Srebrenica
A capa do Libération de hoje, sobre a captura do general sérvio bósnio Ratko Mladic, o «carniceiro de Srebrenica», é um valente murro. Mas convém levar com ele no estômago para não esquecermos e fazermos de conta que não é connosco.
A capa do Libération de hoje, sobre a captura do general sérvio bósnio Ratko Mladic, o «carniceiro de Srebrenica», é um valente murro. Mas convém levar com ele no estômago para não esquecermos e fazermos de conta que não é connosco.
Circulam ventos contraditórios. Em sociedades bloqueadas e em estado crítico como aquela em que vivemos, a indiferença e a indignação crescem de forma rápida e significativa. Nada garante no entanto que elas não possam encontrar-se. E que desse encontro não resulte, como já aconteceu no passado, algo que pouco ou nada tenha de bom.
A multiplicação das manifestações, dos movimentos, dos blogues, das petições, dos acampamentos em praças, dos grupos activos nas redes sociais, engana um pouco. Ela congrega um grande número de pessoas, sem dúvida. E aquilo que estas fazem é importante, tem quase sempre motivos fortes e compreensíveis, mas nem por isso elas deixam de constituir uma imensa minoria. À lógica da indignação, ainda há pouco gritada pelo veterano Stéphane Hessel, sobrepõe-se então a dinâmica negativa da indiferença, associada ao desânimo e por vezes à depressão. Basta sair do círculo activista e falar com jovens universitários, para ver como a generalidade permanece desinteressada, se não ignorante, das dinâmicas da mudança e das possibilidades de redenção. A energia negra do neoliberalismo anestesiou as consciências, enquanto uma democracia pobre instalou a convicção de que cada um se deve procurar desembaraçar por si, de que as dinâmicas solidárias são um mal ou mesmo um perigo, de que a política é uma selva povoada de oportunistas e de que é impossível fazer alguma coisa contra isso. (mais…)
Num artigo da Wired de Junho que saiu ontem, o autor, Brendan Koerner, dialoga com um leitor, real ou forjado, que lhe conta ter sido repreendido por um estranho pelo facto de usar o seu iPad num autocarro nova-iorquino, o que o transformaria, de acordo com as palavras um tanto irritadas desse estranho, em alvo potencial, e provavelmente justificado, de um assalto ou mesmo de uma tentativa de homicídio. Nem tanto pelo valor monetário do aparelho, que ainda assim seria fácil vender numa rua menos iluminada por quaisquer 500 dólares, mas antes pelo que representava para o potencial agressor a exibição de uma tecnologia que significa conhecimento, mobilidade e acesso a universos de comunicação infinitos e desejáveis. A repreensão parece fazer sentido, tal como o perigo invocado se afigura verdadeiro, remetendo-nos para um território de violência, urbana e selvagem, no qual pode tornar-se difícil gerir a própria integridade física.
Utilizador regular e intensivo dos aparelhos de comunicação e lazer da tríade i da Apple, percebo o perigo e o mal-estar que esse uso pode causar aos outros. Apesar deles me servirem como instrumentos de trabalho, já me tenho inibido de usar em público o iPad ou o iPhone – o iTunes, o único exclusivamente voltado para o lazer, é o mais humilde de todos e passa facilmente por tecnologia barata – justamente por perceber o seu uso como uma potencial agressão aos cidadãos com quem partilho a sala de espera do centro de saúde ou a gare da estação de comboios. Aquilo que me preocupa, porém, não é ocorrência ocasional da situação, na expectativa desta poder ser alterada pela melhoria das condições de vida e de acesso à tecnologia por parte da maioria das pessoas. É antes a consciência de que, no tempo que agora passa, o fosso entre os que têm muito ou o suficiente (em dinheiro, informação, capacidade para comunicar, direito aos sonhos) e os que nada disso podem ter ou sequer desejar, tende a aumentar, produzindo situações de conflito. Criar-se-á então, numa situação extrema, a necessidade de, para usarmos um aparelho que serve para nos ligarmos aos outros, precisarmos de isolamento em ambientes reservados. Já é assim em Calcutá, no Rio ou em Lima. Provavelmente, em breve assim será aqui também.
