, e depois das arengas avulsas, devidamente televisionadas, de outros penitentes. Por isso, não nos podem surpreender já – a nós que temos, felizmente, a possibilidade de consultar arquivos, de confrontar memórias, e que por isso mais dificilmente nos deixamos enganar – as imagens daquela pobre mulher iraniana, sentada ontem em frente das câmaras, afirmando para todo o mundo, penitente, que «os culpados somos nós, os manifestantes».
Da responsabilidade de Jean-François Soulet, um especialista em história comparada do mundo comunista, a História da Europa de Leste da Segunda Guerra Mundial aos nossos diasdesenha uma síntese do trajecto da metade oriental do «velho continente» desde a invasão da Polónia pelos nazis até à adesão dos países de toda a região à União Europeia. Divide-se em três partes repartidas numa sequência temporal: na primeira delas, «a passagem ao comunismo», o autor ocupa-se principalmente da estratégia da União Soviética para aqueles territórios durante e imediatamente após a Segunda Guerra Mundial; na segunda, «o tempo do comunismo», descreve o processo de «sovietização» de toda a região, posto em prática com o apoio dos partidos comunistas locais, mas também alguns dos movimentos de revolta e dos actos de dissidência que contestaram essa influência; na terceira parte, «a derrocada do comunismo», parte da avalancha de contestação e queda, pós-1989, dos regimes ali implantados, para seguir os processos de democratização dos diferentes Estados, mas refere-se também aos demónios acordados pelo recuo da influência ideológica comunista e às situações, por vezes críticas e trágicas, entretanto vividas. Como escreveu João Tunes no blogue Água Lisa, «ler este livro completa-nos enquanto europeus», como cidadãos «de uma Europa feita de muitos povos, muitos dramas e traumas.» É uma boa síntese, que disfarça uma quase escandalosa lacuna temática na edição local de obras sobre a nossa história recente. [Trad. de Manuel Ruas. Teorema, 382 págs.]
Tal como proclama o título do original francês, o objectivo confesso do livro é «explicar o Ocidente a toda a gente». Roger-Pol Droit faz a defesa, estorvada pela influência das teses de um relativismo radical que muitos ocidentais têm assumido como um processo de autoflagelação apoiado na denúncia dos horrores cometidos – que o filósofo, aliás, não nega -, de um locus cultural capaz de valorizar uma tradição histórica não só legítima, mas também dotada de uma identidade própria, em condições de assumir virtualidades dinâmicas situadas a uma escala planetária e aqui tomadas como imprescindíveis. O Ocidente não surge pois, neste pequeno volume de um assumido didactismo, associado, como aconteceu no passado, apenas a uma área geográfica, a uma religião, ou a uma civilização, mas antes como uma ideia aberta a todos, de pendor universal, que valoriza de forma compósita e única os princípios da igualdade e da liberdade, a razão crítica, e a capacidade para a inovação. Despojada de uma percepção etnocêntrica e agressiva, uma das convicções de que o acusam – segundo as palavras de Droit, «a pretensão de deter uma verdade válida para toda a humanidade e em condições de criar uma felicidade generalizada» – pode ser reconvertida em ponto de partida para a sua remissão como território de uma vida decente, melhor e partilhada. Por tudo isto, vale a pena recomendar O que é o Ocidente? aos que se deixam facilmente conduzir por leituras unívocas. [Roger-Pol Droit, O que é o Ocidente?Trad. de Inês Dias. Gradiva, 80 págs.]
«Na madrugada de 17 de Setembro de 1939, e sem que nada o fizesse prever, o Exército Vermelho invadiu a Polónia ao longo da fronteira polaco-soviética.» A iniciativa resultou dos termos do protocolo apenso ao Pacto de Não-Agressão Germano-Soviético, os quais previam a desintegração política da Polónia e a distribuição do seu território pelas duas potências signatárias. Afinal prevista e preparada a pormenor, esta surpreendente operação confrontou a Europa com um dos primeiros grandes dramas colectivos que iriam atravessar a Segunda Guerra Mundial. O forte controlo da informação e uma intervenção aguda da propaganda, cuja importância as circunstâncias da Guerra Fria irão depois acentuar, fizeram entretanto com que tudo aquilo que ocorreu no interior dos territórios controlados pelas autoridades soviéticas tivesse permanecido longe dos olhares da opinião pública e fora dos compêndios de história. Assim, só após a queda do Muro e a dissolução da União Soviética, a abertura de arquivos até aí reservados ou mesmo secretos, a perda do medo por parte das testemunhas, e o fim da censura, tornaram possível o conhecimento desses dramas.
