Para lá da retórica «de esquerda», que fica sempre bem no discurso voltado para uma parte significativa da opinião pública e do eleitorado que em Espanha ainda a valoriza – por aqui os socialistas há já muitos anos que quase prescindiram de tal coisa –, quando chega o momento de se confrontarem com a firmeza dos princípios e a preservação intransigente da memória os adeptos «psoeístas» do realismo político vacilam, refugiam-se na «legalidade» e contemporizam com os branqueadores de passados. Mas existe quem não vá na cantiga.
Apesar da tradição bem conhecida que foi capaz de construir ao longo dos 25 anos de vida como editora, a Taschen não deixa de surpreender pela crescente qualidade das suas produções, pela capacidade para oferecer a um público não especializado álbuns sempre inesperados, e pelo preço a que consegue colocá-los nas livrarias. Comprei hoje um magnífico The Polaroid Book saído já em 2008. Soube-me bem desembolsar apenas 8 euros por uma edição belíssima e quase luxuosa de 350 páginas, mas, sem exageros ou duplicidade, custou-me encontrar na última página a declaração Printed in China e procurar imaginar as longas horas de trabalho duro e mal pago, as mãos gretadas e as estantes provavelmente vazias, dos operários que a produziram. O prazer, acreditem, diminuiu um pouco. Porém, e como toda a gente, em breve esquecerei o detalhe e continuarei a ampliar a biblioteca com livros a baixo preço.
Para alguns ilustres académicos espanhóis a língua imobiliza-se por decisão sua. E quem não cumprir as regras deve ser publicamente admoestado, ainda que seja ministro do reino. Uma posição respeitável, claro. Pelo menos tanto quanto aquela que contesta a sua validade. Lá como cá, a obsessão fixista conserva o seu peso, indiferente à imparável e infinita revisão dos dizeres.
Christine Granville, a mulher que mais tempo serviu no SOE – o Special Operations Executive criado por Winston Churchill em 1940 – e que terá sido também agente da espionagem polaca, foi de facto a condessa Kristine Skarbeck e levou uma vida muito pouco vulgar. A sua actividade de infiltração começou logo após a invasão da Polónia. Depois do recrutamento em Londres, saltou por numerosas vezes de pára-quedas sobre território ocupado pelos nazis, atravessou de esqui os montes Tatra para entrar clandestinamente no seu país, organizou grupos de resistência urbana e combateu com comprovada coragem no maquis. Enganou por diversas ocasiões a Gestapo, conseguindo salvar de uma morte certa alguns companheiros detidos pelos alemães e evadindo-se da prisão pelo menos por duas vezes. Ironicamente, viria a ser assassinada em 1954 por motivos passionais. Os seus traços e façanhas terão inspirado Vesper Lynd, personagem de Ian Fleming que surge em Casino Royale (1953), a sua primeira Bond novel, mas uma vez mais a ficção ficou muito aquém da realidade.
O noticiário da SIC acaba de adiantar como título de notícia, pela boca de Rodrigo Guedes de Carvalho, que «a chuva parou em Lisboa durante a procissão do Corpo de Deus». Ao mesmo tempo, as imagens mostravam o Cardeal-Patriarca, ataviado com vestes sumptuárias apropriadas ao momento, espalhando incenso ao desbarato – um produto, recorde-se, que provoca danos na saúde de quem o absorve – pelas ruas de uma urbe supostamente em festa. Como se esperava, ninguém deu vivas a Afonso Costa.
Chega-me a informação de que a Biblioteca Municipal de Faro bloqueou o acesso ao blogue Quase em Português, da autoria do arquitecto alemão-português (ou o contrário?) Lutz Brückelmann. Apesar da intermitência dos últimos tempos, um dos melhores blogues nacionais, diga-se. Parece que tem a ver com a colecção de playmates que o Lutz tem vindo a mostrar. Vamos esperar que não aconteça o mesmo à Terceira Noite.
Gostaria de conhecer os critérios (por exemplo: se se refere a homens e a mulheres ou apenas a um dos grupos, qual a dimensão do universo que foi objecto do inquérito, qual a sua localização geográfica, qual o nível escolar dos inquiridos, qual a sua idade, o nível dos rendimentos, etc.) que nortearam este estudo. Sem esses dados, comentário algum pode passar do nível da simples impressão. Mas como também tenho direito a uma, aqui vai ela:
Se bem conheço o meu povo, o referido estudo não revela que a larga maioria dos portugueses gosta mais de sexo que de futebol, e que, neste particular, se encontra acima da média europeia. Mostra apenas que entre nós existe um grande número de mentirosos e que os espanhóis são bastante mais sinceros e desinibidos.
