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O professor de latim

«Quosque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? Quam diu etiam furor iste tuus nos eludet?» («Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência? Até quando teremos nós de suportar o teu escárnio?») Lembrei-me hoje, por via de uma daquelas figurinhas que nos cabem na administração paroquial ou continental da coisa pública, do velho professor de latim e do seu Cícero. Abria muito os braços, e mais ainda as mãos, e recitava de cor parágrafos completos da agastada e furiosa Oratio in Catilinam. Com tal ênfase que fechava sempre a última frase num violento ataque de tosse. A seguir acendia um cigarro Porto, produzia sucessivos anéis de fumo, e calava-se durante dois ou três minutos enquanto nos recompúnhamos dos efeitos da onda de choque verbal e do mais puro terror. Pensando no prazer que daria responder-lhe na mesma moeda.

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    Apontamentos, Etc., Olhares

    As últimas palavras de Nelson

    Nelson

    De Horatio Nelson (1758-1805), o almirante britânico que derrotou a esquadra franco-espanhola na batalha de Trafalgar, apesar de nela haver perdido a vida – confirmando então uma supremacia da Royal Navy que haveria de manter-se por mais de cem anos – contam-se pelo menos três versões, alegadamente testemunhais, daquelas que terão sido as suas últimas palavras. De acordo com o cirurgião William Beatty, que o assistiu nas últimas horas, terá repetido insistentemente, até perder a consciência: «Thank God I have done my duty». Já Alexander Scott, o capelão do seu navio-almirante, assegurou que Nelson terá dito antes: «Drink, drink. Fan, fan. Rub, rub». Por fim, alguns dos presentes contaram em algumas ocasiões que, referindo-se a Thomas Hardy, capitão do Victory e seu grande amigo, terá exclamado: «Kiss me, Hardy!». Jamais se conhecerá a verdade, mas qualquer das variantes serve para ler de diferentes modos a biografia e a personalidade de Lord Nelson. Podemos assim optar por um dos desfechos e, em função dele, reescrever todo o enredo.

      Apontamentos, Devaneios, História

      A «incidência contributiva»
      segundo o Xerife de Nottingham

      No mito de Robin dos Bosques o Xerife de Nottingham era o executante local das exações fiscais determinadas pelo príncipe João, o usurpador do trono do bom mas desaparecido rei Ricardo. Como sabemos que os mitos são sempre uma representação formal de atitudes humanas consagradas pela repetição, não é difícil encontrar, muitos séculos depois do seu desaparecimento, pequenos e médios xerifes que são fiéis continuadores da pura maldade aplicada em nome de quem manda «porque pode».

      Falo apenas de ilegalidades praticadas arbitrariamente pelos executantes do Estado. Por exemplo, da forma como, recentemente, numerosos contribuintes portugueses foram forçados a aguentar as consequências de execuções fiscais e a pagar coimas por uma ausência de pagamento de impostos devidos da qual não haviam sido previamente informados. Simplificando: não se avisa um bom número de pessoas que está devedor e assim, através do pagamento da inevitável multa, aumentam-se exponencialmente as receitas do Estado. Presumo que tal comportamento valha, aos xerifes espertalhaços que o conceberam e aplicaram, uma merecida comenda. Ou, no mínimo, um louvor. (mais…)

        Apontamentos, Atualidade, Devaneios

        Num filme neorealista

        Enzo Staiola (Bruno) e Lamberto Maggiorani (Antonio)
        em «Ladrões de Bicicletas», de Vittorio de Sica (1948)