A Guerra pelos Olhos das Crianças fala de um deles – o desmoronamento do Estado polaco pela intervenção das forças russas e o período da ocupação que se estendeu entre 1939 e 1941 -, fazendo-o a partir de uma experiência muito particular: a das cerca de 250.000 crianças que o viveram directamente e que, quase sempre absolutamente sozinhas, foram expulsas do conforto das suas casas em 30 minutos, introduzidas à força em vagões para transporte de gado, e deportadas para os confins do território soviético, onde se iriam defrontar com condições de vida infinitamente piores do que aquelas a que estavam habituadas. Próximas, aliás, das que experimentava então a maioria dos camponeses russos, mas mais dolorosas para elas devido à sua condição de excluídas e à completa falta de protecção.
Os seus relatos – pois é a partir deles que é construída a maior parte deste volume – falam de um mundo inaudito, no qual a regra da vida era a luta diária pela sobrevivência mais elementar. Como bem vinca Bruno Bettelheim no prefácio, e ao contrário do que seria de esperar em vozes de crianças, eles «não nos falam de esperança, mas sim de desespero, de maus-tratos e de morte.» Apesar de quase sempre ingénuos na forma, todos eles relatam ainda um processo igualmente difícil, traduzido nas iniciativas de «russificação» forçada dos vestígios de cultura polaca que entre elas ainda pudessem ser conservados. Um livro impressionante de Irena Grudzinska-Ross e Jan Tomasz Gross, dois autores interessados nos problemas da diáspora polaca, que fica, ainda assim, aquém do sofrimento imenso daquelas crianças deixadas ao abandono. Pois, como conta a pequena Danuta G., natural da cidade de Lvov, «é impossível descrever, só uma pessoa que tenha passado por aquilo é que sabe, as outras pessoas não conseguem perceber».
Irena Grudzinska-Ross e Jan Tomasz Gross, A Guerra pelos Olhos das Crianças. A ocupação soviética da Polónia e as deportações. 1939-1941. Tradução de Hugo Gomes. Pedra da Lua, 320 págs. [Publicado originalmente na revista LER de Maio]
Redigida por volta de 1685-1686, a Carta sobre a Tolerância foi publicada pela primeira vez em 1689, nessa mesma Holanda onde o seu autor, John Locke, procurara protecção. Nela se rejeitava terminantemente a ideia segundo a qual se poderia constranger alguém a crer, visando mostrar-lhe o verdadeiro caminho da salvação, e se defendia que as opções no campo do pensamento devem ser completamente indiferentes para as autoridades. Muito antes, durante as guerras de religião do século XVI, os Países Baixos tinham sido já uma ínsula de liberdade e de relativa paz numa Europa intransigente e a ferro e fogo. Aí encontraram refúgio milhares de judeus hispânicos e de protestantes de diferentes tendências, muitos deles a contas com os patíbulos do Santo Ofício se ali não tivessem buscado refúgio. Na década de 1960, Amesterdão transformou-se numa cidade plural e ali nasceram as primeiras comunidades contraculturais de jovens provos, aceites pelas autoridades apesar das suas posições radicalmente não-violentas e anti-sistema.
Pois é nesta mesma Holanda que uma força da extrema-direita nacionalista e xenófoba – o Partido para a Liberdade do Povo Holandês, de Geert de Wilders – acaba de ficar em segundo lugar no decurso das eleições para o Parlamento Europeu, admitindo-se já a possibilidade de vir a ganhar as próximas legislativas. No ponto em que estamos, a situação dá bastante que pensar e recoloca um velho problema que os políticos europeus têm feito por varrer para debaixo do tapete: será legítimo integrar no jogo democrático e na arquitectura do bem comum os grupos e organizações que se destinam precisamente a contestá-los? Precisaremos de vê-los no poder para acordarmos e fazermos algo mais do que piedosas reprimendas?
Adenda – Recebi entretanto um mail de um amigo português que conhece muitíssimo bem a Holanda e me diz que classificar o partido de Geert Wilders como «da extrema-direita e xenófobo» lhe parece «simplificar em demasia a realidade política e social holandesa». Junta ao que me diz um link para um texto de outrem que lhe parece ir ao encontro daquilo que ele próprio pensa. Esse texto pode ler-se aqui. Da minha parte, registo esta opinião, embora muita da informação que me chega às mãos pareça corroborar a leitura que fiz. Incompleta? É muito provável que sim. Por isso esta adenda.
