Eu deveria falar só sobre o Tom Waits, que fez ontem sessenta anos. Mas meto também na jogada o Bruce Springsteen, que os ultrapassou há perto de dois meses. Está escrito no cartão do cidadão que a minha data de nascimento se encontra perigosamente mais próxima da deles do que daquela da qual se pode gabar o Devendra Banhart ou mesmo o Pedro Passos Coelho, e talvez seja por isso que os aniversários de Tom e de Bruce não me façam uma impressão por aí além. Mas já justificam a evocação de dois trajectos inacabados e ainda debaixo da luz dos projectores.
Sempre olhei Springsteen como vestígio de uma América ideal que já se via de partida quando ele saiu lá de New Jersey, mas que foi depois desaparecendo lentamente, como pegada de dinossauro em trilho paralelo a uma qualquer highway. Um hobo fora do tempo, talvez mesmo um beatnik retardado, se não desnaturado, do qual o que sobra na América de uma cultura protestativa e de tradição sixtie se tem apropriado como se fosse um balão de oxigénio. Como de uma bandeira rasgada, volúvel, mas ainda visível e a drapejar sobre um horizonte que se não pode prever. Dele gosto, verdadeiramente, apenas de dois álbuns publicados um a seguir ao outro: o fremente e corsário The River (um duplo de 1980) e o quase intimista e acústico Nebraska (1982). Os outros pertencem, basicamente, ao processo de fixação do Bruce naquela imagem de cool guy que «representa o povo» em tribunas do Partido Democrata ou em anúncios da Pepsi Cola. Mas que certas vezes ainda comove, porque insiste em falar-nos da vida «como ela é». Como boss mais camarada afinal do que patrão.
Tom Waits é outra coisa e a mesma. Resíduo da contracultura dos anos sessenta, signo de uma ressaca difícil que encontra, na figuração narcísica da marginalidade e do individualismo, um lugar de exílio das utopias que pareciam ter sido abandonadas de uma vez por todas. Música de cave, com cheiro acentuado a bourbon e a fumo, como em Nighthawks at the Diner (gravado ao vivo e editado em 1975), ou Small Change, ou Blue Valentine, saídos nos anos seguintes, que a música de Mr. Waits, embora progressivamente mais intelectualizada, hoje mais elaborada, estranhamente controlada no seu descontrolo, na verdade jamais deixou de ser. Sempre um registo «fora de género» que encontra os seus inflexíveis cultores – aqueles que preferem caminhar do lado oposto à «sunny side of the street» – mas não deixa de conter uma amargura que escapa sempre ao lado exultante desse modelo americano de vida que os europeus jamais desejarão. Por isso, talvez, tantos deles, tantos de nós, gostam ainda de um tipo assim, sem voz para adormecer bebés e uma presença física um bocado pungente.
Afinal os sessenta anos de Tom e de Bruce não contam assim tanto, pois não?
A notícia será rapidamente esquecida, mas não merece. Nesta 2ª Feira, um grupo de 30 militares do Centro da Serra da Carregueira encontrava-se a recolher informação para desenhar a carta militar geográfica do rio Olo, na serra do Alvão (Vila Real), quando dois deles – por sinal um tenente-coronel e um primeiro-sargento – se perderam por volta das dez da noite sem que nenhum dos companheiros conseguisse encontrá-los. Foi então que os outros militares resolveram recorrer aos meios humanos mais tradicionais, herdados da experiência logística das guerras napoleónicas, e pedir a ajuda de um pastor de 41 anos, com 35 de exercício da arte, que prontamente deu com os dois desaparecidos tolhidos de frio no fundo de uma ravina. A história é já de si curiosa, justamente pelo tipo de pesquisa que a brigada levava a cabo e que requereria aparelhos de localização e de comunicação – no mínimo telemóvel e GPS –, bem como pelo facto de os dois desaparecidos serem militares profissionais e não dois escuteiros fugidos de um jamboree. Mas mais interessante ainda é o discurso do pastor, que o repórter do Diário de Notíciastranscreve: «Cerca da meia-noite fui acordado por dois elementos da GNR, solicitando a minha ajuda para encontrar dois militares que estariam perdidos junto da queda das Fisgas», contou Sérgio Alves. «Munido de uma pequena lanterna, acompanhado de dois bombeiros, fui de imediato para a ravina seguinte à queda de água e cerca das 02.30 consegui ir até meio do declive. Tinha a certeza de que só poderiam estar ali. Fiz sinais, chamei e ouvi uma voz.» Ou os pastores já não são o que eram, ou o convívio com o português-padrão usado pelos jornalistas deste país está nos píncaros lá pelas margens do Olo, ou então estamos perante um fenómeno do Entroncamento deslocado do seu lugar onde.
