Author Archives: Rui Bebiano

Votado e lavrado em acta

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O caso do docente de Braga, a quem terá sido dito que «um professor universitário não pode ser criativo nem humorista» e foi determinado que tivesse tento na língua, circula por aí, entalado entre jornais e monitores. Eduardo Pitta e Manuel António Pina dedicaram-lhe textos de sinal diverso. Muitos outros se lhes seguiram. Entretanto o móbil do «crime», o blogue do referido professor, de gosto duvidoso e humor que não fará propriamente rir multidões, não abona muito em favor do lançamento de uma efectiva vaga de indignação. Já um tal «Voto de Repúdio aprovado pelo Conselho do Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional, em 27 de Fevereiro de 2008», no qual publicamente se declara que «o docente Daniel Luís é o único responsável pelo encerramento dos seus blogues, a que procedeu de livre vontade na sequência de um apelo do seu Departamento, votado e lavrado em acta», merece, pelo menos, a preocupação de qualquer cidadão capaz de reconhecer os valores essenciais do discernimento e da tolerância democrática. Seja ele universitário ou não. Tenha ou não sentido de humor.

    Apontamentos, Opinião

    Dr. Jekyll, Mr. Hyde e os outros

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    Reza assim:

    «A esquerda não pode sacrificar a sua perspectiva própria a uma visão tecnocrática, alheia aos seus valores políticos, culturais, ambientais, etc. Isso vale para todas as áreas, mesmo aparentemente as mais ‘neutras’. Por exemplo, a modernização das infra-estruturas não pode dar-se contra a defesa do ambiente e a coesão territorial, antes promovendo-as. A modernização da economia não pode visar somente aumentar a produtividade e competitividade internacional, não podendo deixar de ser caracterizada pela luta pelo emprego e pela sua qualidade, pela justiça nas relações laborais, pela garantia das ‘obrigações de serviços público’ nos ‘serviços de interesse económico geral’. A modernização da administração pública não pode ter como objectivo somente a eficiência administrativa e o rigor das finanças públicas, mas também e sobretudo melhores serviços públicos para toda a gente. A modernização do sistema político não pode consistir somente em eliminar as suas disfunções, não podendo perder de vista a renovação da democracia, o incentivo a uma maior participação, o aumento da transparência e da responsabilidade política, e a descentralização territorial.»

    A longa citação foi retirada do artigo de Vital Moreira que saiu ontem no jornal Público. No entanto, foi o mesmo VM quem, no recente Fórum Novas Fronteiras, afirmou estar «satisfeito com o que vejo hoje no país; quando começámos ninguém pensaria que chegaríamos tão longe». Presumindo que VM não usou o plural majestático, e prestando atenção a outras intervenções, quer-me parecer que temos aqui um excelente exemplo do estado de ligação com o real a que chegaram o responsáveis do PS e os seus companheiros de ocasião. Criticando práticas pelas quais são os primeiros responsáveis e associando-as a «alguém» ou a «qualquer coisa» que parece acreditarem nada ter a ver com eles, enunciam uma perigosa atitude de esquizofrenia política. Em nome do tal realismo, pois com certeza.

    A partir da crónica de Manuel António Pina publicada hoje no Jornal de Notícias.

      Atualidade, Opinião

      Circuito fechado

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      O patético Fórum Novas Fronteiras, que reuniu no sábado uns quantos apaniguados e fellow-travellers do governo do PS para um elogio público e litúrgico das suas políticas, revelou-se ainda pior do que se esperava. O autoproclamado «espaço de diálogo, de avaliação e de discussão» não foi mais que um encontro de pré-campanha, conscienciosamente mediatizado e convenientemente desprovido de vozes dissonantes, e no qual José Sócrates nem sequer disfarçou o tom comicieiro – aliás, já não parece possuir outro – entrando no pavilhão em passo enérgico, a acenar às hostes entre palmas, vivas e ai-jesus. Só faltou mesmo a musiquinha de Vangelis. Inebriada pelo poder, fascinada pela lógica prática do realismo político, encerrada em sedes e gabinetes, e deixada sem rédea por uma oposição sem força ou credibilidade, esta gente não pára de ficcionar sobre as medidas administrativas que confunde com «êxitos». Esses que um país acabrunhado e sem desígnio não consegue enxergar, mas que ela «vê» muito, muitíssimo bem. Quem pensará que realmente mobiliza?

