Author Archives: Rui Bebiano

O que eles querem (ou: o poder do amor)

Um exercício fácil e recorrente, praticado por muitos bloggers, consiste em procurar saber quais são as palavras ou frases que por mediação dos motores de busca fazem chegar até aos seus blogues pessoas que neles não entrariam de outra forma. Há já muito tempo que o não fazia, aqui n’A Terceira Noite. Eis pois o top-30 actualizado dos termos mais invocados desde o seu arranque.

amor – purga em angola – sexo – sexo oral – garganta funda – anos 60 – rui bebiano – gina lollobrigida – pornografia com crianças – pornografia – leitura – gianna maria canale – folclore regional – sofia loren – ciclopes – boletim meteorologico – colunex – vicio – rosalind franklin – pernas – che guevara – rabos – lindas – tango – mulheres vadias – kamasutra – puta – óculos para a noite – smoking – sapatos vermelhos

Apenas por esta amostra, temo que os futuros arqueólogos da blogosfera possam ficar com uma impressão um pouco estranha a meu respeito. Espero que após lerem este post procedam à crítica das fontes e reconheçam a minha idoneidade.

    Etc., Oficina

    Sem tabus

    O Movimento Mérito e Sociedade, esse que «não é de esquerda, direita ou centro» e se pretende constituir como «um fantástico indutor de desenvolvimento equilibrado e sustentado de uma sociedade», acaba de propor medidas para combater a actual vaga de criminalidade que um conhecido penalista julga «inconstitucionais» e «bárbaras». Entre outras sugestões fáceis e demagógicas – como a de definir mecanismos processuais onde a vítima tenha uma palavra a dizer sobre a pena a aplicar ao arguido –, considera que as armas de fogo «não devem ser tabu na nossa sociedade» e precisam ser usadas pela polícia com maior frequência. Presumo que a valorização do mérito individual dos agentes da PSP passe, pois, por exercícios regulares de tiros ao alvo com fogo real. E que o MMS possa entender estas propostas como essencialmente técnicas e desprovidas de qualquer carga política, capazes de estimularem aquele que considera ser «o espírito de conquista e desembaraço dos portugueses». Um tiro para o ar e outro no pé, para começar.

      Atualidade, Democracia

      Esparta vs. Cocanha

      Também eu um dia admirei Louis Antoine de Saint-Just (1767-94). Da Grande Revolução, pouco sabia. Mas entendia, das revoluções modernas, o suficiente para me manter convicto de que elas só poderiam vingar enquanto permanecessem nas mãos dos obstinados e dos que não cedem à compaixão. Aqueles para quem os princípios e os objectivos que norteiam a acção se destinam a impedir todo o retrocesso que não favoreça um novo assalto às posições do inimigo. Para quem, quando se combate pelo poder, apenas existe a vitória total ou a mais peremptória derrota: «Esse homem deve reinar ou morrer», proclamou o filho do capitão de cavalaria de Niévre quando votou na Convenção a favor da execução de Luís XVI, pois aquilo que constitui uma República «é a destruição total do que se lhe opõe».

      Além do mais, Saint-Just era jovem e eloquente, lendariamente belo e teatral, e um exaltado, o que só poderia reforçar a cintilação que exibiu, apenas em dois anos de vida pública, numa época pouco propícia à segurança, à moderação e à prevalência dos valores do passado. E prometia um mundo novo, no qual o poder pudesse ser exercido pelo povo, os magistrados fossem desprovidos de orgulho, os cidadãos vivessem sem vícios, a fraternidade prevalecesse nos relacionamentos, o culto da virtude fosse um princípio, a simplicidade dos modos e a austeridade de carácter pautassem a vida social. O caminho para tal utopia seria, na sua opinião, aberto pelo Terror. Pelo apagamento violento e sem piedade daqueles que a entravavam.

      Combatido pelos sectores moderados e traído por muito dos seus, morreu aos vinte e seis anos, sem direito a julgamento, na guilhotina que ajudara a erguer. Tendo, ao que dizem, ou seguindo a lenda, sido o único do grupo preso na manhã de 10 do Termidor a avançar sereno, a passo firme e em completo silêncio, para o cadafalso que o esperava.