Paul Hollander é um sociólogo americano que deixou a Hungria natal após o esmagamento da revolução antiestalinista de 1956, tendo sido responsável, em conjunto com a jornalista Anne Applebaum, pela edição recente de From the Gulag to the Killing Fields, uma perturbante compilação de testemunhos de ex-prisioneiros políticos dos regimes do «socialismo real» que nos dá um retrato vertiginoso dos patamares desse mundo inferior para o qual estes foram empurrados. Neste O Fim do Compromisso o objectivo é outro, apontando para uma revisitação, apoiada no conjunto alargado de testemunhos autobiográficos, do percurso de quadros comunistas de origem intelectual que após servirem durante décadas os regimes em cujos fundamentos de justiça acreditaram, iniciaram um processo de questionamento das suas certezas iniciais. Mas olhando também aqueles que, no Ocidente, se empenharem apaixonadamente na causa comunista e depois com ela romperam.
Estes processos, individuais e quase sempre solitários, foram inevitavelmente demorados e invariavelmente dolorosos. Demorados pois implicaram uma revisão de convicções, mudanças profundas na vida de quem os viveu, e, no caso de a ruptura ocorrer nos países nos quais os comunistas detinham o poder, riscos pessoais muito elevados que requeriam bastante ponderação. Nas entrevistas feitas pelo autor, a esmagadora maioria dos testemunhos falou, por isso, muito mais da resistência ao desencanto, e das hesitações, do que do exacto momento no qual decidiu consumar a ruptura. Insistindo, recorrentemente, no modo como a teoria do «fim último» tantas vezes serviu para escamotear a desilusão e adiar o corte. Mas foram também processos dolorosos porque produziram quase sempre uma mudança muito profunda na vida de quem os viveu, o isolamento radical do seu dissídio, infamantes acusações de traição, a redução forçada ao silêncio, e, por vezes, graves complicações no que respeitava à sobrevivência material ou à segurança pessoal.
O estudo de Hollander segue em regra uma estratégia discursiva que integra informação segura, confirmada, e reflexão ponderada. Perde todavia um pouco de lucidez quando, no capítulo final, o autor baixa a guarda e mostra uma faceta profundamente anticomunista, revelando alguma incapacidade para aceitar as razões de quem, apesar de tudo, não abjurou totalmente e resistiu à completa desilusão. Eric Hobsbawm, Noam Chomsky, Edward Said e Toni Negri, entre outros, são aí invectivados por, cada uma à sua maneira, terem continuado a sugerir, após 1989, que a «convicção comunista» é algo de imperecível, localizado bem para lá das experiências nefastas do socialismo de Estado e da paralisia dos partidos ortodoxos, mantendo uma dimensão positiva e frequentes vezes atraente.
Paul Hollander, O Fim do Compromisso. Intelectuais, revolucionários e moralidade política. Tradução de Virgílio Viseu. Pedra da Lua, 480 págs. [Publicado originalmente na revista LER de Maio]
Não partilho das concepções, de natureza a-histórica, que partem dos problemas e das contradições do presente para estabelecerem juízos anacrónicos sobre figuras, episódios ou situações do passado. Não podemos ignorar, ou mandar arrasar, as pirâmides de Gizé ou o zigurate de Ur, apenas porque definiram no tempo da sua construção formas de imposição de um modelo social, de uma crença e de uma ordem posteriormente questionados. Ou porque foram erguidos com recurso a trabalho escravo. Como não faz sentido adoptarmos uma avaliação apenas negativista da colonização europeia dos séculos XV a XIX, que não integre as iniciativas contraditórias envolvendo heroísmo e crime, encontro e exclusão, paixão e cobiça. «Todo o documento de cultura», escreveu uma vez Benjamin, «é também um documento de barbárie». Mas também não podemos aceitar uma história asséptica, utilizada acriticamente como curiosidade, instrumento de negócio ou engodo turístico.
