Author Archives: Rui Bebiano

Viva a Morte!

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Originalmente em Os Livros Ardem Mal

Há alguns anos, em crónica do El País, Mario Vargas Llosa considerava excessivamente apocalíptico o mundo segundo Hans Magnus Enzensberger. Não sabemos se o escritor peruano, que parece cada vez mais céptico em relação à actualidade, dirá hoje a mesma coisa. Mas podemos reconhecer, sem grande margem de erro, que Enzensberger tem mantido a coerência na sua forma irónica e desiludida, ritmada «com raiva e paciência», de olhar a parte da realidade que lhe cabe.

Em 1992-93 publicou dois pequenos ensaios, Perspectivas da Guerra Civil e A Grande Migração (ambos editados em 1998 pela Relógio d’Água, num volume que levou o título do primeiro), nos quais aportava já a uma «cultura do ódio» tendente a multiplicar, dia após dia, os conflitos armados e a insegurança nas ruas. No final do segundo texto, referindo-se aqueles que municiavam este estado das coisas, considerava que «o instinto de autoconservação dessas pessoas é menos marcado do que geralmente se pensa». Em 2006 alargou esta percepção na edição revista de um artigo, escrito originalmente para o Der Spiegel, que a Sextante Editora acaba de traduzir sob o título Os homens do terror. Ensaio sobre o perdedor radical.

Enzensberger vira-se aqui para o protagonista, particularmente agressivo e perigoso, dessa violência que não cessa de subjugar o planeta, tornando virtualmente arriscado qualquer lugar ainda há pouco tempo tomado como tranquilo e seguro. Para o perdedor radical, que vive do lado de fora das civilidades comuns, das sociabilidades transparentes, incapaz de as adoptar ou de com elas tratar, e busca a redenção desse estado de auto-exclusão através do recurso a um terror sem piedade que tudo esmaga.

Este perdedor radical não pode ser, todavia, comparado ao simples falhado. Enquanto este se resigna com a sua sorte, esperando por melhores dias ou por uma oportunidade providencial, aquele «isola-se, torna-se invisível, cuida dos seus fantasmas, concentra a sua energia e espera pela sua hora» (p.10). O tempo da vingança é então preparado cuidadosamente, fora da luta de massas (age sozinho, ou em conjugação com outras solidões) e das aproximações impróprias para a missão que o deslumbra (é quase sempre homem, e instado à misoginia). Incapaz de reconhecer-se culpado do seu isolamento, da sua incapacidade para se inscrever num quadro social criador e optimista, projecta sobre os outros a causa da sua própria miséria.

Enzenberger anota que, no passado, a sua energia destrutiva foi mobilizada por uma multiplicidade de movimentos dotados de uma ideologia e de inimigos localizados (de carácter nacionalista, religioso, racista ou totalitário), mas actualmente a culpa é toda ela lançada sobre os cidadãos dos Estados Unidos e dos países que os apoiam, sobre os judeus (todos, sem excepção), sobre os cúmplices passivos ou beneficiários da globalização, sobre as mulheres que pretendem ocupar um lugar que se lhes afigura inaceitável, sobre os infiéis que não se conformam com uma percepção unívoca do mundo, sobre as democracias que não se conformam aos seus desejos.

Senhor da vida e da morte, o perdedor radical dilata a sua energia destrutiva «quando consegue vencer o seu isolamento, quando se socializa, encontra uma pátria de perdedores, da qual espera não só compreensão como reconhecimento, um colectivo de semelhantes a si, que lhe dá as boas vindas». Então, essa energia é potenciada, definindo-se «uma amálgama de desejo de morte e de megalomania» (p.37), ao mesmo tempo que um sentimento catastrófico de omnipotência o liberta da sua impotência. O momento da acção surge quando, neste processo da aproximação aos seus iguais, encontra um detonador ideológico capaz de induzir a explosão.