Um grupo de naturais almoça neste 13 de Maio com um colega que fala um português correctíssimo, mais fluente que o deles embora com o acentuado sotaque gutural de alguém que veio de Leste. A pergunta deste, quando surgem no ecrã da televisão os lenços brancos agitados pelo povo crente durante a cerimónia do «adeus à Virgem»: «Mas eles estão a despedir que treinador de futebol?» A aculturação é sempre um processo rico e fecundo, de resultados imprevisíveis.
Podemos sempre fazer um esforço para recuar até aquele instante, localizado algures no nosso passado remoto, no qual decidimos ser aquele, e não outro, o clube de futebol do qual vamos gostar para toda a vida. Em certos casos, aquele com o qual nos envolvemos em momentos de euforia ou de depressão. Os motivos mais simples e mais comuns são os que condicionam a maioria dos adeptos: «é-se» do clube A ou B porque os nossos pais também o são, porque é esse o clube que mais adeptos tem na nossa terra ou no nosso bairro, porque – o pior dos motivos – é aquele o clube «que ganha sempre». Mas podemos sempre escolhê-lo porque gostamos da cor berrante ou discreta das camisolas, porque o associamos a um certo grupo social, porque é o clube da namorada que se deseja ou simplesmente porque é aquele que melhor se opõe aquele outro que simplesmente detestamos.
Porém, em cada tempo e circunstância as referências que nos fazem preferir uma camisola – ou a paixão por um emblema – serão sempre diferentes. Leio na crónica de hoje de Vasco Pulido Valente que, na sua infância, o Benfica estava «ligado à esquerda» (e por isso teria o miúdo Vasco simpatizado com ele), enquanto o Sporting era identificado com o regime. Populares, autenticamente populares, pelo menos na capital do país, seriam clubes como o Oriental, o Atlético ou o Belenenses. «Do Porto não se falava», e tal se aplicava, na época, mesmo a muitos dos habitantes da cidade do Porto. Para mim, as referências foram já completamente outras. Na viragem para a década de 1960, o Benfica era o clube «de toda a gente», do qual o regime se servia para mostrar um rosto benévolo do Império e para divulgar a imagem de uma já inexistente grandeza. O Belenenses era o clube do Tomás e do Tenreiro, enquanto o Atlético já mal se via, o Oriental tinha descido à Segunda Divisão e a Académica era apenas a simpática equipa «dos estudantes». O Sporting parecia-me, então, ser o clube de uma parte mais autónoma e razoavelmente esclarecida, embora um tanto snobe, da população. Apenas uma circunstância permanecia intacta: do Porto continuava a quase não se falar e tal se aplicava, na época, mesmo a muitos dos habitantes da cidade do Porto.
Claro que estes retratos possuem uma base estritamente empírica, capaz de produzir hoje resultados completamente diferentes. A verdade é que nenhuma ideia-feita pode contrariar o impulso irresistível para se gostar da cor mágica das camisolas ou para se simpatizar com o nome de um clube de futebol. Afinal, verdade lapalissiana, existe sempre qualquer coisa nos afectos que não se explica, e que pode induzir estados de alma e atitudes genuinamente irracionais. Por isso compreendo as lágrimas do Manuel do Laço quando soube que o seu Boavista iria descer de divisão por causa do apito final do «Apito Dourado». Se tivesse agora quatro ou cinco anos de idade, com o amor que tenho geralmente pelos fracos e pelos humilhados, talvez me tornasse um adepto incondicional do time do maillot xadrez. Nesta fase da vida, permaneço fiel à minha escolha irracional.
Outros tempos aqueles, quando os call-centers não existiam e jamais alguém nos oferecia, através de chamadas insistentes e não solicitadas, telefones grátis a troco de assinaturas de um contrato não-sei-o-quê cheio de vantagens perante as ofertas, vindas da concorrência, de outros telefones grátis a troco de assinaturas de um contrato não-sei-o-quê cheio de vantagens. Clique aqui (e depois outra vez) para apreciar, em todo o seu esplendor, a notícia que a imagem acima invoca.