        Na minha escola primária, nós, as crianças – apenas rapazes –, dividíamo-nos em quatro grupos que se distinguiam pelos pés. Um, pequeno mas muito expressivo, chegava à escola descalço, mesmo de inverno, usando sacos de sisal para se proteger da chuva e do frio da manhã, e todos os colegas sabiam que aqueles eram os filhos dos pobres, sobrevivendo no limiar da miséria e da caridade. No extremo oposto, outro grupo, igualmente pequeno, usava sapatos de sola de cabedal, sempre a reluzirem e com aspeto de novos: era o dos que vinham de famílias com mais posses e melhores ligações, ou que se faziam passar por tal. No meio, um segundo conjunto de alunos usava calçado velho, de baixa qualidade, por vezes tamancos de madeira. Compunham-no os filhos da gente humilde mas aprumada, que fazia, sabiam Deus e o Diabo como, por se manter à tona, no rebordo da «pobreza honrada». E havia ainda um terceiro, ao qual eu pertencia, naquela escola talvez o maior de todos eles, que era composto pelos mais novos membros de uma classe média que via na poupança a única forma de encarar um futuro sempre imprevisível. Usávamos sapatos apresentáveis aos domingos e dias santos de guarda, que as nossas mães engraxavam com atenção e carinho, reservando para outros dias o calçado mais usado, reforçado com «protetores», pequenas peças de ferro ou de chumbo que serviam para prolongar a vida das solas e das capas dos saltos. Ontem, pela primeira vez em muitos anos, encontrei na vitrina de uma velha loja «protetores» à venda. Fiquei na dúvida sobre se seriam um vestígio arqueológico recuperado ou um sinal dos tempos. Ou se sempre ali estiveram e só agora, condicionado pela realidade, eu reparei neles.

          Apontamentos, Cinema, Memória

          Nem mesmo aos piratas

          Sinto algumas vezes pelos piratas informáticos uma simpatia idêntica àquela que tenho pelos ladrões do mar. Imagino-os sempre a navegarem num oceano sem lei, procurando, pela via insidiosa do ataque inesperado, bárbaro mas de peito aberto, regado a rum ou cerveja, noitadas e desespero, a vingança frente aos poderosos que os condenaram à errância, à margem e à solidão. Vejo-os pois, no fundo, como depositários de uma certa nobreza, pilhando o oiro dos galeões porque os seus proprietários o roubaram primeiro, impondo, sobre o destino das ondas (ou do éter), um padrão moral que faz deles arautos desafinados, mas arautos, de uma certa justiça poética. Custa-me por isso vê-los rasteiros, velhacos, quando descem ao nível dos que desejam combater. Foi o que me pareceu encontrar na iniciativa dos hackers que há dois dias piratearam a página oficial do Partido Socialista, servindo-se do ato para um ataque vil, grosseiro, pessoal, e não para o combate ilegal mas frontal e com um objetivo percetível. Darem-se a tanto trabalho, a tão arriscada abordagem, para mostrarem «o extrato de uma conta ligada à família de José Sócrates» é como tentar matar alguém pelas costas com um tiro de pólvora seca. Sem honra ou sentido. Tal inépcia não se pode perdoar. Nem mesmo aos piratas.

            Apontamentos, Olhares, Opinião

            Mãe-Rússia

            A sociedade russa tem um problema sério com a democracia. Mesmo tendo perdido parte do eleitorado, o Partido Rússia Unida, que apoia o sinistro Putin, obteve 49,6% dos votos expressos nas eleições legislativas para a Duma. Em segundo lugar ficou o pré-jurássico Partido Comunista, de Guennadi Ziuganov, que alcançou 19,7%. E em terceiro, com 12,2%, o Partido Liberal Democrata, na verdade da extrema-direita nacionalista, dirigido pelo «Le Pen russo», Vladimir Jirinovski. É só fazer as contas: 81,5% dos votantes – e a estes poderiam ainda somar-se algumas franjas vindas de outras forças minoritárias – aspiram a um governo monolítico e autoritário, revelando um menosprezo olímpico pelas virtualidades de uma democracia que, na realidade, jamais conheceram. Intimida constatar que uma boa parte do equilíbrio mundial passa ainda por este universo opaco, administrado por bandos de déspotas ou de candidatos a tal atividade. E que, no país onde, inventado por Piotr Boborykin, nasceu o conceito romântico de intelligentsia como espaço social para a atividade crítica e criativa dos intelectuais, a liberdade é ainda, fundamentalmente, uma quimera, um horizonte literário deixado ao abandono pelos cidadãos. Ou pela esmagadora maioria deles. Foram muitos, muitos anos de «engenharia das almas».