Para o ensaísta e poeta, no mundo actual, este detonador encontra-o o perdedor radical no islamismo, como «único movimento suficientemente poderoso que está em condições de agir globalmente» (p.49), uma vez que se apoia num universo humano que vive uma realidade particularmente difícil. O Islão não tem conseguido, de facto, examinar a parte de culpa que tem pela prostração económica e política dos seus 1300 milhões de fiéis. O declínio civilizacional do qual tem sido cúmplice, iniciado pelo século XV e associado à recusa da revolução tipográfica, terá hoje que ver com o modelo económico colonial e pós-colonial no qual vivemos. Mas os regimes islâmicos ampliam os seus efeitos ou reforçam constantemente os sentimentos de frustração e de inferioridade dos seus súbditos, submetendo-os à miséria e ao analfabetismo, escravizando as suas mulheres, conduzindo a um gigantesco brain drain, impossibilitando um desenvolvimento social harmónico, mas convencendo-os ao mesmo tempo da sua superioridade em relação aos demais habitantes do planeta.

É neste caldo de cultura que o perdedor radical se movimenta, ainda que a esmagadora maioria dos seus alvos seja afinal constituída por muçulmanos, como tem acontecido no Iraque, no Afeganistão, nos países do Magrebe, no Líbano e até na Palestina. O que não espanta Enzensberger, dado o facto de o seu objectivo consistir precisamente «em tornar o maior número possível dos outros em perdedores» (p.105). Na realidade, as correntes islamitas não estão interessadas em soluções para os dilemas do mundo árabe, limitando-se à negação: «Trata-se de um movimento apolítico, no sentido estrito, pois não se coloca numa exigência negociável. Em última análise, deseja que a maioria dos habitantes do planeta, composta por não crentes e infiéis, capitule ou seja morta.» (p. 109) Ao mesmo tempo organiza o suicídio de uma civilização inteira, numa orgia de morte que crê redentora.

Neste livro incómodo, Enzensberger dimensiona urgências. Aponta a mira telescópica para o perdedor radical isolado, suscitando a clara percepção de que este não é um perigo negligenciável. E muito menos passageiro.

    Atualidade, História

    Provável excesso de chá

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    Foi um oportuno post de Joana Lopes que me chamou a atenção para as declarações de Jorge Sampaio ao pasquim gratuito Sexta – por desinteresse passei a deitá-lo no lixo sem o abrir –, a propósito daquilo que este considera ser a instalação da ambiguidade na linha de separação que hoje possa ainda traçar-se entre o que é a esquerda e o que significa a direita. Segundo Sampaio, que enquanto PR nos atirou à cara ad nauseam com o seu passado de combatente pelas causas da liberdade e da justiça social (que apesar de todas as vicissitudes foram e são essencialmente património da esquerda), «não podemos ficar reféns de debates ideológicos» e o que conta nos tempos que correm é sobretudo uma aplicação de «políticas concretas e sustentáveis». Que não possuam cor, ou que desejavelmente a não tenham. Uma ideia estafada, com pelo menos duas décadas de eco, como se sabe. E potencialmente de direita. Mas que poderá ser considerada por alguns dos preclaros membros da Comissão Política Nacional dos socialistas, tendo em vista a próxima revisão do programa partidário. Se é que este ainda lhes merece um minuto de atenção.

      Apontamentos, Atualidade

      Reprise (1)

      [YouTube=http://www.youtube.com/watch?v=nE-yWpc91_A&feature=related]

      Completam-se hoje precisamente 45 anos sobre o lançamento de Please Please Me, o primeiro álbum dos Beatles, gravado numa única sessão de 15 horas em 11 de Fevereiro de 1963. O valor simbólico deste momento na cultura popular do século XX tem sido desvalorizado por quem não possui uma clara memória da época ou tende a menosprezar o impacto da então nova cultura juvenil. A ingenuidade quase pueril das letras dos primeiros temas, a linearidade dos arranjos iniciais, a forte concorrência transgeracional dos mais longevos Stones (cujo álbum inaugural saiu apenas um ano depois), bem como a complexificação posterior do rock, contribuíram também para a instalação de um certo desinteresse pelos primeiros tempos dos fab four junto das gerações mais recentes. Olhando este vídeo, percebemos que existia uma nova energia no ar.