«Raúl Castro lança o maior exercício militar dos últimos cinco anos, envolvendo cem mil soldados e quatro milhões de milícias populares, como treino para uma resposta a uma hipotética agressão norte-americana.
O Presidente cubano, Raúl Castro, mobilizou cem mil soldados e reservistas no maior exercício militar dos últimos cinco anos em Cuba. Às manobras, iniciadas há três dias, juntar-se-ão amanhã cerca de quatro milhões de cubanos, organizados em milícias populares desde a implantação do actual regime comunista, em 1959. (…)
As manobras, sob o título genérico ‘Bastião 2009’, visam responder a uma hipotética invasão norte-americana apesar de o actual inquilino da Casa Branca, Barack Obama, ter assegurado mais de uma vez que não tem qualquer intenção de usar a poderosa força militar de Washington contra a ilha.»
Já tinha reparado na notícia do 24 horas sobre o código de conduta preparado pelo director da informação da RTP para regulamentar a utilização individual dos blogues e das redes sociais da Internet pelos jornalistas da estação. Sinceramente, pensei que se trataria apenas de mais uma daquelas invenções, especulações ou não-notícias que habitualmente preenchem a primeira página do diário sensacionalista. Mas um post de Pedro Correia mostrou que eu estava enganado: José Alberto Carvalho pretende mesmo que, na vida privada de cada um, os jornalistas que dirige em regime de ordem unida deixem de ter opinião pessoal audível e zelem por uma imagem pública que deve adequar-se, sem mácula ou divergência, sem humor ou poesia, à da empresa na qual trabalham. Copio directamente do Delito de Opinião:
– «Nada do que fazemos no Twitter, Facebook ou Blogues (seja em posts originais ou em comentários a post de outrem) deve colocar em causa a imparcialidade que nos é devida e reconhecida enquanto jornalistas.»
– «(…) Deverão deixar em branco a secção de perfil de Facebook ou outros equivalentes, sobre as preferências políticas dos utilizadores.»
– «Ter particular atenção aos ‘amigos’ friends do Facebook e ponderar que também através deste dado, se pode inferir sobre a imparcialidade ou não de um jornalista sobre determinadas áreas.»
– «Meditar sobre o facto de 140 caracteres de um twit poderem ser entendidos de forma mais deficiente (e geralmente é isso que acontece!) do que um texto de várias páginas, o que dificulta a exacta explicação daquilo que cada um pretende verdadeiramente dizer.»
Se isto for tomado à letra e aplicado abrirá um perigoso precedente, e em breve outros diligentes funcionários superiores convertidos em manajeiros decidirão aquilo que um funcionário público, um polícia, um bancário, um professor, um padre, um médico, um juiz, um militar, um fiscal da ASAE, um futebolista da selecção ou qualquer outro profissional com «dever de imparcialidade», convertido à força em cidadão irresponsável e sem direito a pensar pela sua cabeça, deve ou não dizer de cada vez que, a cada manhã, abandone os lençóis, saia à rua – ou ligue o computador – e abra a boca para falar com alguém que não seja da família.
