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A lei seca da bolacha Maria

De acordo com um artigo saído hoje no Público, a Direção-Geral de Saúde vai recomendar às escolas que os alunos deixem de ter à vista gulodices imundas como pastéis de nata, queques, bolos de arroz, croissants ou bolachas Maria. Apesar de não saírem dos bares, elas saem dos expositores, que ficam então reservados para os alimentos ditos «mais saudáveis», como sandes com verdura, leite branco, iogurtes sem edulcorantes, água ou fruta. Segundo a mesma peça, há também alguma comida fora da categoria dos doces que passará à condição de pecaminosa, como os malvados croquetes, os perigosos pastéis de bacalhau e as peçonhentas sandes de chouriço ou mortadela. O estranho, porém, é que os alunos-junkies poderão continuar a comê-las desde que as peçam, mais ou menos à socapa, ao dealer de serviço ao bar. Ninguém informado e no seu perfeito juízo nega que existam produtos alimentares que não devam ser oferecidos em doses exageradas a crianças e jovens sem discernimento suficiente para saberem o que é bom ou mau para a sua saúde, mas também é verdade que grande parte desses hábitos é adquirida em casa e que existe um limite razoável para separar o veneno daquilo que não passa de um pequeno pecado. Tenho grandes recordações de infância que incluíam orgias de portuguesíssima bolacha Maria (com muita manteiga ou tiras de marmelada) e os fantásticos pastéis de bacalhau feitos pela minha mãe. Custa-me imaginar gerações futuras que do seu tempo de escola lembrem sobretudo bebedeiras de leite branco e bacanais de pão integral com alface.

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    Dar a cara

    Não gosto de esconder a cara ou de trocar de nome para não ser reconhecido. Quando esta atitude se torna um hábito, associo-a sempre ao medo, ou então à perfídia, a formas ínvias de pensar ou de falar sem assumir a responsabilidade do que se pensa ou se diz. Já usei um nom de guerre, conspirativo, e com ele procurava camuflar a minha identidade. Aconteceu antes da democracia, quando fiz parte de uma organização política clandestina que combatia o fascismo e o colonialismo. Servi-me depois, episodicamente, de um pseudónimo literário, com o qual publiquei alguma poesia e dois ou três contos. Fiz ainda pequenas investidas em blogues, servindo-me ali de nomes inventados, mas mais como ensaios de heteronímia que como processos para dizer escondido o que supostamente, seria incapaz de pronunciar às claras. E usei ainda um ou outro nickname na Internet, sempre associado nos registos ao apelido e ao sobrenome inscritos no Cartão de Cidadão. Repugna-me o anonimato sem um motivo sólido que o justifique, as máscaras ou os óculos que escondem a expressão, as vozes que se alteram para camuflar o seu proprietário, os anoraques que tapam o rosto, o cabelo e os olhos, dando a quem deles se serve uma sensação de impunidade. A coragem é ainda uma atitude socialmente apreciada, e isso deveriam saber os adeptos ou companheiros de viagem dos grupos que, sob um regime injusto, mas que não segue os métodos das ditaduras, apenas se manifestam na sombra, ou escrevem sem dar o nome, sem assumir as razões e as consequências das suas escolhas. Ao dar o nome e a cara, darão um rosto mais humano e um sentido ético mais acentuado à sua luta, às suas razões, e ficarão mais próximos daqueles em cujo nome tomam a palavra. Elevando a sua causa perante o cidadão comum e elevando-se a si próprios também.

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      A piedade dos outros

      Fotograma de ‘Alceste à bicyclette’.
      Filme de Philippe Le Guay (2012)

      «Há um cego que prefere sair à noite, entre a uma e as quatro da madrugada, com um amigo também cego. Porque está seguro de não encontrar ninguém nas ruas. Se vão de encontro a um candeeiro da iluminação pública podem rir-se à vontade. E riem. Durante o dia há a piedade dos outros que os impede de rir.» (Albert Camus, Carnets I, ed. 1962)

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        Falar com os becos

        Paul Celan com Nani e Claus Demus
        Londres,1955

        Falar com os becos sem saída
        ali defronte,
        da sua
        expatriada
        significação –:

        mastigar
        este pão, com
        dentes de escrita.

