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Os 178 trabalhos de Cuba

Cuba

«É preciso suprimir as preocupações paternalistas que atenuam a necessidade de trabalhar para viver», disse Raúl Castro após mais de 50 anos ligado a um governo que cedeu a tal descuido. Para dois milhões de cubanos, funcionários do Estado, 500.000 agora e mais 1.500.000 a prazo, isto significa uma acusação formal de mandriice. E a obrigação de procurarem um novo modo de ganhar a sua vida. Como? Trabalhando numa das 178 actividades privadas que o governo lhes permite ter, ainda que não possuam formação para qualquer uma delas ou um financiamento básico para lançarem o negócio. A lista – anexo 1, da resolução número 32 de 7 de Outubro de 2010 – parece uma sucessão de deixas para um mau programa de humor. Abre com «reparador de instrumentos de música» e encerra com «alugador de bicicletas». Pelo meio, «poceiro» (o operário que abre poços), «cabeleireiro», «engomadeira», «fabricante de cintos», «polidor de metais», «pedreiro», «vendedor de vinho», «figura folclórica» (imagino o que possa ser), «cartomante» (sic), «vendedor de flores artificiais», «descascador de frutos naturais», «par de dança» ou, acreditem, «dandy» (talvez em Cuba signifique outra coisa). Pode também entrar-se com expectativas na carreira de «estofador de botões» (a pessoa que reveste de tecido alguns modelos antiquados daqueles acessórios do vestuário), «tratador de cães», «carregador de isqueiros», «colector-vendedor de matérias primas» (aquele que remexe no lixo para recolher e revender o que se puder aproveitar), «operador de compressor de ar, reparador de pneus e de câmaras de ar», ou «preparador-vendedor de bebidas não alcoólicas ao domicílio». Como disse o Castro mais novo, «é preciso acabar de vez com a ideia de que em Cuba é possível viver sem trabalhar». Existe agora um mundo novo de possibilidades, bem preciso e bem delimitado, que liberta o Estado dos inúteis e dos preguiçosos e que prepara o futuro do país. Basta solicitar licença para exercer uma actividade que conste do catálogo, aguardar pelo deferimento e ficar à espera do milagre da sobrevivência. Para pelo menos dois milhões de trabalhadores cubanos e para as suas famílias é este o deprimente horizonte.

Dados retirados do suplemento «Le Mag» do Libération de 23 de Janeiro.

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    No olho do vulcão

    Túnis

    Nawaat – a palavra significa «núcleo» em árabe – autodefine-se como «um blogue colectivo independente animado por tunisinos que dá a palavra a todos aqueles que pelo seu combate cívico a tomam, proferem e difundem». Tem publicado centenas de textos, fotografias e principalmente vídeos sobre o movimento popular de protesto que desde meados de Dezembro tem percorrido a Tunísia. É independente, não aceitando qualquer subvenção partidária. No ar desde 2004, foi desenvolvendo ao longo destes últimos seis anos a dose de engenho e de arte bastante para contornar a censura imposta pela ditadura de Ben Ali. E foi agora instrumental no lançamento e na organização dos protestos. Editado em inglês, francês e árabe, pode ser visitado aqui.

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      Limpeza de pele

      Mark Twain underwater

      – We blowed out a cylinder-head.
      – Good gracious! anybody hurt?
      – No’m. Killed a nigger.
      – Well, it’s lucky; because sometimes people do get hurt.

      O Público noticiava há dias que a New South Books, uma editora do Alabama, vai reeditar As Aventuras de Huckelberry Finn, de 1884, expurgadas das 219 referências à palavra nigger que aparecem no romance. Também a palavra injun será substituída. A primeira, que se refere pejorativamente ao preto, ao negro, à «pessoa de cor», como insistem em dizer os racistas brancos mais embaraçados, será substituída por slave. Já injun, epíteto ofensivo aplicado aos native americans, será trocada por indian. Uma vez mais, justifica-se o gesto rasurador – que não é novo, pois até a Bíblia foi submetida já a alguns liftings recentes –, com a consideração dos termos originais como sendo ofensivos ou politicamente impróprios. Na ignorância, completa ou propositada, de Mark Twain se ter servido daquelas palavras para reforçar o lugar social injusto de algumas das personagens. O escritor foi, aliás, um apoiante empenhado da abolição da escravatura e do alargamento dos direitos civis dos negros americanos (tal como foi também, já agora, um partidário da extensão às mulheres do direito de voto). Foi ainda grande amigo ao longo da vida de John Lewis, um negro que serviu de inspiração para o personagem Jim, central no romance em causa.