        História, Memória, Olhares

        Ruído no anfiteatro

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        Todo o país viu as imagens e fala no caso da agressão da aluna da Carolina Michaëlis à sua professora de Francês. A atitude é de unânime condenação, embora eu desconfie que alguns estudantes da faixa etária da agressora possam considerá-la uma heroína e, em certos casos, tenha já «molhado o pão» no apetitoso lombo de outro infeliz docente (ou, pelo menos, tenha sentido uma quase-irreprimível vontade de o fazer). Têm sido distribuídas as culpas por toda a gente, colocando-se por vezes a agressora – que não deixa de o ser pelo facto de não ter batido na cara da professora – numa posição protegida de «vítima do sistema» que lamentavelmente perdeu a compostura. Sem querer insistir no que tem sido dito (um largo leque de posições pode ser encontrado na caixa de comentários de um post de Daniel Oliveira), chamo a atenção para algumas coisas que me perturbaram particularmente e que estão para além da agressão em si. São elas a cumplicidade ou a inacção do conjunto da turma, a falta de uma reacção decidida da professora, a não-apresentação imediata de queixa, a incapacidade da direcção da Escola para tomar medidas claras e prontas (e depois para esclarecer devidamente a opinião pública), a revelação de uma sucessão de casos análogos ou piores entretanto silenciados, o facto da esmagadora maioria das vítimas destes casos serem mulheres, o silêncio conivente dos pais dos jovens agressores (que terão a dizer disto as sempre tão buliçosas «comissões de pais»?). E ainda a real responsabilidade dos governos que têm vindo a retirar prestígio e autoridade aos professores.

        O caso leva-me a reflectir sobre a minha própria experiência, e a falar aqui de um assunto que permanece tabu, ainda que falado entre dentes, com sinais de vergonha, por professores, agora do ensino superior, que não sabem o que fazer e começam também a temer o pior. Dou aulas numa universidade desde 1981, e, naturalmente, ao longo de todos estes anos tenho-me confrontado, na relação mantida com dezenas de milhar de alunos, com comportamentos muito diferenciados no espaço das aulas. Apesar dessa diversidade, e tendo conservado sempre uma relação nada autoritária com a generalidade deles, jamais tive o menor problema disciplinar. Tanto quanto sei, a mesma coisa se passava com quase todos os meus colegas (as raríssimas excepções ficaram quase sempre a dever-se a atitudes de incompetência ou de arbitrariedade). Quando começaram a suceder-se os problemas disciplinares nas escolas secundárias, estes não se reflectiram logo nas universidades, presumindo-se sempre que os estudantes entretanto «cresceriam» e manteriam já comportamentos responsáveis quando chegassem aos nossos anfiteatros.

        Mas tudo mudou há cerca de dois ou três anos atrás. A verdade é que, após as sucessivas vagas de alunos com deficiente formação científica imposta por programas e métodos no mínimo discutíveis, começaram a chegar às escolas superiores estudantes com uma quase nula formação cívica e frágil capacidade de autoresponsabilização. E, pela primeira vez, eu e muitos colegas – com toda a experiência de anos de trabalho, com todo o prestígio que a maioria acreditava ter conquistado para a vida – começámos a ter problemas: alunos que conversam sistematicamente durante as aulas, que chegam atrasados todos os dias, que entram e saem sem uma palavra, que não desligam o telemóvel, que se dirigem ao professor de forma impertinente, que exigem facilidades confundidas com direitos sem cumprirem deveres, que em muitos casos nem sequer distinguem claramente as competências de quem ensina e as suas próprias obrigações. Falta o último passo que, ao que se vê, no ensino secundário há já muito tempo foi dado: transformar as aulas num campo de batalha. Este passo não é inevitável: quero acreditar que, a ser bem aplicado, o previsto sistema de tutorias possa ajudar a melhorar os processos de responsabilização e a articulação entre a vida e a escola, como quero acreditar que a ampliação dos cursos de 2º e 3º ciclo traga para a vida nas escolas superiores pessoas mais amadurecidas e tolerantes. Como acredito nos alunos interessados, empenhados e até afectuosos. Mas temo que, entretanto, algo de mau possa acontecer.

        Claro que a maioria dos estudantes universitários – sei-o por tentar andar de olhos abertos e graças a uma sucessão de óptimas experiências pessoais – não se enquadra neste cenário de catástrofe anunciada. A maioria dos alunos do secundário, acredito, também não se adequará a ele. Só que aos outros, aos elementos de uma minoria a quem é permitido protagonismo, o sistema educativo em vigor e as políticas que estão a ser aplicadas, minando a centralidade do professor na escola como na sociedade, conferem um grau de manobra cada vez mais perigoso. Que o meio social envolvente observa demasiadas vezes com um encolher de ombros.