Benghazi, Maio de 2011 | Fotografia de Rodrigo Abd
O título poderia ser: «No século 21 a guerra também é estilo». A reverberação mediática da imagem induz este efeito. Estranho, paradoxal, mas apenas na aparência.
Tomo conhecimento das novas exigências de Frau Merkl a propósito dos dias das férias e da idade da reforma dos portugueses, e ponho-me uma pergunta que não tenho visto suficientemente colocada. A negociação de uma dívida, seja ela de que natureza for, implica uma intromissão na vida familiar do devedor? Se eu pedir dinheiro emprestado para consertar a casa ir-me-á agora o banco forçar a provar que não gasto dinheiro em coisas supérfluas como jornais, espectáculos de teatro ou refrescos de groselha? E uma outra, ainda mais necessária e inquietante: não estamos a assistir a intromissões completamente abusivas em matérias que respeitam ao grau de independência próprio de um Estado soberano? Admito que quem empresta reivindique certas garantias – já os antigos usurários ou os donos dos estabelecimentos de «prego» o faziam, e além disso os bons samaritanos ficaram-se pelos tempos bíblicos – mas tal jamais implicou que a vida de quem se vê forçado a recorrer a esse expediente extremo passe a ser escrutinada, controlada, determinada pela vontade de quem mexe os cordéis da bolsa. Tudo isto começa a ficar parecido, demasiado parecido, com o caldo de cultura do qual saíram as regras autocráticas impostas pela diplomacia de Ribbentrop e a política de ocupação e rapina do Terceiro Reich. Mas foi também por causa delas que a Alemanha perdeu a guerra.
Como motivo de apreensão, sabemos que não é esta de momento a nossa prioridade. Mas se quisermos – como o provaram, no limite, as atitudes corajosas de tantas vítimas e sobreviventes dos campos de concentração ou extermínio – mesmo nas piores condições pode e deve criar-se um espaço destinado impedir que as desgraças dos outros sejam vividas num silêncio que só as agrava. Quando pouco ou nada podemos fazer para as minorar, podemos, pelo menos, tudo fazer para que esse sofrimento possa ter algum sentido. Por isso, e de acordo com um extenso relatório divulgado há dias pela Amnistia Internacional, não pode passar em claro que os campos de presos políticos da Coreia do Norte são afinal ainda maiores e piores do que até há pouco se pensava, contando nesta altura com cerca de 200 mil pessoas detidas.
Sucedem-se as execuções, o trabalho escravo tornou-se a regra, a tortura e a fome são uma constante. A Amnistia teve acesso a imagens de satélite que conseguem determinar a localização e o tamanho dos campos de prisioneiros políticos, tendo reunido também testemunhos de antigos detidos e de ex-guardas prisionais. Estes permitiram traçar um quadro negro e muito preocupante das condições de vida nesses campos. É possível que o aumento das prisões esteja relacionado com a tentativa de impedir perturbações numa altura em que aparentemente se assiste a uma transferência de poder em Pyongyang. Mas nada do que se passa é aceitável ou justifica, como tantas vezes se passa deste lado do planeta, que continue a praticar-se o crime de omissão.
Pode entretanto, assinar aqui, uma petição pedindo o encerramento do campo da Yodok, o maior e sem dúvida um dos piores.