      Muitos anos antes de Martin Luther King ou Malcom X terem sequer nascido, já Twain se empenhava num combate, na sua época particularmente difícil e solitário, que muitos anos mais tarde faria com que alguns sectores racistas afiançassem ter ele uma quantidade importante de «sangue negro». Ou «afro-americano», como em sentido inverso, e de forma completamente anacrónica em relação aos conceitos e às palavras usados no tempo do escritor, existe quem prefira dizer. Vale sempre a pena, diante de tais afirmações de reiterada ignorância, imprecisão ou mera estupidez, insistir no perigo que comporta este tipo de escolha supostamente purificadora. Em nome da omissão de palavras ou de conceitos julgados depreciativos, ou na tentativa de contrariar uma absurda «censura preventiva» – que tem levado, por exemplo, à retirada de algumas bibliotecas públicas americanas de livros, clássicos muitos deles, contendo termos julgados «impróprios» –, alteram-se obras literárias e apagam-se pedaços de uma realidade historicamente vivida ou imaginada em contextos muito diversos e que só podem ser compreendidos nas suas circunstâncias. Com tais gestos dilui-se também o rastro de etapas dos processos de emancipação das sociedades e das próprias palavras. Voltando-se o feitiço contra o feiticeiro, se é que não convirá referir este profissional como «técnico de práticas mágicas», «agente de subculturas locais» ou coisa que o valha.

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        Rir para não pirar em Pyongyang

        Pyongyang

        Não sei se já todos vocês passaram por uma situação análoga, mas aconteceu-me uma meia dúzia de vezes. Viver uns quantos dias, por opção mal avisada, numa cidade desinteressante, sem nada de especial para fazer, sem conhecer ninguém, sem lugares bonitos para visitar, mas, por não dispor de transporte próprio, a contar pacientemente os dias que faltam para sair dali para fora. Nessas alturas, se não queremos morrer de tédio ou que nos aconteça alguma coisa má ao cérebro, o melhor que há a fazer, para além de dormir muito, de ler todos os livros que tivermos conseguido levar e de tomar notas para o romance que vinte anos antes planeámos escrever, é procurar fazer render aquilo que se encontra à nossa mão. Esquadrinhar os recantos das praças, reparar em cada centímetro dos corredores do museu local, ponderar a dimensão dos edifícios e das estátuas, tentar perceber como comunicam os naturais, e principalmente observar o que se passa no hotel que nos coube como se de uma inesgotável aventura se tratasse.

        Pois foi precisamente isto que fez Guy Delisle, o canadiano autor de livros de banda desenhada que em 2003 publicou Pyongyang. A Journey in North Korea, relato visual de uma sua estadia de trabalho, como supervisor de um estudo asiático de cinema de animação, na cidade capital do império norte-coreano da dinastia Kim. Só que, neste caso, à situação do viajante aborrecido de morte associou-se a consciência de um universo regulado pela vigilância paranóica e pela repressão. A sua forma de sobreviver no mundo sombrio ao qual se viu confinado, e que procurou descrever neste livro, colocando-o ao dispor da compreensão do leitor, foi então olhá-lo de uma forma aparentemente ingénua, fazendo com que o seu modo de observação fosse filtrado pelo relato de episódios nos quais o absurdo e a comicidade insinuam um devastador efeito crítico. Insistindo na arma do humor, que mesmo na sociedade mais repressiva do mundo serve, como em toda a parte, de factor de resistência. Segundo Delisle, uma piada com bastante êxito em Pyongyang é aquela que procura explicar por que motivo os velhos autocarros que circulam na capital, todos eles montados na distante década de 1950 por operários dos arredores de Budapeste, têm invariavelmente entre uma e cinco estrelas de cinco pontas pintadas na carroçaria: é uma por cada 5000 quilómetros percorridos sem acidentes.

        Tal como outros livros de Guy Delisle, este está à venda nas lojas da rede FNAC.