        P.S. – Pouco deve interessar, em casos como aquele que desencadeou o actual debate, o desculpabilizador discurso pedopsi sobre o telemóvel enquanto prótese. A admissibilidade do seu uso imoderado começa quase sempre em casa e apenas é possível porque, daí até à escola, tem sido mantida toda uma rede de permissibilidade que não deixa muitos jovens perceberem (ou não os obriga a perceberem) que existe uma dimensão de sociabilidade moderadora da utilização lúdica ou produtiva da máquina, de qualquer máquina. Que há vida para além dela.

          Olhares, Opinião

          Maldita Sexta-Feira

          A memória recuada que tenho da Sexta-Feira Santa remete-me para uma memória de medo seguida de perto por um sentimento de revolta. O medo era o da criança de educação católica a quem contavam dos raios e dos coriscos reservados, a par de um lugar no Inferno, a quem ousasse comer carne (embora quem pudesse enchesse a boca de amêndoas e coelhos de chocolate). E como eu sentia vontade, principalmente naquele dia, de comer um enorme bife, com ovo estrelado a cavalo e montanhas de batatas fritas! A revolta sobreveio anos mais tarde, quando as quatro estações da rádio e o canal único de televisão iniciavam quarenta e oito horas de uma programação apenas preenchida com vias-sacras, prédicas, penitências, mensagens do patriarcado, peças de Schumann e de Brahms, e cantorias de igreja de qualidade muito duvidosa, não me deixando, como sempre, entrar em órbita com o programa Em Órbita, minha escola e santuário. «Ao terceiro dia», o domingo de Páscoa emergia como tempo de júbilo e um regresso à vida.

            Etc., Memória

            De livre e espontânea vontade

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            As autoridades chinesas do Tibete garantem que uma centena de pessoas se entregou à polícia, reconhecendo ter participado nos motins de sexta-feira passada em Lhasa, capital do território. (…) Este é o primeiro número divulgado pelas autoridades locais desde a meia-noite de ontem, fim do prazo dado (…) para que os participantes nas manifestações se entregassem. As autoridades prometiam clemência, avisando que quem ignorasse a ordem seria severamente punido pelos seus actos. (publico.pt)

            Os métodos continuam os mesmos. E os silêncios que os acompanham também. Admitindo que aquelas vozes das sombras, capazes de utilizarem nas suas proficientes análises expressões como «a promoção do feudalismo tibetano continua a desenrolar-se», «esse bandalho do Dalai-Lama» e «as tais ‘revoluções coloridas’ da Europa do Leste», já não contarão assim muito.

              Atualidade, Recortes

              30 anos

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              Pedagógico e demolidor o suplemento P2 do Público de hoje sobre os «Trinta anos que mudaram uma ilha». Trinta anos da Madeira de A. J. Jardim, evidentemente. O mesmo que dizer trinta anos de regionalização intensa e de muitas obras, de alguma ou de bastante utilidade, mas também trinta anos de corrupção, arbitrariedade, clientelismo king size e total descontrolo da despesa pública. Um bom exemplo na página 12: à melhor rede regional de edifícios escolares corresponde a maior taxa de analfabetismo do território nacional, o pior índice de aproveitamento, uma das mais elevadas percentagens de abandono e quase sempre os últimos lugares no ranking das escolas. Acrescento outro: uma rede de serviços de saúde megalómana e desproporcionada acompanha aquela que é de longe a maior taxa de alcoolismo do país. Dados que já não surpreendem, mas não deixam de chocar pela impunidade que suscitam. O mesmo no que concerne ao funcionamento obscuro da administração pública, à conivência da hierarquia católica com o poder, à tutela sem princípios da comunicação social, ao emaranhado reticular dos favores, à ausência de transparência nos concursos públicos, à inexistência do regime de incompatibilidades aplicado aos titulares dos cargos regionais, à política do betão que está a destruir a ilha diminuindo a qualidade ambiental e o nível da procura turística, ao endividamento constante e sem controlo. Trinta anos também da maior agressividade sobre quem se limite a denunciar esta vergonha. Tudo sob o olhar indulgente dos sucessivos governos da República. Sempre com um sorriso de circunstância guardado para o actor principal deste longo drama com ares de comédia.

              Adenda – Já que falo do Público, uma nota negativa para um aspecto da nova colecção – para já, aparentemente útil e de fácil consulta – sobre a vida e a obra de alguns dos «Grandes Pensadores» da cultura do Ocidente-Norte: como é possível avançar com uma iniciativa destas, e divulgá-la profusamente, sem identificar a autoria dos volumes? Sinal positivo: disse-me hoje a senhora do quiosque onde levantei o meu exemplar que todos os clientes interessados se queixaram do mesmo.