O último crime da democrata cubana Yoani Sánchez – que à boa maneira da Revolução Cultural chinesa justificou uma «demonstração de repúdio» e o espancamento e prisão de Reinaldo Escobar, seu marido – foi ter colocado no blogue Generación Y as respostas de Barack Obama a sete perguntas que lhe dirigiu. Raúl Castro, que também recebeu um questionário enviado por Yoani, não respondeu. Encontra no El País um bom resumo dos últimos desenvolvimentos de mais este caso de agressão à liberdade de expressão em Cuba. A fotografia utilizada foi copiada daqui.
Adenda – Nem de propósito, acaba de me entrar em casa Tumbas sin sosiego. Revolución, disidencia y exilio del intelectual cubano, um livro de Rafael Rojas, historiador e ensaísta cubano exilado no México, editado em 2006 pela barcelonesa Anagrama. Hei-de trazê-lo para aqui noutro dia. Até lá recordo «A imensa tristeza».
A Human Rights Watch acaba de afirmar – e prova-o através de um relatório de 123 páginas – que o regime cubano agravou a repressão sobre os dissidentes e apertou a vigilância policial desde que Fidel se retirou da gestão diária do poder e foi substituído pelo irmão Raúl. Um panorama que contraria claramente as expectativas iniciais e que é tanto mais inexplicável quanto a justificação fundamental para a repressão e a «censura revolucionária» – o embargo económico americano associado ao perigo de sabotagem – parecia há poucos meses aproximar-se de uma solução, ou pelo menos de uma viragem, com a nova política da administração Obama. O relatório «Um novo Castro, a mesma Cuba» denuncia ainda uma nova vaga de detenção de opositores ao regime, alguns deles em condições horríveis e alvo de tortura. Claro que os responsáveis cubanos e os indefectíveis amigos da ditadura castrista voltarão a acusar a Human Rights Watch – como o têm feito também, por exemplo, com a Amnistia Internacional – de constituir um «grupo mercenário pró-americano». Mas não provam que as alegações da HRW são falsas. Tudo na mesma, portanto. Isto é, pior.
Nem sempre concordei com algumas das metas, e sobretudo com muitos dos processos, que dominaram a luta estudantil desde os meados dos anos noventa, após o arranque aparatoso do movimento antipropinas em 1992-1994. Por essa altura, uma parte significativa dos dirigentes associativos empenhou-se numa fuga para a frente, subordinando os seus cadernos reivindicativos à exposição mediática, como se por si só esta legitimasse o seu esforço. Concentrados nos três minutos de fama dos telejornais, eles foram-se progressivamente concentrando numa lógica corporativa, esquecendo a grande maioria de estudantes que não se reviam no «aparelhismo» associativo, e outros sectores universitários, como os professores, geralmente encarados mais como «inimigos de classe» do que como possíveis aliados.
Observámos então actividades e «jornadas de luta» verdadeiramente patéticas, com escassas dezenas de estudantes encabeçados pelos seus «dirigentes» – sistematicamente rodeados dos microfones das rádios e das câmaras das televisões – a fecharem faculdades a cadeado, contra a completa indiferença, e até a animosidade, da larga maioria dos seus colegas, dos professores, dos funcionários e da opinião pública. Estive na época em reuniões horríveis, nas quais, com muitos outros professores abertos ao diálogo e sensíveis a grande parte das preocupações estudantis, fui tratado como um perigoso adversário, jamais como eventual aliado. Vi ao mesmo tempo como a grande maioria dos alunos, incluindo muitos dos mais participativos, observava com o maior desdém a atitude dos que diziam falar em seu nome. O resultado era já previsível e em breve seria confirmado: o recuo e a desmobilização da prática reivindicativa, a reacção defensiva das instituições universitárias, o desinteresse gradual dos cidadãos comuns e dos próprios média, condenando a luta estudantil ao apagamento.