La Puissance d’exister, de 2006, é apresentada pelo filósofo francês Michel Onfray como um manifesto, retomando nessa qualidade alguns dos seus temas mais caros: um pensamento e uma intervenção abertamente libertários, a defesa do hedonismo enquanto «dispositivo de resistência», uma sexualidade liberta por uma vez da pesada ganga judaico-cristã e burguesa, um ateísmo pós-cristão, a valorização objectiva do lugar social do rebelde. Talvez esteja justamente nesta qualidade de síntese, de revisitação, de «ponto da situação» como o autor reconhece, o grande interesse que tem para o leitor a iniciar-se no reconhecimento do trabalho de Onfray, sempre proposto como uma ferramenta para «voltar a encantar o nosso tempo melancólico com a proposta de um pensamento a viver.» O autor fala do Maio de 68 principalmente como «um trabalho que não foi levado até ao fim», e logo como tarefa a completar. Define a revolução como um trabalho perseverante e ininterrupto, assente numa capacidade individual de superação que, evocando mais o conceito camuseano de revolta, se encontra inscrita «no progresso do espírito humano.» No final, formaliza uma declaração de princípios já intuídos ao longo do livro. «Uma sociedade anarquista» totalmente esvaziada da intervenção regular do Estado parece-lhe sempre associada, como hipotética solução, a «uma perspectiva sinistra e improvável». O objectivo que prescreve é por isso bem diverso: criar as condições para a afirmação, no interior das actuais sociedades democráticas existentes, de possibilidades individuais ou comunitárias de alcançar «uma ataraxia real», de espaços de tranquilidade, de serenidade, capazes de tornarem a vida menos carregada, menos penosa, com lugar para o treino e a afirmação de uma atitude hedonista. Uma configuração da acção que, à entrada deste segundo decénio do século, parece conter algo de escapista. É provável que assim seja, mas talvez venha justamente daí a capacidade de sedução que o pensamento de Onfray exerce sobre os seus fiéis leitores.
A tradução portuguesa, intitulada A potência de existir, foi editada em 2009 pela Campo da Comunicação.
Não, não retirei isto de um romance com as folhas amareladas de Alves Redol ou de John Steinbeck. Quando tinha uns seis ou sete anos costumava acompanhar o meu pai, na altura representante de uma companhia de produtos químicos, em visitas periódicas às fábricas de lanifícios da minha região. Lembro-me muito bem, muito bem mesmo, de entrar em instalações antigas, algumas ainda com grandes máquinas a vapor, que alimentavam negócios aparentemente prósperos devido aos baixos salários e às péssimas condições de trabalho impostas aos operários. Não havia sequer «hora do almoço» tal como a concebemos hoje: bastavam uns minutos para eles comerem, controlados pelo encarregado, uma marmita de arroz acompanhada de pão e de uns goles de vinho. Tudo começava e acabava ao som de um apito – ainda o oiço perfeitamente –, ali, no soalho de pedra ou na relva, ao lado da máquina durante o inverno, ou do lado de fora, à sombra de um eucalipto, quando o tempo aquecia.
Hoje mesmo, num centro comercial amplo e moderno, paredes meias com a área da restauração onde fui comer com todo o conforto um almoço rápido, vi um grupo de mulheres idosas e vestidas de escuro, acompanhadas por algumas crianças, visivelmente chegadas de um Portugal que parecia de outras eras. Sentadas também no chão, com a complacência dos empregados da empresa de segurança, comiam calmamente, as sandes de broa de milho com chouriço e as laranjas que traziam consigo embrulhadas em lenço. O que mais me impressionou, aquilo que mais temo, é que esta cena não me pareceu configurar um vestígio raro e anacrónico de um passado em vias de desaparecer, mas sim desenhar, como num último ensaio, a antevisão daquilo que aí vem.
Como a maioria dos portugueses atentos ao que acontece no mundo real – ou seja, no YouTube – franzi o sobrolho e sorri ligeiramente quando vi o putativo ministro das Finanças de um incerto governo PSD servir-se num programa televisivo da expressão «andam a discutir ‘pintelhos’». Assim mesmo, como diz o povo que não tem dicionários capazes de sabiamente converterem o «i» em «e». Mas o pasmo não ficou a dever-se à expressão em si. Todos a conhecemos, apesar da minha avó ter preferido «andam a falar de coisas que não valem dez réis de mel coado» e de muitos de nós, entre os quais me incluo, gostarem mais de recorrer aos moluscos gastrópodes terrestres de concha espiralada calcária vociferando «andam com um raio de uma conversa que não vale um caracol». A surpresa relacionou-se, isso sim, com o facto dela ter saído da boca de uma figura com a qual o PSD, partido que deseja vender uma imagem de circunspecção à medida do seu precocemente circunspecto presidente, pretende conquistar credibilidade pública. Mas terminou aqui a chalaça, pois já não me parece nada engraçado, ou sequer útil, usar a gafe para atacar o partido ou Catroga, seu – isto sim um fenómeno do domínio do paranormal – não-militante e porta-voz. Não vejo que interesse pode ter servirmo-nos de um deslize, que até humaniza o personagem, como arma de arremesso político. Aliás, já achei a mesmíssima coisa na altura do «porreiro, pá» de um conhecido político da Beira interior, ou dos chifres parlamentares ostentados por outro. É que o povo até gosta destas coisas, pá. Vão por mim e deixem-se de pentilhices.