        Atualidade, Opinião

        Vento de leste

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        Para nós, que vivemos neste «país de poetas» de fábula no qual os jornais de grande circulação – se é que tal existe por estes lados – deixaram de ter suplementos literários, não pode deixar de funcionar como um deprimente motivo de reflexão o facto de Babelia, o suplemento de sábado do vizinho El País, anunciar neste momento uma tiragem de 2.086.000 exemplares.

          Apontamentos, Olhares

          O mulato O.

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          Utilizado no português, de acordo com o Houaiss, pelo menos desde 1557, o substantivo e adjectivo mulato aplica-se àquele «que é filho de pai branco e de mãe preta (ou vice-versa)», «que apresenta traços das raças negra e branca», ou que possui uma visível «cor parda, acastanhada». Omnipresente nos territórios colonizados pelos europeus, o tipo encontra-se hoje em expansão numa Europa crescentemente multiétnica e miscigenada. Mas a designação, historicamente recorrente no léxico da lusofonia, é hoje muito menos utilizada do que o era há vinte ou trinta anos atrás. Pelas razões mais diversas. Por um lado, a decadência do conceito de raça, actualmente trocado pelo de etnia, tem levado a que se evitem designações determinadas pelos traços físicos. Ao mesmo tempo, e apesar de valorizar a mestiçagem e a hibridez, a nova tradição pós-colonial tende frequentemente a escamotear o legado do colonizador, incluindo-se neste o seu contributo genético. Aliás, foi já nesta linha que, a partir dos tempos de definição do conceito de negritude e de constituição das correntes emancipalistas, uma parte das novas elites africanas começou a depreciar um pouco o lugar e o papel do mulato. A partir dos anos 50/60, a crítica do lusotropicalismo não deixou, também ela, de intervir neste processo.

          Entre nós, porém, o eclipse parcial da palavra ficou a dever-se ainda à influência global do discurso dominante dos media americanos. Nos quais o conceito de negro possui uma amplitude que os falantes nativos do português até há bem pouco tempo praticamente excluíam. Por isso, para a América, o mulato Barack Obama é um negro. E é a partir da afirmação desta condição que tem definido o seu trajecto político e poderá vir a construir a sua vitória eleitoral. O que não podemos senão compreender. Mas já me parece um sintoma de passividade perante a aculturação que os meios de comunicação europeus, e muito em especial os portugueses, se lhe refiram sistematicamente como «negro». O que fizemos nós afinal, e em tão pouco tempo, da memória partilhada desse passado de trocas que produziu o mulato?

            Atualidade, Memória, Olhares

            Parole

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            O Público de hoje fornece as conclusões de um exercício. Dois especialistas em análise computacional do texto pegaram em 68 intervenções públicas de José Sócrates e descobriram as 200 palavras mais recorrentes nesse conjunto. Dispuseram-nas de seguida numa «nuvem de palavras» – dessas que muitos blogues utilizam para destacarem as principais tags utilizadas – que mostra com clareza os resultados obtidos. As palavras mais relevantes são previsíveis e próprias do «politiquês técnico»: «Portugal», «Europa», «governo», «política», «economia», «ano», «orçamento», «país», «desenvolvimento», «investimento». Segue-se um conjunto de palavras cuja representação gráfica vai diminuindo, até se chegar à escala liliputiana de vocábulos menores como «saúde», «pobreza», «pessoas», «professores» ou «história». Tendo pretensões científicas, claro que o estudo não aborda o não-dito (ou o quase indizível). Mas é importante procurá-lo: estão ausentes deste top 200 palavras como «cultura», «ensino», «educação», «desemprego», «mulheres», «lusofonia», «democracia», «solidariedade» ou «igualdade». E «socialismo», naturalmente.