Vejo pois com interesse e expectativa a vaga de luta estudantil que parece reemergir do silêncio. Preocupada agora, pelo menos aparentemente, com causas que transcendem a dimensão estritamente casuística e corporativa e comportam um impacto social mais geral, como sejam a crítica do sub-financiamento das universidades e a progressiva exclusão dos alunos com menos recursos materiais. De facto, apenas as preocupações e as palavras de ordem que têm em conta os problemas colectivos podem retirar a luta estudantil do gueto para o qual se deixou empurrar, devolvendo-lhe o estatuto de movimento social forte e respeitado. Os estudantes em luta, nas escolas ou na rua, sempre foram um sinal de futuro, de ousadia, de esperança. Mesmo quando as suas razões e modus operandi pareceram, ou foram, discutíveis. Em momentos como o actual, quando a maioria das nossas instituições universitárias se preocupa sobretudo com a sua própria sobrevivência e os governos se habituaram a impor políticas economicistas sem grande resistência das autoridades académicas, a sua iniciativa é crucial. Olhemos então, de novo, para eles.
Tal como tem acontecido com a tentativa de reexame do Holocausto, decorrem processos de revisionismo histórico da experiência do Gulag que tendem a reduzir o seu papel na edificação da sociedade soviética ou a requalificá-la como opção politicamente válida. Emergem em parte da historiografia e do actual sistema educativo do Estado russo, determinados a justificar perante as novas gerações o uso da violência na construção de uma política centralista e imperial «eficaz». Em The Future of Nostalgia, Svetlana Boym fala de incentivos a uma «megalomania da imaginação» que na Rússia actual se tem servido das dificuldades diárias vividas pelas pessoas comuns para estimular uma revisão heróica e gratificante do passado. Mas estas releituras provêem também dos sectores políticos, próximos ainda da matriz leninista, que conservam uma atracção reverente pelo antigo «país do futuro radioso». Há cerca de uma década, o debate público em torno do controverso Livro Negro do Comunismo terá contribuído para estimular esta via branqueadora e justificativa da violência de Estado.
Entre nós, muito mais relevantes do que o caso recente da jovem deputada do PCP que declarou não ter ideias sobre o assunto, ou das afirmações de militantes que dizem ou escrevem aquilo que o instinto gregário e a ignorância determinam, são as declarações de pessoas com reais responsabilidades políticas que se esforçam por limpar da memória ou por desculpabilizar os horrores praticados no sistema concentracionário do «socialismo real». O texto de opinião de António Vilarigues que saiu no Público de 30 de Outubro serve de indicador. Ele contesta os números excessivos apresentados por muitos historiadores para contabilizarem as vítimas do Gulag, o que merece alguma atenção. Mas toca o inaceitável quando se permite comparar o número das pessoas «reprimidas» na antiga União Soviética (as significativas aspas são da sua responsabilidade) com o volume de detidos de delito comum actualmente nas prisões americanas, comparando aquilo que não pode ser comparado e criminalizando quem foi deportado e perseguido apenas por motivos políticos ou étnicos.
A Câmara de Mantes-la-Jolie, nos arredores de Paris, considera que pendurar roupa à janela é «poluição estética» e deve ser proibido. A multa aplicada aos prevaricadores é de 38 euros. Parece que são mesmo alguns dos moradores de classe média da arrumada e linda Mantes que se encarregam de denunciar os seus vizinhos, chegando a remeter fotografias das farpelas delinquentes para as autoridades. O «higienismo paisagista» deixado à solta conduz a alarvidades desta natureza. Esperemos que a Junta de Freguesia de Alfama não se ponha com ideias e deixe as cuecas e os sutiãs do povo na paz das manhãs solarengas.
Diversos movimentos cívicos católicos querem um referendo sobre o casamento homossexual. Aceitá-lo seria como ter deixado referendar a pena de morte, a instauração da República, o 25 de Abril, a independência das ex-colónias ou a igualdade política e jurídica das mulheres. O resultado estaria viciado à partida por concepções atávicas e mecanismos de controlo das consciências postos em acção pelos sectores mais conservadores da sociedade. Nestas alturas há que reconhecer alguma razão às palavras de Afonso Costa quando apontava os «indivíduos que não conhecem os confins da sua paróquia, que não têm ideias nítidas e exactas de coisa nenhuma» como carneiros contra os quais o progresso das ideias – «a República» dizia ele – se deve inevitavelmente levantar. A democracia não se referenda, mes amis, e não é, nem pode ser, a vozearia ululante das multidões. É para o impedir que há eleições, sabiam?