Dados os antecedentes, acredito que o poeta, escritor, cronista e ex-jornalista Manuel António Pina – ou o seu pseudónimo, e nem ele mesmo poderá garantir qual deles – se sentirá bastante preocupado com a atribuição do Prémio Camões de 2011. Ao contrário de nós, seus leitores, admiradores e «fiéis sequazes», que ficámos só muito felizes.
Então, para que conste, siga-se esse alguém:
AVISO À NAVEGAÇÃO
É altura de sair do armário e fazer uma revelação particularmente penosa: sou um pseudónimo. Na verdade, eu não sou eu. Nem outro, nem qualquer coisa de intermédio, nem «pilar da ponte de tédio/ que vai de mim para o outro». Uso um nome suposto, só por acaso coincidente com o do BI, porque não sei, como o taoista, que nome tenho.
Um leitor (aliás cordialíssimo) responsabiliza-me por uma crónica aqui assinada pelo pseudónimo sobre a hipocrisia do jornalismo. Estou cansado que me confundam com o pseudónimo. Já cheguei, num café, a ser chamado de «fascista», de «populista» e até de «católico» pelo vice-presidente de uma bancada parlamentar (sou sempre eu quem paga as favas, porque o pseudónimo existe apenas duas ou três horas por dia, diante do computador, e não vai ao café).
Num pequeno texto intitulado Borges y yo, o autor de Le regret d’Héraclite, quem quer que seja, revela que tem uma existência pacata e que tudo o que lhe acontece se passa com outro, um tal Borges. Comigo é igual. Estou farto (acho que já o disse, ou terá sido o pseudónimo?) de ser confundido com o autor daquilo que escrevo.
JN, 16.04.2009
É nas épocas difíceis que mais facilmente caem as máscaras. Quando tudo se complica e a dúvida se instaura, é mais fácil mostrar aquilo que realmente somos. Nus, sem a protecção das aparências que se cultivam com maior facilidade em tempos menos rudes e opacos, tornamo-nos mais genuínos, o que geralmente significa que cresce a imprevisibilidade e o perigo diante do que somos capazes de fazer. Solitários ou em bando, é preciso que se diga. E isso percebe-se muito bem quando vemos como a maquilhagem democrática de muitos de nós se transvestiu logo que as dificuldades aumentaram dramaticamente e o rumor da legítima revolta, moral ou física, impotente ou indignada, se afigurou no horizonte.
Em quase todo o espectro partidário saltaram os disfarces. A direita que temos, «democrática» e pluralista, deixou cair a verborreia antieuropeísta e os ímpetos «nacionalistas» e ultraliberais que ainda há pouco tempo sobejavam no seu vocabulário. Activamente ou por omissão, tornou-se radical na defesa do intervencionismo externo. A esquerda à esquerda retomou alguns devaneios, queixando-se da crise mas olhando-a ao mesmo tempo como antecâmara da tomada do poder em nome da revolta das massas. Por ela, aceita mesmo associar-se àqueles que da democracia apenas têm uma concepção instrumental. Pelo meio, os socialistas tornam-se ainda mais pragmáticos, tudo fazendo, sem disfarce, para conservar o seu núcleo identitário mais essencial: aquele que gere a conservação do poder pelo poder. Lá atrás, e como sempre, só os comunistas permanecem iguais a si próprios, uma vez que nunca procuraram enganar ninguém com apologias de uma «Europa europeia» fundada numa democracia não adjectivada.
Nesta paisagem, a dificuldade está em nos mantermos lúcidos, na claridade, e não nos deixarmos levar pelos ímpetos. Uma vida melhor, mais digna e mais democrática jamais se construirá tomando a linguagem do instinto como princípio de comunicação.
