Author Archives: Rui Bebiano

Xenófobos e cavernícolas

Este blogue, no seu esforço insano e inglório de captar a espuma da espuma dos dias, foi um dos primeiros a falar da forma como a nossa rapaziada do râguebi se apresentou em campo a vociferar A Portuguesa. Entretanto, todo o país reparou no caso. E parte do exterior também. Ao ponto de vermos a selecção de futebol, no jogo que terminou com a vistosa placagem proactiva de Scolari a Dragutinovic, cantando o hino já uns bons decibéis acima do normal. E também de os adversários bradarem o seu guerreiro «Fratelli d’Italia,/ l’Italia s’è desta,/ dell’elmo di Scipio/ s’è cinta la testa» com um outro fôlego. Mas é melhor não embandeirarmos com as maravilhas do râguebi e do seu pequeno mundo, alimentando certos mal-entendidos.

Um deles refere-se à tentativa de fazer crer que o râguebi estimula a bravura e um são patriotismo. Entretive-me a dar uma volta pelos comentários de alguns blogues e sítios desportivos interessados na modalidade e fiquei completamente atordoado com a quantidade de opiniões de natureza racista e xenófoba que se serviram do hino nacional para mostrarem como «ainda há verdadeiros portugueses» ou «não são precisos pretos» para mostrarmos os nossos feitos. E, a quem achar que não se deve dar assim tanta importância ao hino, exige-se ali «que abandone o país» ou então «mude de nacionalidade» (os itálicos entre aspas foram retirados de alguns comentários). Apesar de reconhecer a bravura desportiva do gesto, preferia que os Lobos tivessem ficado mudos, cantado em playback, ou mesmo uivado, do que terem dado ocasião a que este tipo súcia se possa manifestar. Apenas um fait divers? Atitude de uns quantos recém-chegados mais ou menos dementes e sem tradição entre o público da modalidade? Veremos.

O outro mal-entendido diz respeito à tentativa de se fazer crer que o mundo do râguebi é constituído por pessoas normais. Que nem todos os jogadores se chamam Martim, Tomás, Salvador, Gonçalo ou Diogo, que nem todos relaxam um pouco do atarefado quotidiano jogando golfe e bebendo puro malte, que nem todos eles são veterinários, engenheiros agrónomos ou (e) filhos-de-família. É verdade que não, mas nem por isso a situação real aproxima os raguebistas do cidadão comum. É que, para além, que eu saiba, de não existirem jogadores que sejam ao mesmo tempo filósofos, poetas, cineastas ou bailarinos – um pouco mais próximos, como é sabido, do português-padrão –, é espantosa a quantidade de atletas com um aspecto pouco saudável e, sinceramente, um tanto ou quanto animalesco, próprio de quem lida boa parte do tempo com bestas. Como parece ser o caso – o Ricardo Araújo Pereira também chamou, na Visão, a atenção para este exemplo de retorno humano ao estádio de Neanderthal – do gaulês Sébastien Chabal (na imagem). Aquele a quem os adeptos franceses chamam de Átila, Homem das Cavernas, Hannibal Lecter ou O Anestesista. Mas há mais. Não, os jogadores do râguebi não são gente como nós. E, como diria um conhecido autarca do norte e homem da bola no pé, «quem disser o contrário, mente».

    Devaneios, Etc.

    «It’s Alright, Ma»

    Vi Easy Rider seis vezes. E todas elas em poucos meses, três numa única semana. Tinha 17 anos, pouco cinema à disposição, detestava a vida imutável da cidade pequena e imaginava-me um pouco a percorrer as estradas americanas que me pareciam infinitas. Era aquela, para mim, a América. Desmedida e contraditória, feita de rapazes como aqueles, bons armados em maus, que se passeavam, soberbos, por entre simplórios da Louisiana com cara de sacanas. Mais conflito de gerações que luta de classes, sem dúvida. As stars and stripes pintadas na Harley Davidson de Wyatt (Peter Fonda), o chapéu de batedor fora do tempo usado por Billy (Dennis Hopper, também o realizador do filme), pareciam-me trocistas, provocadores. American dream às avessas com marijuana à descrição. Mas só depois do deprimente final – a morte violenta dos dois argonautas: «It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding)» – percebia definitivamente o olhar cínico de Fonda. Para o exorcizar, voltava então a ver tudo de novo.