Admito que possa ser um sujeito um pouco sensível – e certas vezes irascível, já agora – mas escutar Nicolas Sarkozy a perorar com um ar grave sobre a liberdade dos povos e o derrube dos muros que os separam junto à Porta de Brandeburgo é coisa que me provoca urticária. Aliás a Porta de Brandeburgo, com a sua quadriga rebocando a deusa da Vitória, é já de si um cenário que incomoda um pouco. Transporta consigo maus presságios. Deviam implodi-la de uma vez por todas e fazer ali uma coisa catita. Um Luna Parque ou assim.
Nos últimos anos, as tentativas de embelezamento desse «mundo a leste» que desabou em 1989 e de mitigação da memória e das consequências do sistema extremamente repressivo que nele germinou, têm atravessado fronteiras. Em Portugal, porém, essas tentativas têm tomado uma forma inusitadamente organizada e sistemática. A causa de tal originalidade é relativamente fácil de decifrar: aqui não se cingem à iniciativa de círculos diminutos e sectários de ativistas, mas contam com o suporte de um partido comunista militante que conserva peso social e detém um lastro histórico respeitável, reconhecido mesmo por pessoas que não partilham o seu ideário e não têm os seus objetivos.
Trata-se de um partido resistente a uma renovação ideológica que é observada como repulsiva traição a valores considerados intocáveis. De um partido que nunca reconheceu as consequências práticas e teóricas do movimento de desestalinização vivido ao longo das últimas décadas por quase todas as organizações homólogas, e que vive condicionado por uma animosidade atávica, inscrita na matriz leninista, contra uma «democracia burguesa» reputada como expressão de um mundo inferior. Comporta-se ao mesmo tempo como bastião tardio da «ordem socialista» que Gorbatchev e os seus cúmplices «capitulacionistas» se encarregaram de dissolver, e tem vindo – de uma forma cada vez mais veemente nos últimos tempos – a promover o reconhecimento, por vezes a defesa, de experiências e de princípios que o próprio PCUS pôs em causa há mais de cinquenta anos, logo após a morte de Estaline. É assim que a Queda do Muro, ao invés de se transformar num fator de reflexão, deground zeropara projetar a busca de alternativas, se transforma num ato de pura perfídia que pôs termo a um universo conceptualmente perfeito, enquanto os crimes do estalinismo internacional passaram a ser olhados como irrelevâncias ou a ser evocados, quanto muito, como «erros» menores e inteiramente justificáveis.
Partindo desta posição, muitos comunistas (do PCP, mas também fora dele) têm observado e comentado, quase sempre de forma crispada e depreciativa, por vezes com alguma violência, os argumentos de quem entende que os horrores do sistema repressivo e concentracionário imposto sobre o mapa do «socialismo real», tal como a punição brutal da dissidência e a gestão do sistema do Gulag e dos seus sucedâneos, não devem ser atenuados e muito menos silenciados. Aqui a palavra-chave é «anticomunismo». Quem critica frontalmente as certezas da direção do partido ou questiona uma certa «mitografia do comunismo» é então acusado de «anticomunista», quem insiste em apontar o falhanço do modelo burocrático e totalitário e em afirmar que foi horror o horror do Gulag é taxado de «anticomunista», quem questiona valores, princípios éticos e perspetivas políticas de uma esquerda autoritarista porque os considera perigosos, sugerindo que podem existir alternativas democráticas combativas, é qualificado sem apelo como impenitente «anticomunista».