            Ver também aqui (sugestão de Paulo Querido)

              Atualidade

              Era Fidel

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              Não me parece que a saída de cena de Fidel Castro «vire a página» do quer que seja. Só se podem virar páginas de livros abertos e o castrismo é, desde há longos anos, um livro fechado e arrumado na secção de história das estantes. Sobrevivendo, fora de Cuba, apenas como mito. Ora, como todos sabemos, os mitos são fabricados a partir de figuras e de episódios retirados do real, mas muito rapidamente se distanciam deste.

                Atualidade

                Da banalidade do perdão

                Pedir perdão servirá de alguma coisa? Rebobinar o filme da história e reconhecer que os do nosso sangue erraram, ou agiram de uma forma medonha, só aos ignorantes e aos hipócritas pacificará as consciências. As crianças aborígenes das «gerações roubadas» jamais reaverão a infância que a natureza lhes havia destinado. Mas pede-se-lhes desculpa e pronto. E ponto. Como se pediu já, vezes sem conta, aos descendentes dos índios americanos contagiados e massacrados, dos judeus errantes reduzidos a cinzas ao longo de séculos, dos escravos que sobreviveram à medonha viagem transatlântica. Um dia pedi-la-emos também aos netos dos africanos que não morreram exaustos junto às margens das praias peninsulares. E, tolhidos pelo arrependimento, continuaremos distraídos perante o trabalho macabro que nunca pára. Lá longe, entre remotas gentes ou fora da nossa vista.

                  Apontamentos, Atualidade

                  A leste do faroeste

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                  Uma certeza podemos ter se, tal como se espera, os democratas ganharem desta vez a Casa Branca: desaparecerão dos nossos visores aquelas imagens regulares, invariavelmente grotescas, de um cow-boy, de botas texanas com apliques e pernas levemente arqueadas, que salta do Air Force One como se de um cavalo de rodeo se tratasse.

                    Apontamentos, Atualidade

                    Hesitações

                    Eu sei que a franqueza é irrelevante em política. E que uma personalidade hesitante não inspira a confiança da maioria dos eleitores. Votaríamos nós em Sócrates, José, se este nos confiasse as dúvidas que inevitavelmente terá sobre as suas sonoras certezas? Ou em Menezes, Luís, se ele nos falasse exaltado das dificuldades que teve em passar a perorar em público daquela forma tão acentuadamente melíflua? Poucos de nós votaríamos. Foi por isso mesmo que experimentei alguma simpatia pelo sr. Sarkozy – embora apenas alguma, e nada política, convém que se diga -, quando soube que este, dias antes do casamento privado com a cantora esguia, teria enviado à sua ex um SMS hesitante – «infantil», dizem os críticos – dizendo-lhe que «se voltares, anulo tudo.» Tipos que passam por jamais fazerem coisas destas é que me arrepiam.

                    P.S. – Dizem-me que afinal o tal SMS não seguiu. Porém, o que importa é o papel da insensatez, da insegurança, da intranquilidade em política. São elas que podem humanizar um pouco os predadores. Sem que estes deixem de o ser, obviamente.

                      Apontamentos

                      «Até se lhe embrulhava o estômago»

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                      Publicado originalmente em Os Livros Ardem Mal

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                      Apresentado como resultado de década e meia de experiência jornalística vivida no contacto directo da autora com as parcelas das antigas colónias portuguesas, Massacres em África segue uma estratégia de construção aparentemente distinta. Mas cujo resultado prático acaba por se lhe assemelhar.