Comemorando a 100ª chamada proveniente de um «número privado» registada, em apenas cinco dias, no meu telefone fixo. Imagem da revista Gente, no. 23, 16 de Abril de 1974
A memória recuada que tenho da Sexta-Feira Santa remete-me para uma memória de medo seguida de perto por um sentimento de revolta. O medo era o da criança de educação católica a quem contavam dos raios e dos coriscos reservados, a par de um lugar no Inferno, a quem ousasse comer carne (embora quem pudesse enchesse a boca de amêndoas e coelhos de chocolate). E como eu sentia vontade, principalmente naquele dia, de comer um enorme bife, com ovo estrelado a cavalo e montanhas de batatas fritas! A revolta sobreveio anos mais tarde, quando as quatro estações da rádio e o canal único de televisão iniciavam quarenta e oito horas de uma programação apenas preenchida com vias-sacras, prédicas, penitências, mensagens do patriarcado, peças de Schumann e de Brahms, e cantorias de igreja de qualidade muito duvidosa, não me deixando, como sempre, entrar em órbita com o programa Em Órbita, minha escola e santuário. «Ao terceiro dia», o domingo de Páscoa emergia como tempo de júbilo e um regresso à vida.
Dois dos mais respeitáveis jornais portugueses – o Público e A Bola – oferecem todas as sextas-feiras um indigente «semanário gratuito» chamado Sexta. Esta semana, o Sexta saiu também no sábado coincidente com o Dia Internacional da Mulher. Sempre «actual», o jornal oferece-nos por isso um «Especial Mulher», patrocinado pela Dove, que transporta a toda a largura da capa, acompanhada de um agradável rosto feminil, a frase «A beleza não tem idade». E aborda todos esses magnos problemas relacionados com tamanho das pálpebras, textura do cabelo, maciez da pele e manutenção da linha que, como se sabe, fazem a cabeça em água às mulheres, já que os homens não se querem bonitos e têm assuntos mais graves com os quais se devem preocupar. Ainda mal desperto, considerei a hipótese de ter retrocedido no calendário até aos anos trinta, quando se mostravam já ténues os ecos da primeira vaga feminista e a segunda tratava ainda de aprender a gatinhar. E, por breves instantes, voltei a datas e a lugares nos quais estas atitudes não eram olhadas com tanta indiferença.
Aquilo que me surpreende quando reparo que este blogue-solo perfaz hoje dois anos de idade não é a rápida passagem dos dias. Dessa já me tinha apercebido lá fora. É a quantidade de dúvidas, incertezas, convicções, iras, tonterias, maldições e cumplicidades que em tão pouco tempo e em frágil horário nocturno aqui pude partilhar.
Pós-escrito – Agradecido pelos comentários de polegar para cima e pelas citações simpáticas de tantos blogues. Felizmente, nem todo o povo é sereno.
Na sequência do oportuno reparo de João Tunes sobre alguns problemas ambientais que deveriam preocupar seriamente o nosso zeloso e apostólico Director-Geral da Saúde – e também os mais corajosos e consequentes dos deputados da nação –, uma chamada de atenção para a actividade nefasta do incenso. Essa agressiva substância aromática, supostamente purificadora, que tantos católicos praticantes ou simples turistas são forçados a respirar passivamente nas mais diversas ocasiões litúrgicas e que o insuspeito Catholic News considera manifestamente perigosa para a higiene pública ou, pelo menos, para a saúde dos fiéis. Mais detalhes aqui.
«O presente é um território que exige que se vá além de todos os limites», escreve o filósofo espanhol Ignacio Izuzquiza. É o único território a partir do qual é possível sonhar com tempos diversos e preferíveis. Por isso, apenas numa tonalidade esquizofrénica é possível vivê-lo. Imaginando futuros possíveis projectados a partir de passados pouco mais que prováveis, localizados sempre para além daquilo que permanece convencionado como «o real». Os programas políticos que não assumam essa dimensão prospectiva e fantasiosa estão condenados a ficarem sempre aquém do possível. A gerirem o presente de forma apenas razoável («realista», dizem). A deixarem-se bloquear e a caminharem rumo a uma inevitável derrota histórica.
O que acontecerá agora ao smoking, essa peça de vestuário masculino especificamente concebida para ser envergada em espaços e momentos destinados aos prazeres do fumo? Ficará definitivamente confinado às salas de jogo dos casinos? Apenas será vestido no interior das mansões à hora do bridge? Irá jazer dentro de escuros guarda-fatos na companhia de umas quantas bolas de naftalina?
Imagem: Ian Fleming, agente dos serviços secretos da Royal Navy (código 17F) e criador de James Bond