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          Liberdade a sério

          liberdade

          É sabido desde James Fenimore Cooper que a espionagem é uma das belas-artes. Muito mais criativa e inesperada – Robert Littell ou John Le Carré sabem bem do que falam nos seus romances – do que anuncia todas as manhãs o aborrecido «mundo real». Mas mais silenciosa também: o seu universo é da cor da penumbra e os personagens que o cruzam existem principalmente nos relatórios classificados como confidenciais, nas pequenas notícias saídas nas páginas pares dos jornais, ocasionalmente num obituário rebuscado. Na verdade, a maior parte das figuras que circulam por estes subúrbios da vida não se revê no agente 007. Não dá muito nas vistas, mantém uma vida aparentemente sossegada, sem o glamour do smoking ou o olhar vítreo de Madame M, sem o roçagar de lindíssimas mulheres ou perseguições em automóveis desportivos. De facto, a vida do espião típico, infatigável e eficaz não se distingue da vida do funcionário anónimo, cansado, de uma companhia de seguros com falta de clientela. Afinal este é um indicador de uma realidade maior que qualquer pessoa avisada deveria conhecer: a vida diplomática e a espionagem são irmãs gémeas apenas com cargos diferentes, ambas feitas de aparências, de enganos e de muitas máscaras. Mas jamais de distracções.

          Por isso se torna perigoso que nos deixemos arrebatar pela actividade frenética da WikiLeaks. Não, não me parece que Julian Assange seja um Robin dos Bosques, muito menos um Jean Valjean, e não me espantaria que fosse até mais um Julien Sorel. Um tipo arrivista que passa aos olhos de meio mundo por cândido, honesto e imprescindível. Esta é a minha suspeita – não provada, admito – e por isso não embandeiro em arco com elogios descomedidos ao homem. Só que uma eventual desconfiança não pode ignorar uma certeza que estes dias têm provado: a de que a repressão da actividade da organização está a a servir de pretexto para um ataque generalizado contra a liberdade de expressão e de informação através da Internet. E isto de modo algum pode aceitar-se. Devemos pois enfrentar a arbitrariedade dos poderes que visam abafar vozes em condições de questionar a fiabilidade dos poderosos, por muito que o seu combate possa ter propósitos e se sirva de meios um tanto enigmáticos. Afinal a WikiLeaks não tem qualquer programa claro, mais parecendo um megafone de feira do que uma voz afirmativa em prol de uma causa com objectivos. O que não significa que deva ser calada e que a informação que entretanto vai passando não possa servir para questionar o comportamento arrogante e bem pouco transparente de numerosas figuras do topo da política internacional.

          Por isso também é importante apoiar as acções destinadas a impedir por todos os meios que tirem a voz a Assange. Sem esquecer, todavia, que um combate ainda mais difícil e necessário travam aqueles que em países como a China, Cuba ou a Coreia do Norte, como o Irão, a Líbia ou mesmo Angola, se batem também pela liberdade de opinião como valor absoluto. Sem esquecer que sobre estes incorrem perigos perto dos quais aquilo que pode acontecer aos activistas do WikiLeaks não passa de cócegas. No domínio do exemplo dado e de um ponto de vista bem objectivo – o da defesa intransigente de uma liberdade sem adjectivos, independente daquilo que possa fazer-se com ela – não vejo em que devam distinguir-se substancialmente os riscos assumidos, devido à actividade que mantêm ou desenvolveram em rede, pelo australiano Assange, pela cubana Yoani Sánchez ou pelo Nobel chinês da Paz Liu Xiaobo. Nestas matérias é preciso manter todos os piscas ligados.

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            O Brasil em má companhia

            Direitos Humanos no Irão

            Para Mohammad-Javad Larijani, representante do Irão na recente reunião da Assembleia-Geral da ONU na qual foi aprovada uma resolução pedindo o fim do apedrejamento como forma de punição – para além de condenar Teerão por graves violações de direitos humanos e por silenciar jornalistas, bloggers e opositores –, esta constituiria uma inaceitável «politização do assunto». A resolução acabaria por ser aprovada, se bem que com a abstenção dos representantes de Angola, do Benin, do Butão, do Equador, da Guatemala, de Marrocos, da Nigéria, da África do Sul ou da Zâmbia. Já a Venezuela, a Síria, o Sudão, Cuba, a Bolívia e a Líbia votaram mesmo contra. Vale a pena olharmos para esta lista e repararmos, um a um, nos regimes que consideraram ser seu dever recusar-se a apoiar uma iniciativa desta natureza. Nada que pudesse surpreender em qualquer dos casos se à lista das abstenções se não tivesse juntado um outro Estado. Refiro-me ao Brasil, que desta maneira se recusou também a condenar formalmente a prática da lapidação e o regime iraniano. Temos pois um parente que anda em muito más companhias.