        Paul Celan – de A parte da neve
        (Trad. de João Barrento e Y. K. Centeno)

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          Deus lhe perdoe

          Viajo no tempo e tento concentrar-me na época em que deixei a Igreja católica apostólica romana. Até à altura em que as dúvidas apareceram, tinha sido um fiel convicto, praticante, tão seguro da minha crença e dos seus dogmas que cheguei uma vez a zangar-me com os meus pais por estes se afirmarem católicos e não frequentarem a Santa Missa. Aos 14, porém, comecei a sentir-me desconfortável e rapidamente encontrei duas razões para me afastar dos rituais, primeiro, e depois da fé. A primeira razão teve a ver com a recusa de uma retórica oca, repetitiva e indecifrável que nada me segredava: as prédicas aborrecidas que se limitavam a frase feitas sobre «o fim dos tempos» que eu não conseguia vislumbrar que coisa fossem, sobre uma «Salvação» que não percebia do que me iria afinal salvar e sobre o Espírito Santo, chamado de «Paráclito» sem que ninguém me explicasse que esta era a palavra grega para «consolador», enchiam-me de tédio. E, pior, nada tinham a ver com as letras das canções dos Rolling Stones, que acima de tudo adorava. (mais…)

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            Era uma vez (na caserna)

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            Quando cumpri os três meses de recruta do serviço militar, apesar de o fazer contrariado habituei-me rapidamente a quase tudo o que tinha a ver com a disciplina e o esforço físico. No entanto, sofria bastante com as noites de caserna. Posso descrever o cenário do horror: 200 mancebos numa espécie de hangar povoado de beliches em ferro e que produzia um eco danado, 50% a ressonar, 20% a escrever cartas às namoradas e 30% a jogar ruidosamente infinitas partidas de king ou de sueca. À luz de velas, obrigatoriamente, já que depois das 22 horas a iluminação era limitada às lâmpadas de presença. Quem, como eu, não tinha sono, não tinha luz para matar o vício da leitura e era hipersensível ao cheiro a estearina queimada, passava horas seguidas de inferno na Terra. (mais…)

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              Os imigrantes

              Nestes dias de trevas que atravessamos a custo, o instinto de defesa reduz inevitavelmente a nossa humanidade. Primo Levi descreveu o modo como, ao terceiro dia de presença em Auschwitz, a generalidade dos prisioneiros esquecera já a dignidade pessoal, o orgulho, os hábitos de higiene e os deveres mais elementares de solidariedade para com os semelhantes, concentrando-se apenas na brutalidade permanente da luta pela sobrevivência. Sem vivermos nesse estádio-limite, o recuo dos mecanismos de assistência pública e a instalação de um ambiente de feroz competição por um pequeno mas raro lugar ao sol, têm-nos aproximado perigosamente desse caminho. Ele é, aliás, visível até por um efeito de omissão: por estes dias, a luta pelo trabalho, a resistência à perda de direitos, a procura de vias de escape por parte da maioria da população, têm transformado centenas de milhar de imigrantes em seres invisíveis e mudos. E no entanto, ainda que mais desprotegidos, ainda que com menos vias de escape, esquecidos por quase todos, eles continuam entre nós, fazendo os trabalhos mais penosos, sendo explorados, humilhados e ofendidos como ninguém mais o é. Mas sem partidos, sindicatos, ativistas, manifestações, jornais ou televisões que lhes valham. Vivendo na sombra, em bairros periféricos, tantas vezes em casebres ou desvãos, no limite extremo do abandono e do medo.

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                Pólvora seca

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                Afinal para que serviu o PCP e o BE combinarem a divulgação simultânea (ressalvando aquele pequeno delay da responsabilidade do fuso açoreano) da apresentação de duas moções de censura ao governo depois de ter corrido, ao som de bandolins, bombos e castanholas tocados por tantas pessoas à procura de uma esperança, um certo júbilo por uma eventual «unidade da esquerda»? E para que serviu acompanhar as mesmas, neste momento, de ataques violentos e cerrados a um PS por tal via supostamente «encostado às cordas»? Neste cenário, a abstenção deste partido, agora proposta pelo seu irresoluto secretário-geral, seria e será inevitável. Mas como poderia deixar de o ser? No entanto, o inevitável não seria evitável com a apresentação de uma moção única que servisse mais para unir a oposição ao governo do que para demarcar fronteiras? E se a sua divulgação pública tivesse avançado num gesto de firmeza e de unidade, mas também de abertura e de humildade democrática? Vivemos um tempo muito mau, muito mau mesmo, para desperdiçar pólvora com tiros nos próprios pés.