      Afirma-se que Danton terá dito certa vez, a seu respeito, não gostar nada «daquele extravagante» que pretendia implantar em França «uma República de Esparta» quando era de «uma República da Cocanha» que os franceses precisavam. O «anjo da Revolução», ou «da morte», ainda sobreviveu praticamente três meses a Danton, mas o combate entre os que se batem, na evidência de um indeclinável pathos, por arquétipos que situam acima do indivíduo e no campo das paixões, e aqueles outros que longe de quaisquer perigos, apelando a um previsível e racional logos, apenas preferem navegar por calmos rios de vinho e de leite, sobreviveu-lhes. Continua a ser ciclicamente renovado, ciclicamente alimentado. Jamais se entenderão, uns e outros. Jamais desaparecerão também.

        Atualidade, História, Olhares

        Fim de festa

        Os Jogos de Pequim fecharam e, antes ainda dos balanços, é hora de repousar das emoções. A cerimónia de abertura trouxe um instante de frescura a contrastar com os últimos discursos dos engravatados e hirtos «poupas altas»(*): a entrada no relvado do gigantesco Ninho de Pássaro de Boris Johnson, o mayor conservador de Londres – conservador, repare-se – que se apresentou descontraído, de fato amarrotado e casaco sem os dois primeiros botões apertados(**), para receber com um gesto nada protocolar a bandeira olímpica que a sua cidade sustentará até 2012. Entretanto, na capital britânica, uma multidão preparada mas informal contrastava com as rígidas coreografias que qualquer cidadão atento terá notado terem sido mantidas, mesmo durante as provas, nas bancadas e nas ruas preenchidas com sempre risonhos e embandeirados chineses, que muitas vezes pareciam saber exactamente em que momento iam ser focalizados pelas câmaras. As democracias não são capazes de alardear tal perfeição nas exibições de capacidade de organização e mando, e essa é uma qualidade sua que devemos preservar.

        (*) Como eram conhecidos, por parte significativa da população da antiga República Democrática Alemã – e até por agentes menores da STASI -, os altos dignitários do Partido e do Estado. Existia, em diversos edifícios oficiais, um serviço de cabeleireiro destinado a conservar a «rigidez de Estado» das cabeleiras dos dirigentes, ou, se possível, a disfarçar-lhes calvícies precoces. A petite histoire por vezes é muito útil.
        (**) JCE ter-se-á revolvido no túmulo.

          Atualidade, Opinião

          Ainda sobre os comentários

          Vai-me perdoar o Eduardo Pitta, mas um comentário negativo sobre a minha decisão de encerrar os comentários, vindo da parte de alguém que os não mantém no seu blogue, é coisa que não entendo muito bem. Já agora: quem ler com cuidado o meu anterior post sobre o assunto notará que a última discussão que nele teve lugar – a qual, apesar do equívoco gerado, até foi razoavelmente interessante e civilizada (sim, gosto da palavra) – não foi aquilo que determinou a minha decisão. A opção foi amadurecida, as causas foram explicadas e não quero, pelo menos por agora, ir mais longe. Aproveito para agradecer as mensagens de compreensão, uma dezena, de discordância, duas, ou de perplexidade, uma só, que entretanto tenho recebido. Bem como as referências, quase todas elas amáveis, que diversos blogues fizeram à minha escolha.

          Minutos depois…: Eduardo Pitta juntou uma nota ao seu post que me levou a relê-lo com maior atenção. Tresli apressadamente aquilo que ele tinha escrito, e vejo agora que estamos de acordo no mais importante. Aqui fica a correcção do tiro e obrigado pelo esclarecimento.