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              Asia Bibi e a blasfémia

              As filhas de Asia Bibi

              Do El País de hoje:

              «La Organización de la Conferencia Islámica (OCI) intenta que Naciones Unidas se pronuncie a favor de legislar contra la blasfemia con ocasión de la reunión del Tercer Comité de la Asamblea General especializado en las cuestiones sociales, humanitarias y religiosas. Aunque se trata de una solicitud rutinaria de la OCI desde 1999, en esta ocasión resulta particularmente inoportuna: sobre una cristiana paquistaní, Asia Bibi, pesa una condena a muerte por haber presuntamente criticado al profeta Mahoma.

              El debate en Naciones Unidas puede transmitir el equívoco mensaje de que la aplicación de la pena capital es una cuestión controvertida internacionalmente cuando la creencia religiosa está por medio. Ni existe ni debería existir controversia alguna: la pena de muerte es execrable en toda circunstancia, también cuando se dicta por lo que no es, en el fondo, más que el ejercicio de la libertad de opinión. Mejor harían la OCI y la Asamblea General solicitando la conmutación de la pena dictada contra Asia Bibi.» [continua aqui]

              Mais informação sobre o caso de Asia Bibi

                Atualidade, Democracia, Recortes

                Imaginar não custa

                Greve Geral

                Aproxima-se o dia 24 de Novembro e com ele virá a Greve Geral destinada a protestar, em primeiro lugar nos locais de trabalho mas também nas ruas, contra as pesadas medidas de austeridade que para centenas de milhares de pessoas serão também de penúria. É impossível deixar de acompanhar a CGTP e a UGT nesta jornada de combate para retirar do silêncio o protesto daqueles que de uma forma ou de outra irão certamente sofrer. E não se pense que estes serão apenas os sectores sociais que já vivem na pobreza ou para ela caminham. Muitas pessoas que até agora mantinham uma vida digna, que não precisavam de cortar a direito na alimentação, na saúde, na educação, no vestuário, na habitação, vão ter de o fazer. Pior: vão ter de o fazer na perspectiva deste não ser ainda o fim da linha e sem uma previsão de melhoria para a próxima década. Protestar é por isso importante. Não porque o protesto ou «a luta» – esse conceito abstracto que algum tentam manter invocando a utopia do governo perfeito «dos trabalhadores» que sucederá à «queda do capitalismo» – leve os actuais governantes a mudarem de posição, mas para que, quem decide colocando os outros apenas como figurantes e não como protagonistas, entenda que é preciso pensar, procurar e promover uma alternativa.

                Só que existe um problema que limita sempre o alcance deste combate. É verdade que as dificuldades são reais e não melhoram, antes pelo contrário, fazendo um apelo a que se conservem sem reequilíbrios, dentro do actual sistema, todos os direitos e regalias dos trabalhadores. Não se pode voltar ao velho slogan do final da década de 1970 bradando apenas «os ricos que paguem a crise». O Estado social não vive do ar e as coisas chegaram a um ponto tal que nem todo o dinheiro dos nossos ricos dará para fazer com que a economia passe a rolar de maneira equilibrada e sem problemas. Não se pode viver do dinheiro que não há e os sacrifícios serão, sem dúvida, inevitáveis. Mas é preciso evitar que eles penalizem sobretudo o elo mais fraco. A alternativa passaria necessariamente por uma política económica e social radicalmente diferente, capaz de alterar as suas prioridades em função de um conceito não meramente gestionário do serviço público. Capaz de combinar a dinâmica internacional do mercado com uma gestão segura mas corajosa e imaginativa dos recursos. Que não se aplique a nivelar por baixo mas aproveite as capacidades humanas e materiais do país para o tornar mais competitivo e próspero. Não sendo economista ou político profissional, não posso passar, como o cidadão, desta declaração de princípios utópicos que apontam para a compatibilização do desenvolvimento com uma política social justa.