Parece-me pois lamentável que, independentemente do carácter lúdico e popular do concurso As 7 Maravilhas de Origem Portuguesa do Mundo, historiadores profissionais e autoridades académicas aceitem omissões graves, tendentes a embelezar publicamente o passado e a ignorar a sua dimensão contraditória e dramática, falando em abstracto de um «valor histórico e patrimonial.» Concordo por isso com os termos da petição dirigida ao governo que está a circular na Internet, relacionada com a escolha de construções como o Forte de São Jorge da Mina ou da ilha de Moçambique, entre outras. Escolha capaz de elogiar a beleza arquitectónica, o fulgor dos seus muros, o poder que simbolizavam, mas omitindo que serviram, e prolongadamente, de entreposto decisivo para a manutenção do tráfico de escravos. De lugar de desterro, sofrimento e morte. É inadmissível o disfarce da verdade e, em consequência, a redução da dimensão compreensiva, complexa e crítica que toda a História deve ter. Mesmo aquela que legitimamente se destina a alimentar a indústria do turismo ou serve de divertimento.
Por isso me parece criticável o apoio dado à iniciativa pela Presidência da República, pela Universidade de Coimbra, pelo Instituto Camões ou, por paradoxal que possa parecer, pela CPLP. Pode ler e, se concordar, assinar aqui a petição. [Nota posterior: a petição foi entretanto encerrada, pelo que o link deixou de estar disponível.]
Li há algum tempo, no blogue de um conhecido militante do PCP, uma observação desdenhosa – logo secundada por comentários entusiásticos de leitores – sobre as pessoas que se preocupam com «aquilo» que aconteceu há setenta anos. «Aquilo» eram os crimes do estalinismo, e o que preocupava o conhecido militante era o aproveitamento dessa evocação como arma de arremesso contra o conceito de liberdade que entronca na teoria e rege a prática dos comunistas que não vão em palavrório, continuando, do fundo do coração e do armazém de adrenalina, a acalentar o devaneio de uma ditadura «dos explorados sobre os exploradores». Sendo o vértice do partido marxista-leninista, naturalmente omnisciente, a determinar, sem meias-tintas, quem está de um ou do outro dos lados.
A ideia é absurda, pois tomada à letra anularia o lugar histórico da construção e do desenvolvimento dos movimentos sociais, da emergência do ideal comunista e até da «luta de classes». Além de que, como qualquer pessoa informada e intelectualmente honesta bem sabe, jamais as operações de instrumentalização ou de silenciamento da História foram tão longe quanto o foram nos regimes, pretéritos e presentes, do «socialismo real» e dos seus sucedâneos. O mais grave, porém, é que aquela atitude de desdém atribui ainda à memória, invocada a bel-prazer ou ignorada consoante as metas do momento, um valor de uso, que, como tal, tanto pode ser descartado como servir de moeda de troca.
Afinal, será justo esquecer aquilo que aconteceu há cinquenta ou há setenta anos – para muitos milhões de seres humanos, o silêncio, a solidão, a fome, o desespero, a tortura ou a morte – apenas porque tal serve para iludir a ausência de uma resposta clara, por parte dos comunistas de pedra, às circunstâncias da democracia no nosso tempo? Porque tal permite a defesa de uma democracia mitigada, na qual certas pessoas são mais «livres» que as outras, devendo estas pagar pela «liberdade» das primeiras? Trata-se também aqui, para quem não pensa dessa forma, de um «dever de memória», materializado na obrigação de evocar o horror para recordar os mártires e, ao mesmo tempo, para evitar que o futuro revisite os crimes que os esmagaram.
Os acontecimentos de Tiananmen ocorreram há muito menos tempo, perfazem-se agora vinte anos, e a sua evocação pelos grandes meios de comunicação tem, por vezes, muito de protocolar e farisaico. As imagens guardadas e divulgadas dos episódios de Junho de 1989 foram até, de tão repetidas, perdendo parte do seu sentido dramático. Por isso, agora é mais a sua omissão, o silêncio de determinadas vozes, que ganha um particular significado. Omitir Tiananmen, apagar aquele acto de revolta juvenil e eventualmente ingénua que, como na Budapeste de 1956 ou na Praga de 1968, materializou o apoio da rua, popular em sentido lato, a uma tentativa de democratização de um regime comunista ao velho estilo, é pois sustentar uma espécie de «dever de esquecimento». Aplicado em nome de regimes e de programas para os quais a democracia, escrita com minúsculas, não passa de factor de verborreia e elemento de propaganda.
É importante lembrar os acontecimentos de Tiananmen. É socialmente higiénico, historicamente justo e politicamente necessário, atendendo à actual situação dos direitos humanos e das liberdades na China. Mas, lembrando, reparar também naqueles que os silenciam ou menorizam. Para acalentarem, porque a espécie se não extinguiu, o ovo da serpente.