      Cinema, Devaneios, Memória

      Rondellhund

      A oferta partiu de Abu Omar al-Baghdadi, chefe da Al-Qaeda no Iraque, e promete uma recompensa de 100 mil dólares, que «subirá para 150 mil dólares se ele for sacrificado como uma ovelha». «Ele» é Lars Vilks, o cartoonista sueco, «criminoso infiel», que, após a recusa de algumas galerias, publicou no jornal Nerikes Allehanda uma imagem de Maomé na qual este é vagamente representado com um rosto humano e corpo de cão. Vilks desenhou o profeta como expressão de rondellhund, uma forma de street art, aparecida na Suécia durante o ano passado, que tem procurado espalhar por locais públicos imagens de cães concebidas em diversos materiais. Segundo declarou, fê-lo deliberadamente, como gesto de combate em nome liberdade de expressão, pelo que não se sente minimamente obrigado a pedir perdão a quem quer que seja. Diferente pois do «caso dinamarquês» ocorrido em 2006. Nos tempos que correm, um gesto simples que exige uma boa dose de coragem.

        Atualidade

        Desqualificação

        Já quase toda a gente crucificou Maria José Nogueira Pinto pela peregrina ideia de fazer erguer uma Chinatown alfacinha que afastasse os vendedores chineses da Baixa, dando lugar apenas a um comércio «decente». Com preços que não envergonhem o cliente, claro. Pulido Valente faz hoje, no Público, uma acusação particularmente contundente, considerando que ela «não tem no ADN o mais vago vestígio do amor português pela pechincha». Ora nem mais. É o que se pode chamar a excelente conclusão de uma «análise objectiva do conteúdo de classe» das declarações da senhora.

          Apontamentos, Etc.

          O rosto de Jeanne

          Quando vivemos sentimentos aparentemente incompreensíveis de atracção ou de rejeição em relação ao rosto de determinada pessoa, costumamos dizer que é «a química» a funcionar. Essa «química», ou lá o que seja essa coisa que chamamos de «química», actua em profundidade na nossa consciência, dando-nos instruções imperativas como «ama agora!» ou «odeia já!». Concentramo-nos então num rosto, num olhar, numa voz, por vezes associados a um odor, a um gesto ou a uma forma de andar, que nos perturbam ao ponto de não lhes ficarmos indiferentes. Mesmo quando a maioria dos outros não vê o que nós vemos e não acha nada daquilo que nós achamos.

          Posso dizer que, desde que vi Jules et Jim, rejeitei o rosto provocador, e sobretudo o sorriso que me pareceu então demasiado largo e um pouco obsceno (comissuras dos lábios vincadas, dentes grandes e expostos), de Jeanne Moreau. E não foi por, na minha adolescência de pacato rapaz da província, ser um tanto impenetrável aquela história louca, contada por Truffaut, de um ménage à trois em início de século. Terá sido qualquer outra coisa, mais profunda. E tão profunda quanto impossível de descrever, provavelmente, sem uma aproximação a alguns dos meus fantasmas mais antigos. Talvez sejam eles também que possam explicar porque razão o actual rosto da Moreau, agora com quase oitenta anos, mais velho, mais pacificado embora não menos revolto, que entrevi ontem num documentário, me seja finalmente simpático. Ou então será dos ácidos e dos sais alterados dessa inexprimível «química».