                Só que nada disto se pode fazer sem vontade política e o drama, o nosso drama, consiste em ser necessária uma política alternativa, solidária, democrática e de esquerda que não tem quem a prepare, debata, demonstre e aplique. Há cerca de duas semanas, num curto texto de opinião saído no Público, o politólogo André Freire queixava-se de que, em Portugal «a direita (PSD vs CDS) é capaz de cooperar; a esquerda (PS vs BE e PCP) não, nunca o foi, excepto em questões marginais de luta política», deixando implícita a necessidade desta cooperação «à esquerda». A verdade, porém, é que ela não é possível, uma vez que a linha dominante do PS apoia uma versão light das políticas neoliberais que subjugam o país e o mundo desde os anos oitenta, o PCP não sai da sua posição obreirista, mostrando-se incapaz de se comprometer com soluções democráticas de governo e limitando-se a uma posição de natureza protestativa, e o BE não tem ainda dimensão, maturidade política e apoio público para se apresentar como alternativa de poder. Diante desta situação, só resta a quem trabalha uma posição de protesto e defensiva. Preparando a resistência aos golpes ainda mais brutais que esse governo de direita que se anuncia inevitavelmente trará. A Greve Geral do dia 24 será um passo nesta direcção. Quem sabe se ela servirá para abalar consciências e lançar os fundamentos «subjectivos e objectivos» que permitam avançar gradualmente, com metas, numa outra direcção. Imaginar não custa dinheiro. Por enquanto.

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                  Mercado chinês

                  Chinese market

                  A visita de Hun Jintao a Portugal é como a visita de Hun Jintao a qualquer lugar do mundo. Segundo os jornais, são mais de trinta as entidades e empresas chinesas que acompanham o Presidente chinês e uma das cartas na manga e na mesa consiste na compra do BCP – não confundir, por favor, com o PCP (camaradas, sim, ma non troppo!) – pelo ICBC, o poderoso Industrial and Commercial Bank of China. Jintao vem pois, basicamente, tratar de negócios. Em algum momento, porém, dirá umas quantas palavras de circunstância sobre uma certa «fraternidade entre os povos», materializável na caritativa generosidade de Pequim para com os países-pobrezinhos da Europa. Esses que bem precisam do investimento chinês para desatascarem a carroça da estrada esburacada para a qual inadvertidamente se deixaram empurrar. E para continuarem a assegurar o seu papel de compradores.

                  Neste contexto, pouco importarão princípios reclamados por uns quantos extravagantes que não sabem permanecer sabiamente calados. Princípios vagos, traduzíveis em palavras como «democracia», «liberdade de expressão», «direitos humanos», «direitos dos trabalhadores» ou «sindicatos livres». Temas incómodos que apenas servem de embaraço à imposição, nos convénios laboriosamente preparados, de umas rápidas rubricas capazes de satisfazer os mercados e «estimular as respectivas economias». Ou, mais propriamente, que enriquecerão uns quantos, concedendo-lhes, ao mesmo tempo, a boa consciência de prestarem um serviço público, uma vez que «riqueza atrai riqueza». Por isso nada há a esperar para além da deferência dos partidos do poder, traduzida num silêncio cobarde perante o imperador chinês e as iniquidades em vigor no Estado «dos dois sistemas». Aquele no qual combinam harmoniosamente o capitalismo mais selvagem e a repressão «socialista» dos direitos e da voz de quem dá o corpo ao manifesto. Tudo se compra, tudo se vende no mercado chinês. Mas quem manda é o mercador, não o cliente.

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                    Sem culpa mas com desculpa