              Apontamentos, Atualidade, Opinião

              O fim da grande máquina

              Percebi hoje como carrego comigo qualquer coisa de excessivamente antigo ao receber, através da crónica mensal que Pedro Mexia escreve para a revista Ler, a informação de que a empresa Godrej & Boyce, de Bombaim, última fabricante em atividade de máquinas de escrever, resolveu «descontinuar» o produto. Apesar de já terem passado duas décadas e meia, ainda recordo o tormento que foi passar a limpo na minha Olivetti portátil azul, para entregar na manhã seguinte, as duzentas e tal folhas da tese de mestrado – ou melhor, do seu equivalente – sobre as práticas ostentatórias do poder absoluto no tempo do rei João V. Particularmente daqueles momentos, ao chegar ao fim da página, em que verificava não caberem já as notas de rodapé e tinha de começar tudo de novo. Antes disso, muito antes, na poderosa Underwood do meu avô (ou seria uma Royal?), a escrita «a limpo» em teclado HCESAR dos primeiros textos públicos destinados ao pequeno jornal local. E antes ainda, no mesmo engenho, o preenchimento, por encomenda do meu pai que mantinha um biscate suplementar como correspondente bancário, dos avisos destinados aos clientes devedores nos quais se comunicava a proximidade do vencimento dos títulos de crédito enviados pelo sacador. É estranho mas até dessa tarefa monótona sinto, agora que desapareceu para sempre a possibilidade de a repetir, uma certa falta. Daquele barulho tac-tac tac-tac, sim, e do caráter tátil da ação. Mas, mais ainda, do aroma único, para mim aroma a infância, do óleo que lubrificava a engrenagem e do rolo da fita que sujava os dedos e marcava o papel a vermelho e a negro.

                Apontamentos, Memória, Olhares

                O Pai Natal não paga portagens

                Percorro as boulevards do hipermercado suburbano e confirmo o que havia intuído ao longo dos últimos meses: é já nítida a redução do volume e da qualidade da oferta comercial, particularmente nos artigos supérfluos (telemóveis, acessórios, joias, álbuns ilustrados, sistemas de som e imagem). Mas igualmente em ramos muito mais difíceis de contornar, como o vestuário, os materiais para reparações domésticas ou mesmo a alimentação. Os livros, vivendo no país em que vivemos, esses continuam mais ou menos na mesma, comprados fundamentalmente pelos lunáticos que os consideram bens de primeira necessidade. Impressiona, no entanto, verificar o florescimento contínuo das lojas de brinquedos e de roupa para crianças. Serão elas, com toda a certeza, as últimas a sofrerem as consequências da recessão. Afinal tudo fazem sempre os pais e os avós para conservarem os seus meninos no mundo de aventura e ilusão dentro do qual nada de muito mau ou tormenta alguma parecem acontecer. E apesar de ser funcionário público o Pai Natal ainda não paga portagens ou desconta para o IRS. Pelo menos por enquanto.

                  Apontamentos, Atualidade

                  Ceaucescu em solo absoluto

                  Nicolae Ceaucescu e Kim Il-sung em 1980

                  Só esta semana vi as três horas ininterruptas da Autobiografia de Nicolae Ceaucescu, o filme de Andrei Ujică, realizado em 2010, que explora a imagem do ditador romeno numa montagem que recorreu a mais de mil horas de películas, em grande parte não utilizadas pela propaganda, existentes nos depósitos da Televisão Nacional Romena e do Arquivo Nacional de Bucareste. A expectativa de assistir a um desfile documentado de crimes de Estado e de maquiavelismo prático frustrou-se em poucos minutos. Mas aquilo a que pude assistir não foi menos violento e de certa maneira penoso. Seguindo a voz e o olhar que são os do próprio Conducator, os da construção do seu universo pessoal ao longo de duas décadas e meia de autoridade incontestada, percebemos como é fácil fabricar uma versão completamente distorcida da realidade quando o poder absoluto, a interminável bajulação, a fantasmagoria de uma conceção unilateral do mundo e da história, afastam da realidade o dirigente que vive exclusivamente dentro das suas margens, projetando-o num abismo dourado do qual já não pode sair. E percebemos também a lógica ilógica da construção de um discurso dogmático e previsível, projetado como voz do povo e em nome do povo, ao mesmo tempo que o transforma numa amálgama de escravos empobrecidos e mudos. Um documentário que assusta e no entanto elucida.