                      O livro aproxima alguns dos momentos mais sangrentos da história recente da África que se entende em português. Desde os massacres de Batepá, São Tomé, e da chacina da UPA, em 1961, ao de Wiriyamu, Moçambique, e aqueles que se seguiram ao golpe angolano de 1978, incluindo-se ainda informações sobre a morte violenta e inglória de Jonas Savimbi. Felícia Cabrita refere-os recorrendo a algum material de arquivo e a um conjunto de entrevistas, concedidas por testemunhas directas, sobreviventes e também executantes. A estes se refere quase sempre, aliás, com alguma compreensão, associando-os a actos que circunstâncias passadas determinaram mas que, de alguma forma, o tempo entretanto decorrido libertaria da responsabilidade histórica.

                      A escrita é fluente mas fácil, reconstruindo sem aparentes inibições os espaços sobre os quais a jornalista não possui informações. A busca do efeito melódico, a procura do impacto imediato da frase em prejuízo da sua beleza ou do seu rigor, definem um tom que prolonga o do livro sobre o Salazar «parte-corações». E o testemunho oral, veículo essencial para a construção de uma obra desta natureza que materializa a parte mais substancial do trabalho apresentado, resulta insuficiente, pois permanece imperfeitamente identificado, localizado e datado. Confrontado com estas falhas, o leitor vê-se então forçado a confiar plenamente na versão que lhe é contada. Coisa que, como é sabido, só por si não chega para aquilatar do valor documental de um determinado texto. Muito menos de um texto como este, que se reporta a uma das áreas mais sensíveis da memória e do rastro do nosso passado colonial

                      Pena é que a maior parte das pessoas que os irão ler julgará este livro, tal como aconteceu com o anterior, como um livro de história. Que de facto o não é: trata-se de uma compilação de reportagens aligeiradas sobre um tema que merecia maiores cuidados, inclusive do ponto de vista jornalístico. Talvez resulte razoavelmente como guião de um documentário concebido para a televisão ou para circular em DVD, e para ver apenas uma vez. Mas não como um livro para ficar.

                        História, Memória

                        Engarrafamento aéreo em Havana

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                        Por estes lados a notícia não teve destaque, mas vale a pena referi-la. Durante uma sessão na Universidade de Ciências Informáticas, em Havana, destinada a preparar as «eleições» para a Assembleia Nacional cubana solicitando dos estudantes o «voto unido», Ricardo Alarcón, membro do Bureau Político do Partido Comunista, viu-se confrontado com perguntas inusitadas e incómodas por parte dos estudantes. Porque não se explica ao povo em que consistem determinados projectos e planos de âmbito nacional? Porque pode um ministro manter-se 20 anos num cargo ainda que a sua gestão tenha fracassado visivelmente? Porque se proíbe aos cubanos a abertura de contas de e-mail no Yahoo ou no Google? Porque não podem viajar para o estrangeiros ou hospedarem-se em hotéis nacionais? A atrapalhação de Alarcón foi de tal ordem que a esta última pergunta respondeu considerando que «se todos os 6.000 milhões de habitantes do mundo pudessem viajar para onde quisessem, o engarrafamento aéreo no planeta seria enorme». Mais do que o carácter patético desta resposta, e simples enunciação das perguntas anuncia conflitos latentes que já não é possível esconder.

                        Antes que surjam as inevitáveis vozes que tentarão mostrar este episódio como prova da vitalidade democrática do regime castrista. Com um obrigado a João Tunes.

                          Apontamentos, Atualidade

                          O passado é agora

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                          Um pequeno post d’A Origem das Espécies chama a atenção para um apontamento saído no El País. Nele se refere um inquérito a 3.000 cidadãos, efectuado em Inglaterra pela cadeia de televisão UKTV Gold, o qual revelou estarem 23% deles convencidíssimos que Winston Churchill é um personagem de ficção e que nunca foi primeiro-ministro, enquanto 58% acreditam sem quaisquer problemas que Sherlock Holmes existiu de facto. 47% dos inquiridos considerou também que Ricardo Coração-de-Leão apenas existiu nos livros. Julgo que nenhuma pergunta se referia à existência – real ou imaginada – de Robin Hood e do Xerife de Nottingham. A reinvenção acelerada do passado é realmente um fenómeno deslumbrante. Como o é também a manipulação do passado na criação do presente.