                    Lombardi

                    De acordo com o director da Sala de Imprensa da Santa Sé e porta-voz do Vaticano, o teólogo, presbítero e padre jesuíta Federico Lombardi, a Igreja católica é mais vítima do que culpada da «praga dos abusos sexuais», a qual avisadamente vê como «uma das pragas do mundo actual». Os motivos do flagelo parecem-lhe óbvios: a presente «crise da família», a desordem trazida pelo turismo e o comércio sexual facilitado «pela Internet e pelas novas formas de comunicação.» Eis de novo a reacção típica da hierarquia da Igreja católica, que a propósito do tema confunde causas e instrumentos. Insiste em ignorar, em termos públicos, uma ligação mais do que óbvia entre a autoridade da função sacerdotal e da própria Igreja junto de numerosas pessoas e comunidades, a intensa repressão sexual que esta insiste em pregar e impor como norma de conduta, e os abusos recorrentes, que na esmagadora maioria dos casos permanecerão aliás no mais completo silêncio, devido ao pudor ou ao receio dos envolvidos. Na Irlanda, para não ir muito longe, conhecem-se números aterradores sobre a proliferação deste tipo de situações, ocorrida de forma transversal e vertical no conjunto da instituição e das suas ramificações, mas o volume de denúncias públicas é ainda bastante moderado. Para não falarmos daquilo que inevitavelmente aconteceu nos mais variados recantos do mapa ao longo de séculos de coacções e silêncios. Nessa longa era de paz e de sossego sem Internet ou outras formas livres de comunicação que perturbassem, com conversas bastante inoportunas e indecorosas sugestões, o casto descanso, por vezes aromatizado com suor e sémen, das celas, das camaratas e das sacristias.

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                      A vida de Marcelino

                      Marcelino Camacho

                      Muitos são já os que não sabem quem foi Marcelino Camacho, desaparecido hoje aos 92 anos. Por nada de especial: os anos vão passando e vão pesando, a saúde fraqueja, e a dada altura não é fácil permanecer na primeira linha do combate e ter a atenção dos meios de comunicação, para os quais os velhos são tantas vezes trapos que não atraem audiências. Além disso, ser sindicalista não constitui uma «profissão de sucesso»: os sindicalistas não aparecem nas páginas da ¡Hola!. No entanto, quem acompanhou o seu percurso sabe do papel interveniente que teve em momentos tão dramáticos e decisivos da História de Espanha como a Guerra Civil (batendo-se, naturalmente, nas fileiras republicanas), a resistência clandestina ao franquismo ou a construção de um movimento sindical combativo e autónomo. Foi militante do Partido Comunista de Espanha desde 1935, e jamais deixou de o ser, tendo-se aliás oposto, em 1991, à dissolução do PCE na Izquierda Unida. Mas foi ao mesmo tempo um dos principais impulsionadores das Comissiones Obreras, a poderosa organização sindical que manteve sempre uma atitude modelar, de combate mas politicamente bastante aberta, unitária sem ser unitarista, de cuja prática se excluía o centralismo e onde o sectarismo não foi a regra mas sim a excepção. Durante décadas, foram «as CCOO de Marcelino Camacho» e estava tudo dito. Ficou-nos um exemplo e os exemplos não são para esquecer.

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                        O Islão na palma da mão

                        Shirin Ebadi

                        Não é verdade que um dicionário seja apenas e só uma obra de referência, daquelas que não se podem ler de seguida e precisam de uma dúvida prévia para que as páginas se abram. Conheço uns quantos que li de cabo a rabo e tenho alguns, relativamente recentes, ali a olharem para mim. Por exemplo, o Dicionário de Mitos (traduzido), de Carlos García Gual, ou o Dictionary of Imaginary Places, de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi. Outro será o Novo Dicionário do Islão. Palavras, Figuras e Histórias, da jornalista Margarida Santos Lopes, que retoma e desenvolve em 450 páginas uma edição anterior, saindo agora com a chancela da Casa das Letras. Num tempo em que falar ou escrever de ou sobre o Islão – muitas vezes de cor – se tornaram práticas banais e bastante frívolas, é sempre bom aprender aquilo que se não sabe, desfazer dúvidas, esclarecer mal-entendidos, estabelecer ligações impensadas, para não dizermos tolices ou pegarmos descuidadamente o fogo a explosivos.

                        Sabe, por exemplo, quem foram Habil e Qabil? Pois foram os filhos putativos de Adão e Eva, mencionados no Corão quando é contada a história do primeiro homicídio. A mesmíssima história que a Bíblia «semita» considerou ter envolvido Caim, o agricultor sedentário, e Abel, o nómada assassino. E tinha conhecimento de que Aflaton foi durante muitos anos ensinado nas escolas corânicas (trata-se, ora vejam lá, do nosso velho conhecido Platão). E que o Corão tem apenas 90 versículos sobre questões legais, sendo a maioria das determinações da shariah incorporada posteriormente por «teólogos muçulmanos». E que na segunda metade do século XIX o escritor egípcio Qusim Amin publicou dois best-sellers, A Libertação das Mulheres e A Nova Mulher, nos quais defendia a abolição do véu? E que Shirin Ebadi, a iraniana que foi a primeira muçulmana a receber o Nobel da Paz, viu o valor do prémio ser retirado da sua conta bancária pelas autoridades de Teerão? Aprende-se muito, de facto, como este Novo Dicionário. Editado com um prefácio de Jorge Sampaio, que não se esquece de o qualificar, com propriedade, como instrumento «em prol do reforço das nossas democracias multiculturais e de uma cultura de tolerância e paz».