                Atualidade, Opinião

                Erotismo no Porto

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                No comício-festa que reuniu num pavilhão do Porto a nata e a guarnição das clientelas do PS para «comemorarem» em conjunto «três anos de governo com resultados» foi perceptível, a quem o observou do lado de fora, a presença no ar de uma intensa carga erótica, associada a todo aquele feérico e teatral ambiente de cor, luz, alegria, autosatisfação, cumplicidade e feromonas. O poder funciona de facto como um estupendo afrodisíaco. Estimula a energia e ajuda a pintar o mundo de cor-de-rosa. Enquanto dura.

                  Atualidade, Devaneios

                  Foge!

                  Coimbra, duas da tarde. Na FNAC, à entrada da livraria, um par hetero vestindo o negro, vetusto, trajo académico. Ela, estacando num repente: «Olha, aqui são os livros. Foge!». Ele, claramente o cérebro da parceria: «Não deve de haver aqui nenhum que me interesse». Meia volta, volver.

                  Sei que de forma alguma representam o todo. Ou sequer a maioria. Porém, dados os números conhecidos dos índices de leitura que ocorrem entre os estudantes universitários da cidade, e o sistemático abaixamento dos critérios de exigência nas avaliações, existe uma forte probabilidade de serem dignos representantes da parte acima da média dos mapas bolonheses do aproveitamento escolar. Se disser que é preocupante estarei a ser suave na apreciação.

                    Apontamentos, Atualidade

                    Montparnasse deles

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                    Não li na devida altura (1985) Montparnasse, mon village, de Vasco de Castro. Sim, o Vasco cartoonista que fez outras coisas também. Tratava-se de um exercício de revisitação pela via da memória ao exílio parisiense vivido pelo autor entre 1961 e 1974. Há muito esgotado, o livro acaba de sair em edição revista e aumentada da Campo das Letras, com o título Montparnasse. Até ao esgotamento das horas. Bem sei que aquilo que está a dar é a bastardização de soixante-huitiards mais ou menos assumidos como Vasco e outros que tal (alguns deles, aliás, merecidamente execrados pela folclorização ou pela manipulação que fazem do seu próprio trajecto). Mas não deixa de se revelar empolgante para muitos dos putativos leitores o reconhecimento de uma experiência de elaboração romanesca, contada na primeira pessoa, da solidão, da penúria e do estado de revolta em cenários de invejável felicidade juvenil. Revigorará almas carentes de tal coisa, que as há, que as há. Outras lamentarão com uma furtiva lágrima a usura do tempo. Outras ainda encolherão os ombros e passarão à frente. C’est beau, la vie.
                    Voz de Jean Ferrat

                      Apontamentos, Memória

                      Lindas e despreocupadas

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                      Dois dos mais respeitáveis jornais portugueses – o Público e A Bola – oferecem todas as sextas-feiras um indigente «semanário gratuito» chamado Sexta. Esta semana, o Sexta saiu também no sábado coincidente com o Dia Internacional da Mulher. Sempre «actual», o jornal oferece-nos por isso um «Especial Mulher», patrocinado pela Dove, que transporta a toda a largura da capa, acompanhada de um agradável rosto feminil, a frase «A beleza não tem idade». E aborda todos esses magnos problemas relacionados com tamanho das pálpebras, textura do cabelo, maciez da pele e manutenção da linha que, como se sabe, fazem a cabeça em água às mulheres, já que os homens não se querem bonitos e têm assuntos mais graves com os quais se devem preocupar. Ainda mal desperto, considerei a hipótese de ter retrocedido no calendário até aos anos trinta, quando se mostravam já ténues os ecos da primeira vaga feminista e a segunda tratava ainda de aprender a gatinhar. E, por breves instantes, voltei a datas e a lugares nos quais estas atitudes não eram olhadas com tanta indiferença.

                        Devaneios, Etc.

                        Serviço público

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                        Ainda que continue a sonegar informação crucial para o conhecimento público da história de Portugal no século XX e para o estudo do seu próprio passado – as memórias de Gabriel Pedro, por exemplo –, o PCP acaba de emitir um sinal positivo que talvez possa significar o princípio do fim de uma incompreensível política de secretismo: já se encontram disponíveis em linha e pesquisáveis todos os números do Avante! clandestino (1931-1974).