Fui uma das cerca de 800 pessoas que subscreveram inicialmente o documento fundador do MPI – Movimento pela Igualdade no acesso ao casamento civil. A apresentação pública do manifesto teve lugar neste domingo. Pode conhecê-lo e assiná-lo também aqui. Transcrevo o parágrafo final, aquele que define a meta mais essencial deste esforço.
O acesso ao casamento civil por parte de casais do mesmo sexo, em condições de plena igualdade com os casais de sexo diferente, não trará apenas justiça, igualdade e dignidade às vidas de mulheres e de homens LGBT. Dignificará também a nossa democracia e cada um e cada uma de nós enquanto cidadãos e cidadãs solidários/as – e será um passo fundamental na luta contra a discriminação e em direcção à igualdade.
Passam hoje exactamente 22 anos – ainda o Muro não tinha sido derrubado – sobre o dia no qual todos percebemos que a URSS já não metia medo a ninguém. E que qualquer rapazola com algum espírito de aventura e conhecimentos rudimentares de aviação era capaz de iludir o sistema de defesa soviético e aterrar incólume, ao comando de um Cessna 172B, em plena Praça Vermelha. Mathias Rust contará mais tarde, em entrevista ao Washington Post, os sentimentos que foi experimentando durante a sua viagem inabitual: «Durante todo o voo, estava em transe; era como uma experiência extracorporal. (…) Lembro-me de sobrevoar uma praia na Estónia. E disse para mim mesmo: ‘Agora estou na União Soviética’.» Uma mistura de brincadeira e de audácia que mostrou como o mundo estava a mudar e a Guerra Fria a gastar os últimos cartuchos.
Após a publicação, em 2005, do excelente Pós-Guerra. História da Europa desde 1945, Tony Judt transformou-se num dos historiadores do mundo contemporâneo mais conhecidos fora dos meios académicos. Mas o aumento da sua visibilidade e influência foi acompanhada, por parte de alguns sectores, de uma tentativa de descredibilização como «inimigo de Israel», concretizada em declarações de ódio e pequenos gestos de retaliação por parte de organizações sionistas, particularmente de algumas sediadas nos Estados Unidos.
Pode parecer estranho, conhecendo o seu percurso. De ascendência judaica, o sobrenome não engana, viveu parte de uma juventude militante e idealista envolvido na experiência inicial dos kibutzim, tendo trabalhado durante algum tempo, como motorista e tradutor, para as forças armadas de Israel, mas existe uma explicação para o aparente volte-face que determinou a sua lapidação pública. O trabalho como historiador e crítico atento à actualidade mundial, inevitavelmente associado à percepção das mudanças verificadas dentro de um universo que conhecia bem, levou-o a reflectir sobre a história recente de Israel e a escrever alguns artigos sobre a forma como a realidade no interior do seu território, e a sua projecção internacional, mudaram muito desde os tempos pioneiros de David Ben-Gurion e dos activistas do Hashomer Hatzair. Sobre o tema, podemos ler em português o importante posfácio a Pós-Guerra («Da Casa Dos Mortos»), e agora dois artigos editados na compilação O Século XX Esquecido («Vitória Sombria» e «O País Que Não Queria Crescer»). O primeiro apareceu em 2002 na New Republic e foi o último ali publicado antes da retirada compulsiva de Judt da ficha técnica da revista. O segundo saiu em 2006 no diário israelita Ha’aretz.
Correndo o risco de parecer, ou de ser, excessivamente conciso, acredito que o essencial das divergências, e a raiz, aos olhos de alguns, da sua «traição», se pode relacionar com uma atitude (a crítica de uma arrogância belicista que não parou de crescer a partir da Guerra dos Seis Dias) e com uma proposta (a defesa, bastante incomum, de um «Estado binacional») avançadas por Judt.
De facto, não caiu bem entre certos sectores israelitas, e entre muitos judeus da diáspora, o seu entendimento da retumbante vitória na Guerra dos Seis Dias, em 1967, como marco do fim do caminho de um sionismo socialista, igualitário, e de alguma forma tolerante, maioritário ainda entre as comunidades judaicas que pesavam na sociedade israelita da época da independência, em 1948. O episódio terá aberto o caminho ao triunfalismo e à arrogância militarista, em parte associados a uma nova imigração judaica para os territórios conquistados – novos sionistas que «não traziam consigo os velhos textos socialistas de emancipação, redenção e comunidade, mas antes um Bíblia e um mapa» – e à nova classe política que dela emergiu. Estes terão convertido a maioria do país a uma atitude de indiferença diante do universo árabe com o qual convivia todos os dias, normalizando o espectáculo da humilhação sistemática dos palestinianos, e passando a tomar imediatamente como «anti-semita» quem, mesmo no interior do país, se atreva a divergir da atitude dominante.