                            Atualidade, História, Memória

                            Higiene oral

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                            Se tivesse a certeza de que o Senhor Director-Geral me leria, escrever-lhe-ia uma carta registada e com aviso de recepção. Nela apresentaria os meus melhores cumprimentos e mais três queixosos parágrafos.

                            Protestaria no primeiro contra a inacção das autoridades diante do persistente hábito lusitano, digno de uma extra-europeia viela de casbah, de cuspir para o chão. Bem sei que os escarradores já não constam do inventário das repartições e que as novas gerações parecem salivar menos, mas consideraria inadmissíveis as imundas excepções com as quais nos cruzamos ainda com razoável frequência. Escreveria outro parágrafo sugerindo a criação de cursos de formação destinados a ensinar, àquelas pessoas que falam exalando nuvens de salpicos bocais, a forma de superarem esse asqueroso hábito. No último parágrafo, apresentaria uma queixa contra a falta de legislação capaz de controlar a prática rotineira – persistente até entre numerosos letrados – de folhear livros e jornais destinados ao público recorrendo à dose equilibrada de saliva que depositam laboriosamente no dedo médio de uma das mãos.

                            Terminaria a carta com os meus cordiais votos (atrasados, embora sinceros) de um óptimo 2008. Inseriria a folha num envelope que, por fim, fecharia recorrendo à minha humedecida língua. E passaria depois pela estação de correios mais próxima.

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                              Xeque aos reis

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                              Como a maioria dos portugueses com os ouvidos abertos, tenho andado um tanto empanturrado com as evocações do Regicídio. Escreve-se muito, por vezes demais e de um modo empolado ou redundante, para o interesse que o tema poderá despertar hoje no cidadão comum. Percebe-se a razão: monárquicos carentes de oxigénio, chefes de redacção à procura de assunto e circunspectos académicos com reduzido público confluem numa evocação que torna mais visíveis as suas crenças, que responde às suas necessidades ou que projecta o seu trabalho. E aproveitam-na enquanto podem.

                              Devido à profissão que tenho, caber-me-ia supostamente alinhar no cortejo. Mas é justamente essa condição que me obriga a falar pouco daquilo que conheço mal. Do tema sei, porém, o suficiente para perceber que tem falhado, ou faltado, a presença de uma perspectiva essencial para a compreensão do assassinato do rei Carlos e do príncipe Luís, dois cidadãos que nem sequer eram tiranos brutais ou empedernidos reaccionários. Uma leitura que permita reconhecer com algum detalhe o microclima cultural, marcado por um radicalismo profundamente laicista e antimonárquico, e completamente fechado a concessões, dentro do qual se formaram as convicções de homens como esses que, sem temerem pela própria vida, consumaram o acto sobre o qual passam agora cem anos. O que pensavam, que livros liam, em que lugares se reuniam, sobre o que falavam, que códigos compunham, naquele início de século, as convicções profundas de homens como Buiça, Costa, Aquilino e tantos outros? Porque eles não foram apenas republicanos extremistas e exaltados, ou pobres franco-atiradores de pendor anarquista, mas sim visionários maximalistas – como tantos outros na Europa do seu tempo –, que as circunstâncias da vida haviam transformado em adeptos da utopia de um mundo melhor que previa o inevitável fim dos reis e príncipes, símbolos físicos de um poder que entendiam promover a iniquidade. É fácil condená-los sem apelo ou transformá-los em mártires, como tem sido feito por estes dias, mas dará algum trabalho compreender a dimensão intensa, ainda que efémera, das suas certezas.

                                Atualidade, História