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                    Apontamentos, Cinema, História, Olhares

                    Dia da vergonha

                    Deixei na altura exata uma nota de indignação no meu mural do Facebook, mas fica aqui um registo menos efémero. Hoje, 30 de Novembro de 2011, ao final da manhã, quando a maioria PSD-CDS aprovou em votação na Assembleia da República o Orçamento para 2012, aquele que marca a pauperização acelerada de milhões de portugueses, o princípio do derrube daquilo que resta do Estado social e a submissão aos ditames políticos do eixo franco-alemão, fê-lo em euforia, batendo as palmas após a divulgação do resultado. Um vergonhoso sinal de insensibilidade e de traição que define quem o praticou.

                      Apontamentos, Atualidade

                      O peso da memória

                      Não sou antifadista. Aliás, o Vasquinho da Anatomia, d’A Canção de Lisboa, era-o – «Morra o fado!», chegou a gritar do fundo da alma – e acabou por ser chamado à razão, passando, por via da redentora mudança proporcionada pelo estudo e pela moderação, da condição de degenerado à de doutor. Como aconteceu com o estrangeirado moço Luís, n’O Feitiço do Império, de António Lopes Ribeiro, no momento em que trocou os prazeres tóxicos da jazz-band e a namorada americana Fay Gordon, que fumava e detestava Portugal, pela «canção nacional» e o amor de Mariazinha, esse símbolo casto, modesto e compassivo da «portugalidade» no feminino. Mas que tanto fado me reconduz ao passado, lá isso, perdoem a franqueza, reconduz. Admito que estejamos a precisar de qualquer coisa que nos sacuda a autoestima, mas não exageremos. «Viva o fado!», muito bem, levanto também o meu copo, mas não façamos dele o hóquei em patins que nos falta. O fado não merece que lhe façam isso.

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                        Apontamentos, Atualidade, Memória

                        «Imaterial», o tanas

                        Diz-se que fado vem de fatu, a palavra latina para destino. E que é fado dos portugueses cantar o fado. Fado é assim aquilo que é fatal, o que necessariamente tem de acontecer. A índole plangente e fatalista da canção de Lisboa não pode assim ser outra, porque, com ou sem faina de renovação, fado será sempre fado. O resto, bem, o resto é invenção de escriturários, engomadinhos, temerosos de sangue, lágrimas e cheiro a vinho tinto. O que cantaram em tempos certos estudantes de Coimbra – e que uns quantos repetem, até à náusea, sem ousadia ou inventiva – não era fado mas balada, tristonha e lamecha, chansonette de quem não sabia muito bem que coisa seria espetar, apenas por paixão ou desfastio, uma faca nas tripas de alguém. E meter toda a raiva, todo o sofrimento e danação, numa só cantiga.

                        A Amália que tantos lembram não era bem fado, pois cantava com uma elevação, olhar altivo e queixo levantado que não eram próprios do fado. Talvez fosse mais canto lírico. Fado-fado era a Severa, a desgraçada, ou o Marceneiro, com a voz a precisar de uma colher de mel coado, talvez a Hermínia quando estava com os copos, talvez Maria da Visitação, Zé Porfírio, Ginginhas, e outros malandros igualmente desconhecidos do excelentíssimo público. Fado era assim, e assim continua, o que fazia quem puxava pela voz quando tinha ganas de puxar da pistola. Ou quem só queria carpir a infelicidade sobre o ombro de alguém. Por isso pode servir, agora que nos empurram para uma nova vida de condenados, como choro e maldição face ao destino que não conseguimos fintar. Ou então, de faca na mão (ou na liga), como canção de combate. «Imaterial», o tanas.