Quando passei hoje no Público pela coluna de António Vilarigues e vi o destaque – «A alternativa existe! E exige, na sua concretização, a formação dum Governo patriótico e de esquerda» – pensei logo de mim para comigo: «É hoje. Tens andado distraído mas vais finalmente perceber que coisa é essa do ‘Governo patriótico e de esquerda’ que o PCP pressagia.» Juro que fiquei na expectativa, até porque gosto sempre de aprender coisas novas e, acima de tudo, gostaria de reconhecer a possibilidade de um modelo político e económico para o meu país que não aquele que desgraçadamente nos tem vindo a ser apresentado como inevitável. No entanto, essa expectativa durou só dois minutos. A «explicação» encontra-se no parágrafo final: «Mas a alternativa existe! Uma alternativa capaz de garantir a política necessária à resolução dos problemas nacionais. E que exige, na sua concretização, a formação dum Governo patriótico e de esquerda. Governo com uma política que corresponda ao conteúdo e valor próprio da Constituição da República e dos ideais de Abril.» Sem mais, de novo. Ou seja, não existe alternativa alguma, pois ninguém percebe como chegar a tal governo, quem o constituiria e como é que ele resolveria o problema imediato da maioria dos portugueses; a saber, com que é que a partir de Junho estes vão pagar a sopinha de legumes da qual precisam para viver. Mas garanto que vou continuar a procurar – com a mesma tenacidade com a qual o velho Diógenes, de lanterna na mão, percorria as ruas de Atenas em demanda de uma pessoa honesta – a informação que me permita desfazer as dúvidas. Não quero acreditar que o PCP proponha como solução alguma coisa que não faz a menor ideia do que possa ser ou de que forma poderemos nós, ou poderá ele em conjunto com mais não sei quem, chegar a ela.
Sou um ignorante chapado em ciência económica e durante muito tempo até fiz gala disso. Um tipo que gosta é das letras, das artes, de mexer em arquivos e de idear futuros, que não se preocupa em demasia com o vil metal ou com o preenchimento do IRS, dificilmente fará melhor. Deito fora os suplementos de economia sem os ler, e quando no banco me sugerem «um novo produto» digo logo que estou com pressa. Além disso, jamais confiro os trocos, mudo de canal quando aparece o Gomes Ferreira e não ligo peva aos extractos de conta. Não tenho pois grande capacidade – melhor, não tenho capacidade alguma – para observações minimamente elaboradas e de confiança sobre a evolução económica e financeira do nosso país ao longo dos últimos 37 anos. Mas sou suficientemente ingénuo, ainda assim, para atirar uma pergunta para o ar. O que terá levado as finanças públicas portuguesas ao estado pré-cadavérico em que se encontram? Foi a construção de um Estado social projectada por uns quantos nos anos 60 e lançada ao caminho após a Revolução de Abril, como insinuam a todo o instante os urubus do neoliberalismo que «analisam» a crise em curso, ou foi a edificação de um suposto oásis de dinheiro fácil, de descontrolo das despesas públicas e de crédito sem limites projectada nos «anos dourados» do teso Cavaco e do bom Guterres? Uma pergunta insensata, de ignaro, admito.
Sigo o Jacques Tati de Mon Oncle numa pré-visão realista da via acelerada do meu país rumo a esse futuro próximo que podemos vislumbrar. Sem grandes exageros. Do novo-riquismo que Cavaco projectou nos anos 80 à queda numa realidade para a qual acabaram de nos projectar.
A sequência dos dias ia desbotando a data. Há um ano escrevi aqui: «Para os filhos e os netos de Abril tudo começou a 26 com o conta-quilómetros a zeros, e por isso para poucos deles há um «Sempre!». É assim e não há que ter pena. Há que olhar para o que está para vir e o resto é memória a guardar. Quente para muitos, sem dúvida, mas para cada vez menos porque a vida não faz pausa.» Cinquenta e duas semanas depois, estas palavras parecem-me imperfeitas. De repente, diante daquilo que até há pouco parecia improvável ou impossível, a cor viva, agora a da resistência, voltou à rua. E com ela o reforço de uma certa memória útil, de uma memória memorável.