            Cinema, Memória, Olhares

            Fleumáticos, dizem

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            Reconhecemos os clichés garantindo que todos americanos são extremamente estúpidos, que todos os japoneses são workaholic nerds de instintos acentuadamente suicidas, que todas as suecas são umas boazonas um tanto ou quanto aventureiras, que todos os irlandeses são uns alcoólicos que se vestem de verde. O «caso McCann» tem-nos feito relembrar o estereótipo do inglês. «Calmo», «fleumático», «demasiado contido» dizem e repetem polícias, advogados, jornalistas, comentadores ou psicólogos. Um professor espanhol, visivelmente problemático, assegurou mesmo, na RTP1, que, no caso «del matrimonio McCann», tanta contenção acabava por revelar a evidência da culpa. «Continental people have sex life; the English have hot-water bottles», escrevia George Mikes em How to be an Alien, um livro no qual se parodiava um certo modelo do «ser-se inglês», transformando os súbditos da rainha Elizabeth Alexandra Mary em seres frouxos, impenetráveis e potencialmente violentos como todos os frouxos. A PJ não irá por aí, naturalmente.

              Apontamentos, Etc.

              Vox populi

              Passo pelo corredor da casa e oiço, saídos da televisão, grandes gritos do povo enfurecido que protesta na rua, que acusa, que condena. Clama-se por justiça, alguém é considerado culpado. Pensei que tudo aquilo era contra o casal McCann. Mas não, era contra o Scolari.

                Devaneios, Etc.

                «And now, ladies and gentlemen, the portuguese national anthem!»

                Não gosto de hinos porque não gosto de guerras. Nem mesmo daquelas muito pequenas, travadas nos estádios à custa de petardos, palavrões e pontapés nas canelas. Os hinos são cânticos guerreiros, ou marchas militares, que lembram sempre o fogo cerrado e a morte em combate, falam de pátrias e de heróis, de glórias passadas ou previstas, e se destinam a motivar como um urro antes do mergulho num rio de água gelada. Mais prosaicamente, são também instrumentos de submissão do indivíduo ao colectivo, como a ordem unida que os exércitos ensinam aos recrutas desde o primeiro dia no quartel. E servem para exaltar o ânimo e a coragem. Não são cantilenas, lengalengas, como aquelas palavras entarameladas que balbuciam os jogadores-milionários da nossa selecção de futebol. São brados e estados de alma, como o cantam, vibrantes e únicos, os nossos rapazes da selecção de râguebi, neste momento a disputar em França o mundial da modalidade. Se não me entendem, vejam e oiçam como se canta um hino a sério, no próximo dia 15, cinco minutos antes dos corajosos Lobos defrontarem os esplêndidos All Blacks e a vozearia maori da sua haka. E depois cantem-no assim. Ou então façam como eu e calem-se para sempre.

                Duas notas posteriores:
                1. Para o L’Equipe, «enquanto se ouvia A Portuguesa eles cantavam com tanta força que até dava para desfazer os maxilares». O Guardian comenta que o hino foi cantado com «um orgulho fora do normal», e que «não houve o ‘estou a perder a compostura porque estou a cantar’ que tantos profissionais mostram hoje».
                2. Bem procurei uma fotografia totalmente apropriada para ilustrar este post, mas quem a encontrou, magnífica, foi o Carlos Freitas, publicando-a no seu blogue Prosas Vadias. Pode vê-la também aqui, em todo o seu esplendor. E aqui o vídeo.

                  Apontamentos, Olhares

                  Contemplação

                  Apanhei apenas a parte final da entrevista feita por Mário Crespo, na SIC-Notícias, ao novo director do Museu Nacional de Arte Antiga. Mas o que ouvi pareceu-me tão transparente quanto preocupante: a defesa do museu de arte concebido, muito acima de todas as outras possibilidades, como lugar vocacionado para a conservação da «peça» e para a «investigação científica». Como área no interior da qual um público demasiado vasto e um tanto ruidoso se revela essencialmente indesejável e inconveniente. Ficou no ar uma frase um tanto arrepiante que vale por cada uma das suas palavras e pela concepção do significado da própria arte que indicia: com demasiado público nos museus, afirmou Paulo Henriques, «não há seriedade (sic) para a contemplação de um quadro». Ah, e também deixou bem claro que, na sua opinião, os museus portugueses devem manter as ambições «à escala do país que de facto somos». Estamos entendidos.

                    Opinião

                    Nada mudaram (p.s.)