A perversão é antiga e integra-se modelarmente na velha tradição dos comunistas russos, anterior à própria Revolução de Outubro – ela está presente, por exemplo, na cisão consciente e brutal com os mencheviques ou na rutura sem apelo com os socialistas-revolucionários –, que foi depois tomada em mãos por outros partidos-irmãos. Basta lembrar os epítetos lançados sobre centenas de milhares de militantes revolucionários perseguidos e abatidos durante as purgas estalinistas, indiciados todos, consoante a etapa da repressão, como «contrarrevolucionários», «fascistas», «provocadores», «capitulacionistas», «agentes da Gestapo», «espiões ao serviço do imperialismo», «lacaios do capital», e, frequentes vezes, «trotskistas», o que no jargão em vigor no Kremlin e no edifício moscovita da polícia política situado na Lubianka passou a significar, no mínimo, criminosos destinados à prisão ou mesmo ao pelotão de fuzilamento. Pode, aliás, estabelecer-se uma analogia moderada com o epíteto de «comunista» atribuído pelo Estado Novo a todo aquele que destoasse da ordem que este procurava impor, a quem discordasse ainda que só pontualmente do governo de Salazar, manipulando e diabolizando a palavra, num quadro que foi agravado com a propaganda da Guerra Fria.
Ambas as escolhas foram e são, para além de potencialmente injustas, completamente incorretas e inapropriadas, voltando-se até contra quem as utilizou e continua a utilizar, uma vez que alienam quem pode, pelo menos em determinados contextos, tornar-se um aliado. Tratam-se, na realidade, de expressões ao serviço de «teorias da conspiração» destinadas a identificar «culpados» para dificuldades e incompreensões que, num quadro democrático, poderiam e deveriam ter sido debatidas ou partilhadas, mas que aqui servem, como referiu Lucien Boia emPour l’histoire de l’imaginaire, de processos destinados à «redução da história e da política a um só princípio, fundado na crença de que a história avança e a política se faz à custa de conspirações sucessivas». Os conspiradores são seres apresentados como possuidores de uma inteligência degenerada, como génios malignos que é necessário desacreditar e destruir. Esta atitude diabolizante é, aliás, uma das essências de todos os sistemas totalitários e das ideologias que os servem, e o anti-«anticomunismo» dos comunistas ortodoxos serve-se recorrentemente deste processo.
É verdade que enquanto movimento político e social, e também como atitude individual, o anticomunismo – aqui sem aspas – existe, possuindo um percurso histórico longo e complexo, como o mostra um recente estudo de Miguel Real incluído na obra coletivaDança dos Demónios. Intolerância em Portugal(Temas e Debates/Círculo de Leitores), mas a generalização constitui um erro de tiro. Porquê? Desde logo porque contestar o dogma ou contrariar a cegueira não significa propor a destruição de quem o faz.
É este um erro flagrante. Para começar porque é inequívoco o direito do PCP à existência como partido democrático e, mais do que isso, é incontornável a relevância do seu papel como parte do passado, do presente e do futuro da nossa vida coletiva. Só que este papel necessário apenas pode ser cumprido de forma plena se nele ocorrer um processo de abertura antisectária à diferença no interior da esquerda anticapitalista, tendo em conta que esta abertura passará inevitavelmente pelo questionamento, doloroso, mas imprescindível, dos dogmas que foram prendendo o partido ao lado negro de um passado que insiste em invocar. Quando tal verdadeiramente ocorrer, quando a experiência da antiga União Soviética deixar de ser mitificada e a maioria dos comunistas aceitar os valores da liberdade individual como matriz constitutiva, ficará claro que o epíteto de «anticomunista» se aplicará apenas àqueles que recusam o direito de opinião e de intervenção aos que se batem contra a ordem capitalista indagando a possibilidade de uma alternativa.