            Oficina

            Spitting Leaders

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            Quatro dos mais notáveis déspotas de todos os tempos – Luís XIV, Hitler, Estaline e Franco – foram reunidos no conjunto público de estátuas-cuspideiras Spitting Leaders, da autoria do escultor madrileno Fernando Sánchez Castillo, que acaba de ser instalado na já nossa conhecida localidade galega de Caldas dos Reis. Carlos Jiménez, no Babelia, define-o como parte de uma estratégia colectiva proposta por um conjunto de artistas espanhóis que têm vindo a questionar o «imaginário residual do franquismo». Artistas que, elegendo como temas do seu trabalho os Balcãs, as Torres Gémeas, Guantánamo ou Francisco Franco, resistem «a ver a arte reduzida a um espectáculo de massas ou a vê-la confinada ao silêncio das salas». Para quem o ser humano «será o Homo ludens reivindicado por Johann Huizinga, mas nem por isso deixou de ser o Zoon politikón de Aristóteles». Este conjunto parece merecer uma visita. Particularmente aconselhável aos nossos autarcas que enchem praças e jardins de insossos mamarrachos.

              História, Memória, Olhares

              Marco

              Terei sido dos primeiros a atirar uma pedra a Marco Fortes, o nosso lançador de peso que, após ter sido eliminado da sua prova olímpica com uma marca muito inferior a outras que já havia obtido, nos falou de como de manhã «está bem é na caminha». Ouvi a frase bem cedo – bem mais tarde em Pequim, como é sabido – enquanto seguia de carro, e pouco depois escrevia um post servindo-me dela. Porque me parecia a cereja no topo do estranho bolo cozinhado com todo um conjunto de desculpas esfarrapadas das quais se serviram diversos atletas portugueses. A frase propagou-se por diversas vias e, por causa dela, Marco viu-se expulso da comitiva, forçado a regressar a Portugal e crucificado por meio mundo.

              Só depois disso ouvi entrevistas de Marco Fortes, anteriores e posteriores ao momento da tirada. Li algumas notícias e vi reportagens, percebendo que Marco é uma pessoa de origem humilde, a quem o atletismo tem servido como espaço de valorização social, e que utiliza com frequência o humor e a ironia como forma estar no seu mundo. Aquilo que disse, parece-me agora claro, pode ter sido uma forma de se desculpar, mas foi também uma forma de ironizar consigo próprio. Foi um pouco infeliz? Foi-o, sem dúvida, como o próprio atleta reconheceu pedindo que lhe perdoassem a gaffe. Mas quem nunca pronunciou uma frase infeliz? Peço desculpa a Marco Fortes pela leviandade. Há já três dias que apaguei o referido post e mesmo assim fiquei com alguns remorsos.

                Apontamentos, Atualidade

                O bom homem, a beldade búlgara e o cavalheiro

                Posso? A direcção do Expresso que não leve a mal a intrusão mas penso – sinceramente e sem ponta de sarcasmo – ser um grande equívoco a inclusão da coluna perpétua de João Carlos Espada na secção Editorial & Opinião, devendo esta transitar para uma página par do suplemento Única. O seu «tema de Verão» de hoje ilustra na perfeição a pertinência do alvitre. Apenas para quem esteja menos treinado no pensamento social do referido autor aqui vai um aviso: esta é só mais uma pequena peça do seu assombroso cubo mágico. Resisti a sublinhar algumas frases extraordinárias.

                Um dos mais difíceis temas de Verão é o da influência da temperatura no código de vestuário. O assunto terá perdido alguma premência com a nova moda masculina de prescindir da gravata – uma tendência entusiasticamente promovida pelo actual Presidente do Irão, cujo nome me escapa. Mas a gravidade do tema está ainda presente nalguns sectores.

                É o caso do Oxford & Cambridge Club, em Londres. Todos os anos a «newsletter» de Julho inclui uma nota sobre o calor e o traje. Recorda ela, basicamente, que as altas temperaturas não anulam o «dress code» do Clube, embora algumas atenuantes sejam concedidas. Estas incluem a não obrigatoriedade de gravata até às 11 da manhã, aos dias de semana, e ate as 18h, nos fins-de-semana. Mas o casaco continua a ser obrigatório a todas as horas, a menos que um dístico à entrada, nos dias mais quentes, assim o anuncie.