                        Variação (em ré menor) sobre dois fragmentos de um artigo que publiquei em 1996.

                         

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                          João Martins Pereira | colóquio-evocação

                          JMP na Alemanha, 1958
                          Na Alemanha, em 1958

                          Para os amigos, os seus leitores, os colegas de profissão e os companheiros das muitas causas com as quais se foi envolvendo, João Martins Pereira (1932-2008) permanece como uma referência da oposição de esquerda ao Estado Novo, da resistência às agressões do capitalismo e, já em plena democracia, da crítica aguda e inteligente à política oportunista e fulanizada. Engenheiro de formação e de profissão, ensaísta atento, governante efémero, jornalista acidental, escritor de causas, estudioso da história do capitalismo português e de economia industrial, foi também um independente obstinado, um marxista heterodoxo, um sartreano radical.  E sempre um pensador inconformista, empenhado numa intervenção pública que entendia como igualitária e democrática.

                          É deste português exemplar, e dos temas que o preocuparam e com os quais persistentemente se envolveu – muitos deles confluindo com o nosso presente –, que tratará o Colóquio-Evocação «João Martins Pereira e o seu, nosso tempo», a ter lugar nos dias 25 e 26 de Novembro, nesta sexta-feira e neste sábado, no Auditório do Picoas Plaza, em Lisboa. A organização é do Centro de Estudos Sociais e de Centro de Documentação 25 de Abril e integrará uma pequena mas significativa exposição. Pode consultar aqui o programa completo e a lista dos intervenientes. E recolher um flyer para divulgar ou imprimir. Pode ainda ler a partir daqui dois posts saídos neste blogue há cerca de três anos.

                            Apontamentos, Heterodoxias, Oficina

                            Teimosia e ilusão

                            Mantenho quase sempre um grande arco de acolhimento em relação à diversidade das opiniões e das escolhas dos outros. Partilho com Camus a decisão de, se um dia for criado o partido dos que não sabem se têm razão, poder ser o primeiro a inscrever-me. Mas essa capacidade de aceitação não chega ao ponto – salvo nos casos, cada vez em maior número, em que as condições de sobrevivência do posto de trabalho e a coação patronal o exijam – de pactuar sem alguma mágoa ou ressentimento com quem não adere a uma greve como esta. Por isso, neste dia de Greve Geral, e uma vez que no meu local de trabalho não se organizam piquetes, evitarei passar por espaços nos quais laboram pessoas com quem mantenho uma relação diária próxima e afável. Acontece que, nas atuais circunstâncias, se as descubro de espinha curvada, «amarelas», aceitando sem resistir a queda coletiva no abismo que leva ao abismo, jamais voltarão para mim a ser rigorosamente as mesmas. Por isso, para ser franco, prefiro não saber da sua escolha. Desta maneira, e até prova em contrário, continuarei a confiar na sua sageza, coragem e sentido de justiça.

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                              Manual para manetas

                              Parece o esboço de um sketch perdido dos Monty Python. Mas não é. Ao folhear um recém-traduzido livro de Peter Sloterdijk, deparei com uma estranha referência bibliográfica. Em 1915 foi publicado na Alemanha um manual para manetas (esqueçamos a contradição nos termos), que foi preciso reeditar no prazo de um mês, dado o aumento da procura determinado pelo crescimento exponencial dos mutilados de guerra. Na segunda edição da obra, constatava o seu autor, Eberhard Von Künzberg, com um mal disfarçado alvoroço, que a afluência de novos manetas chegados da frente viera dar «um novo impulso aos antigos manetas». «Como é favorável a situação do mutilado de guerra! Graças à sua pensão está para sempre ao abrigo da necessidade.» Digamos, passe o caráter sinistro da comparação, que se pode antever no atual aumento do número de pobres e no alijar das responsabilidades do Estado o imparável incremento, a médio prazo, das instituições de caridade capazes de assegurarem um prato de sopa certo e seguro. Há um ano, o paralelismo pareceria um absurdo ou uma brincadeira de mau gosto. Agora ficamos a pensar se não corresponde a uma premonição.