                    1. Alberto Manguel escreveu que a leitura funda o contrato social. Levando o axioma ao limite, toda a recusa de uma oportunidade para decifrar um livro assinalará uma quebra do pacto que nos aproxima dos outros. Será isso que fizemos? Claro que não. Quando escolhemos livros que não mudaram a nossa vida ou a nossa percepção do mundo, e deixámos de alguma maneira implícito que os não recomendávamos, não proclamámos uma higiene radical e destrutiva. Aceitámos apenas que as nossas escolhas não têm forçosamente de depender de cânones ou de cartilhas.

                    2. Poderia ter optado por livros da área da não-ficção. Aqueles que, por interesse ou dever de profissão, mais leio e, muitas vezes, mais facilmente sou capaz de rejeitar. Muitos de pouco ou nada me servem, esqueço-me dos seus títulos, sou incapaz de os citar ou recomendar. Poderia ter escolhido alguns destes, claro. Mas não fui por aí porque também pouca não-ficção me marcou tão profundamente quanto me marcaram, talvez para a vida inteira, muitos romances e outras ficções.

                    3. O Luís Mourão levou a tarefa que lhe foi pedida tão a sério que resolveu escutar algumas vozes próximas. Gostei imenso do tom inquietante do seu início de resposta, e parece (?) que a procissão ainda vai no começo. O Francisco José Viegas entendeu explicar melhor porque respondeu ao desafio e, de certa maneira, porque respondeu como respondeu. Pode parecer uma forma de relativizar as suas escolhas, mas é, principalmente, um ponto de partida para outras coisas. A acompanhar, claro. A Carla Hilário Quevedo acha que estou a provocar quando cito o Corão, «um livro religioso». Mas cito dois, pois o Livro Vermelho também o foi. E se quisesse mesmo provocar teria referido a Bíblia Sagrada, o que a educação católica não me deixou fazer (de facto a Bíblia mudou-me, e muito).

                    4. Tão divertido como responder a estes inquéritos soft de Verão, é ver os caminhos ínvios e sinuosos que as nossas respostas (e as dos outros) certas vezes tomam. As malandras.

                      Etc.

                      2h03m

                      Pode viajar-se agora a 300 à hora no belo comboio Eurostar laranja branco e prata. Uma viagem entre Paris e Londres demorará em breve apenas 2 horas e 3 minutos. Vai ser bastante mais fácil conceber álibis para infidelidades além-Mancha ou para atentados em Balmoral.

                        Atualidade, Devaneios

                        Esquecimento selectivo

                        Julgo tratar-se de uma doença. Gosto muito, mesmo muito, de cinema, passei uma fase da vida em que, cheio de olheiras mas sempre desperto, via em média uns 10 filmes por semana – antes ainda do surgimento do VHS, se bem me faço entender –, continuo a ver aquilo que posso, mas raramente consigo guardar a memória dos filmes por mais de umas quantas horas. Se não tomo umas notas ou guardo o recorte de alguma crítica que saiu na imprensa, lá se vão as imagens, os sons, as figurinhas a mexer e os «perfumes visuais». Por vezes, sobra um vestígio acessório associado a um artigo que possa ler, a um livro que evoque um certo filme, a um programa de televisão ou a uma passeata pelo You Tube. Dos Dez Mandamentos lembro-me apenas da dureza das cadeiras em madeira do Cineteatro da Figueira e de dar uma volta nos carrinhos de choque antes da sessão. De O Homem que Amava as Mulheres recordo-me só do vislumbre das pernas da Brigitte Fossey (mas já não me lembrava de todo do nome dela). De Saló ou os Cem Dias de Sodoma tenho a exclusiva memória de o ter visto com uma terrível dor de dentes. Isto para falar apenas de recordações com mais de trinta anos. Acho por isso extraordinária a forma como certas pessoas – de João Bénard da Costa, que tem sempre uma referência cinéfila para contar, até uma amiga minha que sabe mesmo dizer quais as condições atmosféricas e com quem foi ao cinema no dia tal do ano xis –, falam de filmes que viram há décadas. Com aquela mesma certeza descritiva que usamos para relatar um encontro da manhã ou a ida ao hipermercado. Invejo-os e acho que a medicina devia procurar uma cura para quem padece deste tipo de esquecimento. Faria da memória das vidas de quem dele padece, ou pelo menos da minha, um território com toda a certeza um pouco mais movimentado.