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                  A montanha que virá

                  Vitória da Frente Popular em França
                  (1936)

                  Tal como comentou Mark Twain em 1897 no New York Journal, referindo-se às informações que então circularam sobre a sua própria morte, após ouvirmos as declarações de Jerónimo de Sousa e de Francisco Louçã neste início de tarde percebemos que as notícias desta manhã a propósito do nascimento de uma espécie prematura de coligação PCP-BE foram manifestamente exageradas. Como diria o Dr. Freitas, o meu velho professor de latim, evocando com exagerado ênfase, as mãos erguidas ao céu, a Sátira Décima de Juvenal, «Parturiunt montes, nascetur ridiculus mus». Vocês sabem: aquela frase recorrente sobre a montanha e o rato. Quanto à unidade na ação, ela é uma possibilidade e uma necessidade, sem dúvida, mas num quadro detalhado de objetivos e através de uma bem mais vasta conjugação de vontades à esquerda. Nunca decidida apenas na sombra das sedes. Para lá caminhamos, espera-se, velozmente mas sem saltar etapas. Quanto a entendimentos pontuais mais rápidos, venham eles.

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                    O verão invencível

                    Albert Camus

                    «Au milieu de l’hiver, j’ai découvert en moi un invincible été.» «Em pleno inverno, descobri em mim um verão invencível.» Uma das frases sublinhadas de Albert Camus – retirada do ensaio Retour à Tipasa, composto em 1952 – que transporto sempre comigo num recanto seguro. Regresso a ela, como a um tónico, de cada vez que me vejo à beira da rendição. E tudo readquire um sentido pleno, luminoso, combatente.

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                      O incrível Mitt

                      Na New Yorker desta semana, o jornalista Nicholas Lemann conta num artigo biográfico intitulado «Transaction Man» a inacreditável história do primeiro encontro de um importante mórmon de Salt Lake City, Douglas Anderson, partidário dos democratas,  com Mitt Romney, o candidato republicano às presidenciais norte-americanas. Corria o ano de 1968 e Anderson acabara de entrar na Universidade de Stanford. Romney chegara a Stanford cerca de três anos antes, depois de ter viajado por França no seu trabalho como jovem missionário mórmon. Andava Anderson a passear pelo campus quando um estudante mais velho, que ele conhecia mal, lhe dirigiu uma pergunta: «És mórmon?». Anderson respondeu que sim. «E conheces Mitt Romney?». Não, não conhecia. «Mitt Romney é a pessoa mais excecional que alguma vez conheci!». E afastou-se. Pouco tempo depois Anderson descobriu que o desconhecido era o próprio Mitt.

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                        A hora (Cavaco’92)

                        A necessidade de neste domingo não falhar um compromisso, levou-me a ir à Internet para ter a absoluta certeza de que o fim do «horário de verão» não era já neste por estes dias. Fiquei então a saber que a ideia de reprogramar o dia foi lançada em 1784 por Benjamin Franklin, com o objetivo de diminuir o número de horas de escuridão e assim promover a poupança em cera para velas. No entanto o primeiro país a adotá-la oficialmente foi a Alemanha, e só em 1916, durante a Primeira Guerra Mundial, como medida para economizar carvão. Em Portugal, entre 1992 e 1996, quando Cavaco Silva foi primeiro-ministro, a mudança ocorreu de forma ainda mais profunda e a nossa hora foi fixada para ser sempre, ao segundo, idêntica à alemã.

                        O objetivo da sumidade economista que presidia à iniciativa era mudar artificialmente de meridiano de modo a «facilitar as comunicações, os negócios e os transportes internacionais». Sucederam no entanto demasiadas queixas pelo facto da vida real ter ficado desfasada em relação à rota do Sol. No inverno, as pessoas saíam de casa pelas 9 horas da manhã, ainda o astro-rei despontava no horizonte. Já no pico do verão, o céu escurecia por completo apenas depois da meia-noite. Os casos de stress subiram em flecha e as crianças adormeciam durante as aulas. Além disso, provou-se que a poupança de energia que se ganhava ao final do dia se perdia depois com o aumento dos gastos matinais, pois os trabalhadores iniciavam o dia de luzes acesas e depois esqueciam-se de as apagar. Em 1996, com António Guterres, o disparate cavaquista foi corrigido e a hora voltou a adaptar-se aos hábitos e aos horários das pessoas.