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                                Os cómicos

                                Jacques Tati
                                Jacques Tati em «Play Time»

                                Italo Calvino disse uma vez de Groucho Marx que o seu sucesso se deveu ao facto de, «enquanto consumado viveur e conquistador irresistível», se apresentar sempre com os atributos exteriores do prestígio, da autoridade e do saber viver. Fatores que terão ajudado a manter a relação de cumplicidade com um público que lhe permaneceu sempre fiel. Como acontece com todos os cómicos que através de performances  burlescas partilham com quem os observa um sentimento de conivência para com a sua forma oportunista e habilidosa, individualista e sem grandes preocupações morais, de representar a vida. É o que se passa com atores como Fernandel, António Silva, Louis de Funès, Jerry Lewis, Mel Brooks e Rowan Atkinson. Com eles, a ironia é remetida para um limiar estreito e incerto, muitas vezes invisível. Talvez por isso tenha preferido sempre um outro género de humor. O dos clowns pobres, grandes solitários, histriões de roupa amarrotada e paixões impossíveis, de semblante triste e porta-moedas vazio, que não riem ou quase não riem, como Buster Keaton ou Chaplin, Totó ou Jacques Tati, Cantinflas ou Woody Allen. A essência da comicidade – tão intensa que pode levar às lágrimas – não se encontra aqui no espalhafato ou no gag inusitado, mas nas virtualidades subversoras de um modo sóbrio e desastrado, desolado e quixotesco, de usar o humor como meio de sobrevivência e estilo de vida. Os Monty Python não entram nestas contas pois o nonsense pertence a outro planeta.

                                versão 2.0 – original de 2006

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                                  O fim da democracia

                                  Deveria estar contente. Ou pelo menos agradecido às circunstâncias. Afinal lá caiu Berlusconi. Como se estatelou Papandreou. E antes deles tombaram Sócrates, Cowen ou Brown. Quanto a Zapatero, seguirá em breve para uma vida calma de conferencista. Não os comparo, embora com nenhum deles tenha simpatizado. Em particular com o abjeto Cavaliere, naturalmente. Mas é assustador olhar a vaga de políticos trocados por «reputados técnicos» ou por revanchistas que apenas pretendem reconduzir o Estado ao papel de polícia mau. De governantes eleitos com programas e com um contrato social, substituídos por administradores da coisa pública com formação de manga-de-alpaca e espírito de moralista. De humanos pecadores por asséticas santidades. Neste sentido, a queda do pequeno Napoleão italiano, e a forma como caiu, são até um mau sinal. Mais um. Pois não foram o povo e a democracia que o derrotaram. Foi a ditadura, invisível e pesada, do dinheiro e da finança.

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                                    Mudar o destino

                                    Destino

                                    Na conhecida obra de Diderot, o fatalista Jacques insiste em que tudo aquilo que de bom e de mau nos acontece se encontra escrito algures «lá no alto». As teorias deterministas partilham desta certeza ao tomarem o ser humano como peça de um mecanismo que é incapaz de controlar. Trata-se de uma forma mais elaborada dessa mesma ideia de destino que com menor dose de especulação os ultrarromânticos reconheciam como dona da vida, «marcando a hora» dos acontecimentos decisivos: um encontro único, um momento de sorte (que assim não seria fruto do acaso), o instante preciso da traição, da doença e da morte. Sabemos que esta é a forma mais fácil de encontrar uma explicação para aquilo que parece inexplicável, de encontrar uma certeza, uma âncora, na corrente do incerto. De certa maneira, é esse também o fundamento das religiões da aceitação e do suplício. Nas circunstâncias em que vivemos, parece pois inevitável um retorno em força deste princípio: perante uma realidade que todos os dias volteia e revolteia, e já ninguém se atreve a prever ou a tentar explicar, será quase natural um regresso das conceções fatalistas da vida. Bom para os fadistas, portanto, mas mau para aqueles que procuram contrariar a desgraça. A quem compete então inverter o que aparenta ser irreversível. Bater-se para mudar o destino. Aceitando, com o cantor Godinho, que «antes o poço da morte que tal sorte».

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