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                          Sakharov-2010

                          Guillermo

                          Pela terceira vez em apenas oito anos, o Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento foi para alguém que nasceu em Cuba. Não vou fazer aqui de ingénuo e dizer que a atribuição do galardão não depende de uma agenda política. Claro que depende. Mas isso não será em si um mal, sobretudo quando as razões invocadas para as escolhas não se prendem com as convicções pessoais dos premiados mas sim com a sua luta pelo direito de todos a poderem proclamá-las, sejam elas quais forem. Como anuncia o site do Prémio, este recompensa, tão-somente, «personalidades excepcionais que lutam contra a intolerância, o fanatismo e a opressão».

                          Em 2002 foi Oswaldo Payá Sardiñas, fundador e organizador do Projecto Varela, destinado a reunir, baseado na própria constituição cubana, as assinaturas necessárias para sugerir ao governo algumas mudanças legislativas. Em 2005 foram as Damas de Blanco, o grupo de mulheres que luta diariamente pela libertação dos seus familiares presos por motivos estritamente políticos. Agora foi a vez de Guillermo Fariñas, o activista, psicólogo e jornalista independente que se tornou um dos mais conhecidos dissidentes cubanos, quando, com apenas 23 anos, iniciou greves de fome para protestar contra os excessos do sistema monopartidário. Aquilo que impressiona nestes casos é o facto de nenhuma das figuras premiadas se constituírem como opositores declarados do regime, nenhuma delas exigir o fim do «socialismo» cubano, limitando-se a pedir que ninguém seja punido por proclamar aquilo que pensa.

                          Tão simples quanto isto. E, no entanto, tão difícil de aceitar por um regime violento mas inseguro, que só pode ter medo do seu próprio povo para o manter assim amordaçado. Arruinando por isso os vestígios de prestígio e de simpatia – no passado recolhidos nos mais diversos quadrantes de opinião dispersos pelo planeta, e não associados apenas, como hoje, a grupos bem identificados de indefectíveis – vindos ainda daquele tempo em que representava um sinal de esperança na construção de uma ordem mais justa, mais solidária e mais democrática. Outro tempo.

                            Atualidade, Democracia, Opinião

                            Entretanto na China

                            Na mina de carvão de Jin Hua Gong

                            O drama dos 33 trabalhadores da mina de ouro e cobre de San José, no deserto de Atacama, não pode esgotar-se no seu final feliz. Porque se encontra ligado às sempre difíceis condições de trabalho de uma das mais antigas ocupações operárias. Uma profissão cravada de enormes riscos, tremendamente insalubre, com duras cadências e geralmente muito mal paga, mas por isso mesmo marcada por um companheirismo profundo entre a generalidade dos que nela passam a maior parte da vida e dela fazem o seu ganha-pão. Aliás, o movimento operário sempre teve entre os mineiros uma das suas alas mais combativas, radicais e solidárias e não foi por acaso que uma das mais tocantes imagens que ontem passaram em algumas televisões foi a de dois mineiros australianos, homens maduros que já viveram um drama análogo ao dos chilenos e, durante um directo, foram incapazes de conter os soluços de comoção diante das experiências vividas pelos seus camaradas do outro lado do Pacífico.

                            Vale a pena, por isso, lembrar neste momento de alegria a situação catastrófica dos mineiros chineses, com índices de sinistralidade e de mortalidade – associados a condições de trabalho e salariais miseráveis – verdadeiramente inconcebíveis. Estudos recentes apontam para cerca de 1.000 (mil, não é engano) mortos por ano, correspondendo a 80% do número de fatalidades ocorridas em todo o mundo quando a produção mineira da China é apenas de 35% da global. Em 2006, e de acordo com os números oficiais, o número de mortos foi mesmo de 7.500. Um acidente praticamente em cada 7 dias, a maior parte sem referência nos meios de comunicação e nenhum deles com um décimo da atenção mediática dada ao acidente de San José. Será de recordar estes dados aos responsáveis do partido político português que calam os crimes diários praticados na China contra os trabalhadores mas se preocupam tanto com a atribuição do Nobel da Paz ao activista dos direitos humanos Liu Xiaobo. É que uma sua posição de denúncia, a ser feita na devida altura e sem rodeios, seria por certo um gesto internacionalista capaz de «contribuir para a afirmação dos valores da paz, da solidariedade e da amizade entre os povos». Passe a expressão que de há muito trataram de tornar inócua.