                        Adenda – Ah, e não, não foi nesta passagem de sábado para domingo. Será um tanto mais adiante. A 29 de outubro, pelas 2 horas da madrugada, os relógios deverão ser atrasados em uma hora. Felizmente continuaremos desfasados de Berlim.

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                          Contra os loucos no poder

                          Chegámos a um tal ponto na gestão dos negócios públicos e da vida social impostos aos portugueses pelo atual governo, que a contradição principal já nem é a que opõe esquerda e direita, defensores do socialismo e adeptos do capitalismo, burguesia e proletariado, pobres e ricos, novos e velhos, urbanos e rurais, partidários do papel do Estado social ou da primazia da economia de mercado. É, dramaticamente, aquela que separa as pessoas mais ou menos avisadas, de trajetos profissionais erguidos a pulso e escolhas políticas diversas, de uma associação de loucos e de desvairados, gente impreparada e arrivista, sem formação pessoal, humana e muito menos política. Gente de pesadelo que por um conjunto de circunstâncias fortuitas se encontra à frente dos destinos de um país, de uma democracia e de um povo, que se esforça todos os dias por empurrar para esse abismo do qual jamais haverá retorno. Um cenário excecional que requer, e com a maior urgência, medidas também excecionais. O protesto de rua é por isso absolutamente crucial neste processo.

                          «Que se lixe a troika! Queremos as nossas vidas!»
                          Manifestações em todo o país neste sábado, dia 15.

                            Apontamentos, Opinião

                            Estava com o meu povo

                            Não, nunca sob a cúpula de um estranho céu,
                                   E nunca sob a proteção de asas alheias,
                                   Eu estava com o meu povo naquela época,
                                   Lá onde infelizmente o meu povo vivia.

                            Anna Akhmatova – prólogo à edição de 1961 de Requiem (Trad. RB)

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                              Perigo e mistério

                              «A verdade permanece misteriosa, fugidia, jamais conquistada. A liberdade é perigosa, tão difícil de viver quanto exaltante. Temos de caminhar sempre na direção desses dois objetivos de uma forma penosa mas resoluta, seguros da presença das nossas fraquezas no curso de um tão longo caminho.» Palavras de Albert Camus no Discurso de aceitação do Prémio Nobel da Literatura, de Dezembro de 1957.

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                                1918: o ensino técnico na Rússia

                                Lunatcharski na abertura de uma exposição
                                (De um documentário de Dziga Vertov)

                                As extrapolações dos factos e das interpretações da História são quase sempre tão sedutoras quanto perigosas. Servem muitas vezes para conceder legitimidade à ordem do presente, o que raramente produz efeitos benignos. Mas podem também ampliar a experiência do contemporâneo, municiando-a com episódios, atitudes, descobertas, ideias, que do passado podem projetar um eco útil, ou ilustrativo, sobre o presente que nos cabe. Apesar de a nossa vivência ser irrevogavelmente singular, e de cada momento envolver sempre condições próprias, é sempre bom saber que raramente vivemos a completa novidade. Vem isto a propósito de uma descoberta (uma entre muitas outras) produzida durante a leitura de A Peoples’s Tragedy. The Russian Revolution. 1891-1924, um estudo épico, editado em 1997, que foi um dos primeiros do grande e polémico historiador britânico Orlando Figes. (mais…)

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                                  Escrever e ler

                                  Desenho de Patrick Chappatte

                                  «As pessoas não lêem mais…», «…elas escrevem!». Este cartoon ilustra, quase sem ser necessário recorrer à caricatura, uma sensação que muitos de nós, os que lêem muito e desde há muito, com amor e afinco, tem de cada vez que entra agora numa livraria. Demasiados autores, muitos deles de fugaz duração, demasiadas edições, nem sempre bem promovidas, para um público que neste suporte se encontra em retração. E um grande número de «autores» que não lê, ou pouco lê, mas escreve, escreve, escreve, escreve.

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