Por outro lado, a consideração, por parte de Tony Judt, da simples possibilidade de se aceitar uma soberania partilhada com os palestinianos, considerada «fraca» e capitulacionista, tornou intolerável a simples consideração da sua voz aos olhos daqueles que nos últimos tempos decidem as coisas a partir de Tel Aviv e de Jerusalém, ou dos lobbies judaicos de orientação belicista sediados na América. Judt paga por isso. Mas, ao mesmo tempo, a sua voz sinaliza de certa forma a afirmação pública da possibilidade de se não considerar a guerra como o último e o único recurso para assegurar os direitos históricos de Israel e dos seus povos. Uma vez mais, discordar, principalmente discordar dos seus, tem custos. Como todos sabemos.
Existem dois versos de Brecht, retirados de Aos nascidos depois de nós, que dizem tudo sobre um certo tipo de infâmia que se passeou triunfante pelo meio dos homens: «Nós, que quisemos preparar o terreno para bondade / Não pudemos ser bondosos.»
«Com mil demónios! Julgo que não teríamos conseguido se eu não tivesse lá estado!» A frase foi pronunciada pelo Duque de Wellington quatro dias após ter comandado as tropas britânicas, holandesas, belgas e alemãs na batalha de Waterloo, selando aí o destino de Napoleão Bonaparte. Evoca também o tema central de um livro de John Keegan, A Máscara do Comando, editado há já mais de vinte anos. Neste, era o soldado o protagonista, evocado na sua relação com a experiência directa da dor, da vozearia, do terror, da audácia e da exaustão espalhados pelos terrenos do combate. Ali é a figura do general ou daquele que assume o comando supremo que se encontra no centro, abordada pelo historiador a partir da leitura de quatro biografias e de quatro diferentes modelos de liderança.
Alexandre o Grande corporiza aqui o arquétipo do «herói». Um guerreiro que aparenta não ter medo, que dá o exemplo batendo-se de espada na mão na primeira linha do combate corpo a corpo, que é excessivo, teatral e de uma certa forma eloquente, ganhando a admiração dos seus e o temor dos adversários por arriscar permanentemente a vida e decidir sempre de uma forma rápida e na aparência inesperada. Já Arthur Wellesley, o Duque de Wellington, é o «anti-herói», que descrevia os seus soldados como «escumalha da terra», mas ao mesmo tempo se comportava como um gentleman disciplinado, minucioso nos seus deveres, invariavelmente sóbrio e contido, aparecendo e desaparecendo sem grande alarido dos locais mais críticos da batalha. O General Ulisses S. Grant surge então como um comandante «não-heróico», de certa forma democrático, que se via a si mesmo como alguém que não era muito melhor do que os seus homens e dirigia os combates com um charuto no canto da boca, às vezes embriagado, recorrendo a meios, como o telégrafo e o caminho-de-ferro, que alteravam radicalmente a condução das operações e o afastavam muitas vezes da linha de fogo. Adolf Hitler é aqui o «falso herói», que se apoiava, com recurso a uma propaganda meticulosamente organizada, na sua capacidade oratória, numa memória excepcional e na glória simulada de um passado de combatente na Primeira Grande Guerra – onde servira basicamente como estafeta – para chefiar, a partir de um bunker, operações que se desenrolavam a centenas ou mesmo a milhares de quilómetros de distância.
Do tratamento destes quatro padrões de comandante, associados a outras tantas formas de comandar, sobressai a percepção da chefia suprema do acto militar como actividade com uma forte componente cultural, capaz de associar os meios de combate e as opções estratégicas nele postas em prática a um padrão de comportamento, a uma «máscara», adoptada pela personalidade de quem os dirige. A atitude diante da condição heróica surge pois como dependente tanto da escolha individual como das condições objectivas impostas aos actos de guerra. Nas circunstâncias da era nuclear, a nova liderança, apelidada aqui de «pós-heróica», requer então uma actuação clara e racional que atribui ao chefe supremo das forças em confronto um papel menos central, embora não menos decisivo. «Outrora, os bravos terão sido aclamados em paradas triunfais pelas ruas de Persépolis. Hoje, os melhores devem esforçar-se por não assumir o papel de heróis.» A guerra contemporânea inutiliza e reclama o apagamento da velha ética do heroísmo.
Publicado originalmente na revista LER de Abril de 2009