Por isso a experiência histórica do «socialismo real», porque globalmente negativa, principalmente na materialização da sua vertente acentuadamente imobilista, intolerante e repressiva, deve ser olhada de frente, analisada, dessacralizada, criticada sem quaisquer complexos. Seguindo um processo revelado imperativo por três diferentes razões: por uma questão de justiça para com as suas inumeráveis vítimas; para que se perceba que a experiência não pode ser repetida; e para que fique claro que os projetos de mudança devem ter em consideração a defesa básica – a única que pode promover realmente uma atualização do conceito de comunismo – dos direitos humanos e das liberdades individuais, indispensáveis para um desenvolvimento harmonioso de todas as sociedades e para o aproveitamento da capacidade criadora dos seus cidadãos.
É por defendê-lo como especto essencial da vida democrática que muitos homens e muitas mulheres, que não são de direita ou «apologista do capitalismo», se dão ao trabalho – para os dogmáticos, quase criminoso – de exumar cadáveres injustamente esquecidos. Para que a memória da sua luta e do seu trajeto seja limpa de uma vez por todas. Para que se não esqueçam, e para que se não repitam, as injustiças que perverteram o princípio da utopia anticapitalista, cometidas em nome de um projeto igualitário que é, que foi, essencialmente justo ou necessário. Para que o ideal comunista – sinal vital de esperança e de compaixão para com os outros, mas também uma molda do combate pela liberdade – jamais pereça. Foi a comunista Rosa Luxemburgo quem escreveu que a verdade é revolucionária e deve ser sempre exposta, mesmo quando possa ser melindrosa. Negá-lo, isso sim, significará então ser-se contrarrevolucionário e anticomunista.
Há cerca de um ano circulou pelos jornais e suplementos de economia uma notícia que cotava Angola como o principal cliente do mercado português de imóveis de luxo. Hoje mesmo o Expresso noticia que 30% dos produtos para ostentação vendidos em Portugal são adquiridos por cidadãos angolanos. Existe até um perfil do cliente-padrão: «Homem, 40 anos, empresário do ramo da construção, ex-militar ou com ligações ao governo.» Veste habitualmente Hugo Boss ou Ermenegildo Zegna, compra relógios de ouro Patek Philippe e Rolex, desloca-se em automóveis topo de gama. Já o investimento angolano aqui no rectângulo rondou os 800 milhões de euros apenas entre 2005 e 2008, contando à cabeça com a participação da laboriosa empresária Isabel dos Santos, filha do presidente angolano, com uma intervenção decisiva em empresas como a Galp, a Zon, o BPI, o BES e a Sonae. Dados notáveis para o país do mundo com maior taxa de mortalidade infantil, situado em 224º (penúltimo lugar, apenas acima da Suazilândia) na classificação da esperança média de vida e em 114º na do rendimento anual per capita.
Nada de realmente surpreendente nas palavras chistosas, assistidas por um delicado sorriso de desdém, de José Sócrates ao investir na Assembleia da República contra José Pacheco Pereira invocando o passado rebelde deste: «uma vez revolucionário, revolucionário toda a vida». Posso garantir que conheço de contacto directo pelo menos quinhentas pessoas que um dia foram revolucionárias e que, apesar de hoje estarem maioritariamente «instaladas na vida», não sentem necessidade alguma de renegar esse lado inconformista do seu passado. Ainda que muitas tenham alterado as suas convicções, ainda que atribuam agora ao conceito de revolução, associado a um princípio de vida, uma conotação negativa, elas sabem – mesmo que não tenham lido Rimbaud – que «on n’est pas sérieux, quand on a dix-sept ans». Ou seja, que ninguém que mereça viver pode passar a juventude sem, pelo menos durante umas horas, ter pensado na possibilidade de o mundo ser aquilo que não é. Sabem que são o que são devido a essa experiência, geralmente partilhada. Sabem também – meio-mundo sabe-o – que foi ela a despertar o regime democrático. Muitas votam mesmo PS, algumas apoiaram Sócrates publicamente, umas quantas colaboram até com o governo. É por isso uma verdadeira tristeza que o primeiro-ministro português, com o dever de fazer pedagogia democrática ainda que seja historicamente um parvenu da democracia, tenha afirmado o que afirmou e da forma como o fez. Dir-se-á que foi da adrenalina, que se tratou de uma irrelevância, mas são irrelevâncias destas que definem um carácter. Mário Soares, por exemplo, jamais diria tal coisa. Como exclamou uma amiga minha indignada com o episódio, «apetecia responder-lhe: uma vez PSD, para sempre PSD».