                          História, Memória

                          Cumpleaños

                          Aquilo que me surpreende quando reparo que este blogue-solo perfaz hoje dois anos de idade não é a rápida passagem dos dias. Dessa já me tinha apercebido lá fora. É a quantidade de dúvidas, incertezas, convicções, iras, tonterias, maldições e cumplicidades que em tão pouco tempo e em frágil horário nocturno aqui pude partilhar.

                          Pós-escrito – Agradecido pelos comentários de polegar para cima e pelas citações simpáticas de tantos blogues. Felizmente, nem todo o povo é sereno.

                            Etc., Oficina

                            Da beleza e do medo

                            Robert Capa
                            Capa na frente de Segóvia (1937) – Gerda Taro, ©International Center of Photography

                            Originalmente em Os Livros Ardem Mal

                            Uma notícia sobre a descoberta de mais uma «mala mexicana» dentro da qual, ao longo de décadas, permaneceram guardados numa caixa de bombons 127 rolos de negativos de Robert Capa contendo cerca de 3500 fotografias que se julgavam perdidas, leva-nos a um dos temas recorrentes entre as representações visuais da história europeia dos últimos setenta anos. Mas a Guerra Civil de Espanha não legou apenas a memória dos seus episódios mais ou menos determinantes, mais ou menos dramáticos, ela alimentou também um lastro estético que se manteve perene no imaginário político das democracias e que, aparentemente sem evidenciar sintomas de fadiga, retorna a todo o momento. As canções de combate, os cartazes de propaganda, os documentários das actualidades cinematográficas, as fotografias que nos chegam, enunciam um pathos heróico, acentuadamente sedutor, que só a nostalgia de um tempo de causas vividas até ao limite e de convicções profundas de alguma forma justifica. E mesmo as imagens de dor e de ódio, tanto quanto as representações de um arrebatamento juvenil que ainda assombra, suscitam esse efeito. Por isso os resíduos do trabalho de Capa agora encontrados permanecem de alguma forma encantadores e capazes de intimarem a nossa atenção. E por isso também perturba um livro como Desertores. La Guerra Civil que nadie quiere contar, do jornalista e investigador Pedro Corral, construído, a contracorrente, sobre as recordações e os vestígios daqueles que de ambos os lados do conflito nos deixaram a percepção de um medo sem limites e de uma intensa vontade de sobreviver, que não ficaram até ao fim, que fugiram e se calaram para sempre. Desvela uma Guerra Civil destituída desse sentido épico e dessa dose de idealismo esteticizado que as velhas e as «novas» imagens do fotógrafo húngaro ainda parecem comunicar-nos.

                              História, Memória

                              Profissão de fé

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                              O Partido Comunista Português manifestou-se colectivamente na rua, esvaziando os «centros de trabalho» e trazendo até à capital muitas pessoas que se identificam com a sua linha política e sobretudo com a sua bandeira. Fazê-lo numa «Marcha Liberdade e Democracia» permite relembrar a história dramática do seu combate contra a ditadura, mas repugna hoje a muitos cidadãos, para os quais a noção de liberdade não se adjectiva nem se relativiza, e deveria valer – aspecto ao qual o PCP não atribui um valor por aí além – a qualquer momento e em qualquer lugar do mundo. A manifestação teve na sua origem o protesto, justo ainda que provavelmente extemporâneo, contra uma nova lei dos partidos que reduzirá a capacidade de intervenção das forças políticas situadas fora do eixo PS-PSD e promoverá uma espécie de retorno serôdio ao modelo arcaico do «rotativismo». Uma boa prova do amor pela liberdade e pela democracia deveria, assim, ter passado por um diálogo franco, e marcado pelo mútuo respeito, com pelo menos uma parte das forças e correntes de opinião que tal lei irá minimizar ou tornar residuais. Ou mesmo com sectores dos grandes partidos do centro que não concordam com o projecto. Mas fazê-lo seria pedir demais à comprovadamente nula capacidade de diálogo dos comunistas portugueses, sempre pouco interessados em participar naquilo que não podem ou não conseguem controlar. E retiraria também ao desfile essa dimensão ritual de autocelebração e profissão de fé da qual o PCP carece cada vez mais. Nenhuma surpresa, pois.

                                Opinião