                              Atualidade, Democracia, Olhares

                              Mais vento de Leste

                              Liu Xiaobo

                              São escassas mas vão chegando. Outra boa notícia para a luta pela defesa dos direitos humanos na China: depois da concessão do Prémio Sakharov de 2008 a Hu Jia, foi agora a vez de o Prémio Nobel da Paz de 2010 ser atribuído ao activista e dissidente Liu Xiaobo. Liu, um dos principais dirigentes da luta estudantil que em 1989 conduziu aos acontecimentos de Tienanmen, encontra-se a cumprir uma pena de onze anos de prisão por ter sido um dos autores da Carta 08, um manifesto a favor da liberdade de expressão e de eleições multipartidárias. Para os impenitentes autocratas de Pequim a entrega do prémio a Xiaobo é «uma obscenidade». Venham mais.

                                Atualidade, Democracia

                                Companheiro Mario

                                Mario Vargas Llosa

                                Comecei a ler Mario Vargas Llosa sensivelmente pela mesma época em que comecei a ler Gabriel Garcia Márquez. No entanto, os nossos primeiros encontros não foram fáceis. A Cidade e os Cães e a Conversa na Catedral, com os quais me estreei, foram de uma leitura bem mais sofrida do que a do agora ultra-canónico Cem Anos de Solidão, de Márquez. O primeiro dos romances, para ser muito sincero, por causa de um homoerotismo latente que impressionava qualquer rapaz provinciano cheio de preconceitos como eu era, o segundo pelo grau de elaboração formal para a qual não estava preparado. Llosa e Márquez eram amigos nessa época e a vida e a ética política foram-nos depois distanciando, mas para mim a separação foi sendo construída, a partir dali, de uma outra forma. Enquanto os livros do peruano continuaram a surpreender-me pela versatilidade, os do colombiano passaram a saber-me sempre mais ou menos ao mesmo. Continuaram lado a lado nas estantes cá de casa – ainda lá estão, estou a vê-los daqui – mas fui-os colocando mentalmente em dois mundos cada vez mais opostos.

                                Devo dizer que da actividade política de Llosa como reformista «do centro» nunca me senti propriamente próximo, ainda que na longa noite da América Latina dos ditadores e das ditaduras esses qualificativos tenham adquirido sempre um sentido razoavelmente diverso daquele que, agora como na altura, lhes atribuímos aqui na Europa. Mas os seus ensaios e artigos de opinião desde há muito que o redimiram desses ímpetos liberais que podem sempre provocar, é também o meu caso, um certa alergia a muitos dos seus mais indefectíveis leitores e admiradores. Penso agora, convictamente, que parte substancial da grandeza de Vargas Llosa se encontra igualmente – a par do que vai compondo com a sua caixa de ferramentas de romancista – no constante trabalho no campo da não-ficção, indiciador de uma capacidade notável e permanente para dialogar criticamente com o mundo. Combatendo na vertical, e não poucas vezes com custos pessoais, pela liberdade do indivíduo e da palavra. Contra Pinochet ou Castro, Bush ou Bin Laden.

                                A Academia sueca atribuiu-lhe agora o Nobel da Literatura de 2010. Foi dito esta manhã que «pela sua cartografia das estruturas do poder e as suas imagens mordazes sobre a resistência, a revolta e a derrota individual». Entendo a declaração como um elogio associado a um Mario Vargas Llosa integral. Não apenas o grande romancista, mas também o defensor da fala livre e dos direitos humanos. Por isso, e pela primeira vez em bastantes anos, me senti feliz quando soube quem ganhara o prémio. Um prémio político? Espero bem que sim. Não só, mas também.

                                [Os 10 melhores links para entender Mario Vargas Llosa segundo El País.]

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