Não se trata de um programa para a acção, mas sim de uma declaração de princípios. Isso faz toda a diferença e torna este manifesto particularmente importante.
Manifesto dos 74 nascidos depois de 74
Somos cidadãos e cidadãs nascidos depois do 25 de Abril de 1974. Crescemos com a consciência de que as conquistas democráticas e os mais básicos direitos de cidadania são filhos directos desse momento histórico. Soubemos resistir ao derrotismo cínico, mesmo quando os factos pareciam querer lutar contra nós: quando o então primeiro-ministro Cavaco Silva recusava uma pensão ao capitão de Abril, Salgueiro Maia, e a concedia a torturadores da PIDE/DGS; quando um governo decidia comemorar Abril como uma «evolução», colocando o «R» no caixote de lixo da História; quando víamos figuras políticas e militares tomar a revolução do 25 de Abril como um património seu. Soubemos permanecer alinhados com a sabedoria da esperança, porque sem ela a democracia não tem alma nem futuro.
O momento crítico que o país atravessa tem vindo a ser aproveitado para promover uma erosão preocupante da herança material e simbólica construída em torno do 25 de Abril. Não o afirmamos por saudosismo bacoco ou por populismo de circunstância. Se não é de agora o ataque a algumas conquistas que fizeram de nós um país mais justo, mais livre e menos desigual, a ofensiva que se prepara – com a cobertura do Fundo Monetário Internacional e a acção diligente do «grande centro» ideológico – pode significar um retrocesso sério, inédito e porventura irreversível. Entendemos, por isso, que é altura de erguermos a nossa voz. Amanhã pode ser tarde. (mais…)
São quase três da manhã a 13º Celsius, o prédio está em silêncio e da minha varanda não se vê ninguém. Aqueço a sensação de que ninguém me lê, ninguém me escuta, posso escrever aquilo que me apetecer na direcção de Saturno. Faço então as contas à contradição na qual me vejo embrulhado. Num momento em que me sentia amaciar, tendendo, quanto mais não fosse por recomendação dos licenciados, para a moderação da vida burguesa, eis que a realidade não deixa. Neste país de democracia suspensa e futuro encostado à parede, estou condenado, como tantos outros mortais – sabe-se lá o que pode a imaginação fazer à pobre realidade –, a radicalizar-me de novo. Temo pelos perigos desta radicalidade nova, construída sem projecto de futuro, sem caminho à vista e voz audível na qual seja possível confiar. No horizonte dos que resistem não se encontram agora cidades maravilhosas, lideres inspiradores, miragens de futuros perfeitos e inevitáveis. Talvez reste apenas a possibilidade longínqua de um recomeço, de um estado de esperança capaz de partir outra vez do quilómetro zero a caminho de uma Nova Califórnia. Irá doer e demorará, sem dúvida, correr-se-ão os tais riscos, mas há-de partir porque o mundo não vai acabar aqui. E não será por serem agora três da manhã, por não se ouvir sequer o motor de um carro rasgando a chuva ou o latido distante de um rafeiro, que acredito menos nisso.
Inteiramente de acordo com o texto do Daniel Oliveira sobre o péssimo gesto e o mau sinal que foi a recusa do PCP e do Bloco de Esquerda a apresentarem-se nas reuniões dos partidos políticos portugueses com a delegação do FMI. Não gasto tinta em argumentos, uma vez que a maior parte do que aqui poderia dizer já ficou dito pelo DO. Como a posição do PCP é coerente com aquilo que o PCP tem desde há muito tempo mantido, resta-me acrescentar, enquanto cidadão que desde a primeira hora considerou o Bloco uma peça imprescindível da democracia portuguesa – e nele tem esperançosa e persistentemente votado –, ter começado a temer que a situação crítica que vivemos tenha em alguns dos seus dirigentes retirado da hibernação os velhos fantasmas do maximalismo kamikaze. Ou isso ou então a Ruptura-FER tomou já o poder e ninguém avisou a malta.