                          Apontamentos, Cinema, Olhares

                          Nada mudaram

                          Mais um desafio em cadeia. Este, chegado através do Eduardo Pitta, parece estimulante: contar os dez livros que não mudaram a nossa vida. Vale a pena verificar, nesta série, como obras reputadas «incontornáveis» são repetidamente citadas. Aqui ficam pois os meus livros-niet, todos eles lidos sem deixarem manchas. Dez obras que poderiam, claro, ser outras cem.

                          قُرْآن / Corão (séc. VI), de Abu al-Qasim Muhammad ibn ‘Abd Allah ibn ‘Abd al-Muttalib ibn Hashim (abençoado copy-paste)

                          A la Recherche du Temps Perdu / Em Busca do Tempo Perdido (1913-1927), de Marcel Proust

                          Ulysses / Ulisses (1922), de James Joyce

                          Der Zauberberg / A Montanha Mágica (1924), de Thomas Mann

                          Mrs. Dalloway (1925), de Virginia Wolf

                          Как закалялась сталь / Assim foi Temperado o Aço (1945), de Nikolai Ostrovski

                          Huis-Clos / Entre Quatro Paredes (1945), de Jean-Paul Sartre

                          Die Blechtrommel / O Tambor (1956), de Günter Grass

                          毛主席 / O Livro Vermelho (1964), de Mao Tsé-Tung (este não mudou, mas quase mudava)

                          Generation X: Tales for an Accelerated Culture / Geração X (1991), de Douglas Coupland

                          Mas, por supuesto, o primeiro livro da lista pode estar ainda a tempo de transformar a minha vida.

                          Desta vez, e tentando não me repetir (mas não garanto…), passo à Joana Lopes, ao João Tunes, ao Rui Ângelo Araújo, à Shyznogud e ao Lutz Brückelmann. Então vá.

                            Apontamentos, Etc., Olhares

                            Desordem do mundo

                            A Coreia do Norte parece ir em breve abandonar o «eixo do mal» e promete «desmantelar todas as centrais nucleares», os taliban agora não degolam todos os missionários cristãos nem dão chibatadas em todas as sul-coreanas que apanham a viajar sem burka, o general Khadaffi tornou-se justo, compassivo e um excelente cliente para a indústria francesa do armamento. O mundo já não é o que era.

                              Apontamentos, Atualidade

                              V.V. Putin contado às crianças

                              «Ninguém se iluda: a imagem que temos dos outros povos, ou de nós próprios, encontra-se associada à história que nos contaram quando éramos pequenos.» A frase abre Comment on Raconte l’Histoire aux Enfants, um dos mais conhecidos livros de Marc Ferro, publicado em 1981 (seguido, quatro anos depois, de L’Histoire sous Surveillance). Desde cedo perceberam os poderosos a importância da manipulação do passado no processo de perpetuação do seu poder, da sua imagem, da sua vontade e do seu legado. Foram, porém, os regimes totalitários do século XX que mais longe levaram a apropriação desse passado pelo poder e a sua manipulação como factor de controlo das sociedades e de construção do «homem novo», procurando gerir de uma forma eficaz o conhecimento do mundo vivido que deveria ser transmitido às novas gerações. Os regimes de tipo fascista e comunista, sustentados por uma representação monolítica da realidade e uma visão unívoca do seu movimento, não negligenciaram (como não negligenciam os seus sobreviventes) educar de forma «certa» as suas juventudes, mobilizando as suas organizações, controlando o aparelho educativo e propagandístico, sonegando as visões alternativas ou demonizando-as de forma liminar. As concepções fundamentalistas no domínio do religioso procuram ainda imitá-los, se bem que hoje o façam num universo onde a porosidade das fronteiras parece tornar essa acção depuradora cada vez mais difícil. Mas não impossível: nas escolas religiosas de diversos grupos ultra-ortodoxos cristãos ou judaicos, em numerosas madrassas ou centros de formação de futuros «mártires», é esse o ideal narrativo e pedagógico a perseguir. Contar da forma «certa» e camuflar o que se não deve conhecer. Fornecer certezas e elidir a dúvida.