Não há volta a dar-lhe: a redacção do Avante! atesta pendularmente a sua visão bicromática do mundo. É-lhe insuportável uma realidade intrincada que escape à cartilha amarelecida e maniqueísta da «luta de classes». É verdade que a Queda do Muro de Berlim e o fim das «democracias populares» não trouxeram a felicidade à maioria daqueles que sob elas viveram. É verdade que muitos dos antigos cidadãos dos países que as experimentaram recordam com ostalgie, perante o desenvolvimento descontrolado de um capitalismo selvagem e agressivo imposto de cima para baixo, a antiga segurança de uma aparente paz pública (apesar de assente na repressão da liberdade e na agressão militar), de um sistema de saúde em regra gratuito (embora antiquado e com escolhas trágicas), de uma educação organizada e exigente (se bem que sectária e confundida com a propaganda), de um emprego garantido (muitas vezes associado a trabalho improdutivo e tecnologicamente obsoleto), de uma autoproclamada grandeza nacional (apoiada em manifestações de força e completamente invisível de fora para dentro). Mas torna-se profundamente patético invocar este descontentamento efectivo e legítimo para defender, uma vez mais sem qualquer exercício crítico, práticas de governação absurdas e regimes despóticos que a história felizmente enterrou. Todavia, é precisamente isso que o jornal do PCP acaba de fazer num artigo, com direito a longa citação do falecido «camarada» Erich Honecker, destinado a denegrir o resultado prático e o valor simbólico da Queda do Muro e a defender a caricatura do socialismo que este supostamente defendia. Ler aqui para crer.
Um sketchbook é isso mesmo: um livro de impressões gráficas, de observações desenhadas num movimento de passagem, colecção de rascunhos rápidos e por isso fatalmente intensos. Começa assim: «São 7H00 da manhã… Chego ao Aeroporto Internacional Ben Gurion muito mais tarde do que o previsto.» Israel Sketchbook, de Ricardo Cabral (ASA) é um belo livro de BD que não é bem BD: induz, na forma, uma aproximação ao mesmo tempo documental e ficcionada a um dos países do mundo que concentra um volume particularmente anormal de juízos absolutos e contraditórios, passionais, por vezes demenciais. E não desilude. Por todo o lado uma cor arenosa, muita luz e uma coloração forte, impactos de bala visíveis, e principalmente gente, muita gente diferente, de diferentes cores e credos, que dê por onde der seguirá em conjunto para sempre. Sabemos que assim será porque, como observou a psicanalista e historiadora Elisabeth Roudinesco em entrevista aparecida há dias na revista Inrockuptibles, «não podemos reduzir Israel ao seu exército e aos seus líderes políticos.» Muito bom e incandescente este álbum.
Aquilo que os esforçados iberistas de Oitocentos não conseguiram através do publicismo, nem Franco obteve por se haver gorado o projecto de invasão de Portugal, está o futebol em vias de materializar. Segundo o jornal A Bola o primeiro passo está dado com a candidatura luso-espanhola à realização do Mundial de Futebol de 2018 (ou de 2022) e agora com a apresentação do logótipo da mesma, «inspirado na obra de um artista luso e outro castelhano (no caso, José Guimarães e Miró)» (sic). Gilbero Madaíl diz ao Record que este «transmite a ideia de união e vontade entre dois países que estão entrelaçados.» Sugere-se assim, graficamente, a hipótese de uma fusão que não deixaria de comover Seribaldo de Mas e Latino Coelho, de exaltar Xisto Camara e Henriques Nogueira, de deixar optimistas Pi i Margall e Oliveira Martins. A Señora Del Pilar e a Virgem de Fátima coligadas nos defendam do que aí vem.