                              A decisão recente do presidente russo, Vladimir Putin, no sentido de mandar redigir – não por historiadores credíveis, mas sim por um conjunto de consultores políticos – e distribuir como guia para a redacção dos novos manuais escolares, de uma História Contemporânea da Rússia. 1945-2006, comporta a semente de um retrocesso àquele estado de coisas, unindo-se a uma deriva crescentemente autoritária e expansionista que Moscovo já não esconde. Segundo um extenso artigo do Público, desvaloriza-se ali o Holocausto e os crimes de Mao, relativiza-se o genocídio perpetrado no Camboja pelos khmers vermelhos, faz-se equivaler a «hegemonia global» dos Estados Unidos à política externa do Terceiro Reich, amacia-se o Gulag, comparam-se os assassínios em massa da era soviética (a maioria deles, relembre-se, efectuada em tempo de paz) ao uso da bomba atómica norte-americana em tempo de guerra, e elogia-se José Estaline, «figura contraditória (…), demonizado por algumas pessoas e para outras um herói pelo papel que desempenhou na Grande Guerra Patriótica [a Segunda Guerra Mundial] e na expansão territorial» e também «o mais bem-sucedido líder da União Soviética». Para além, naturalmente, de se atribuir um relevo ímpar ao «rumo do presidente V. V. Putin em direcção à consolidação da sociedade», marcado principalmente por uma «restauração da posição da Rússia na política externa.» A comunidade de historiadores da Rússia tem, na sua generalidade, reagido com indignação a esta reescrita da história e à sua deriva nacionalista e autoritária, mas a verdade é que, entretanto, novos milhões de russos irão ser educados neste processo de manipulação da verdade. O resultado desta nova torrente de «lavagem» aos cérebros de toda uma geração ainda não pode ser conhecido, naturalmente. Mas permite-nos conjecturar de maneira legítima sobre o mal que transportará consigo. Pavel Danilin, um dos responsáveis por esta História putiniana, avisa: «temos que nos purgar do lixo, nem que seja à força».

                                Atualidade, História

                                A dúvida

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                                As revelações sobre a longa e profunda crise de fé que, contra todas as aparências, viveu Agnes Gonxha Bojaxhiu, Teresa de Calcutá, não podem deixar-nos indiferentes. A partir da correspondência mantida ao longo de 66 anos com os seus confessores e superiores, que o livro Mother Teresa: Come Be My Light põe agora à nossa disposição, é todo um percurso de dúvida que o acto de entrega ao tormento dos outros e às missões que lhe foram destinadas pela sua Igreja jamais foram capazes de resolver por inteiro. São ali recorrentes as referências a sentimentos de «secura», de «escuridão», de «solidão» e de «tortura», que, no constante convívio com o Inferno que foi quase sempre a sua vida, a levaram a duvidar da existência do Céu e até do próprio Deus. «O sorriso», o seu sorriso, escreveu Agnes, o sorriso que sempre lhe associamos, «é uma máscara» ou mesmo «um manto que cobre tudo». E este não parece tratar-se de um trajecto de ascensão espiritual rumo ao absoluto da fé, como o de Santo Agostinho (dizia ele, sabemos lá nós), mas exactamente o seu inverso: um olhar permanente, e inevitavelmente amargurado, sobre uma dúvida que não cessa e colide com o próprio sentimento de dever. O que não pode deixar de nos oferecer um olhar bem mais humano sobre a vida difícil desta albanesa pequenina, missionária, e, sabemo-lo agora, sempre sofrida e inquieta. Santidade é isto, é duvidar, é crer e descrer, não a entrega cega, segura e néscia seja a que fé ou a que causa for.

                                Citações retiradas de um artigo da Time que a revista Visão traduziu e publicou.

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