                A nota prossegue recordando que, nestas excepcionais ocasiões, os cavalheiros sem casaco devem usar camisas de manga comprida abotoadas no punho. E adverte, em tom decidido, que «T-shirts e outras camisas sem colarinho, mesmo quando usadas com casaco, nunca são permitidas no Clube».

                Tendo lido esta nota numa manhã de lazer, decidi promover um inquérito sobre o tema. No balcão do bar, interroguei o velho empregado, um imigrante grego há décadas instalado nesta área do Clube. O bom homem pareceu surpreendido com a minha pergunta sobre a razão de ser do «dress code». O assunto parecia-lhe óbvio: «Este é um ‘gentlemen’s club’, sir».

                Resolvi insistir com a dúvida cartesiana: «por que razão devem os ‘gentlemen’s clubs’ dar tanta importância ao código de vestuário?». A resposta foi pronta, após ligeira hesitação: «Porque, caso contrário deixariam de ser ‘gentlemen’s clubs’».

                Interroguei em seguida a jovem beldade que se encontrava na recepção do clube, logo à entrada do 71 Pall Mall. Chegara há uns meses da Bulgária, e gostava imenso de Londres, assim como de trabalhar no clube. Código de vestuário? É claro, disse-me ela, trata-se de um ‘gentlemen’s club’. E eu concluí, já instruído pelo grego do bar: se não tivesse código de vestuário, deixaria de ser um ‘gentlemen’s club’? Ela envolveu-me num amplo sorriso: «Esse é exactamente o ponto, sir. É como dar gorjeta: não pode dar gorjeta aos empregados, nem estes podem aceitá-la, num ‘gentlemen’s club’». Finalmente, com um novo sorriso envolvente, rematou: «Eu realmente adoro este vosso clube. Devíamos ter clubes destes, na Bulgária. Mesmo assim, eu preferiria Londres».

                  Apontamentos, Devaneios

                  Sobre os comentários (ou a sua ausência)

                  A dilatação do universo dos blogues e do seu grau de centralidade na expressão pública de opiniões tem entrado muitas vezes em conflito com o funcionamento das caixas de comentários. Aquilo que num contexto mais restrito era nestas, até há pouco, a excepção, transformou-se entretanto na norma, passando a ouvir-se cada vez mais vozes de quem dispõe de tempo e estrutura mental para, em vez de debater com franqueza e abertura, investir no questionamento ou na parasitagem das escolhas dos outros, na agressividade e até na dissimulação. A expansão do proselitismo no meio apenas tem agravado a situação. Quando alimentado, este ambiente torna-se incómodo para muitas pessoas, desviando leitores e descredibilizando certos blogues. No meu caso tornando por vezes difícil de gerir aquilo que antevia apenas como um prazer e mais uma via para comunicar informalmente com os outros.

                  O facto de ter sido quase um dos pioneiros da Internet em Portugal, ligado a espaços de debate muitos anos antes de existirem blogues, não deixou de guiar a minha tentativa de contornar esta situação através de duas suspensões periódicas, e, mais recentemente, do recurso a algumas regras que durante certo tempo foram servindo. Mas como elas já não são suficientes, e eu pretendo continuar a frequentar estas paragens sem consumir grandes energias, em A Terceira Noite os comentários foram encerrados. Não se tratou de uma decisão precipitada ou motivada por alguma conversa recente, mas sim de uma vontade que vinha amadurecendo há largos meses. Conservaram-se os comentários existentes, pelo respeito que merecem aqueles e aquelas que dando a cara e o nome se foram servindo deles. Afinal, quem me segue aqui apenas terá de fazer aquilo que faz habitualmente com um jornal: lê e opina para si e para os seus, ou escreve ao autor, ou cita o que achar pertinente, ou abre um blogue para falar daquilo que lê ou do que lhe possa passar pela mente. O endereço de e-mail d’A Terceira Noite estará sempre aberto. E o meu, mais pessoal, é facílimo de obter. Em frente.

                    Oficina

                    O álbum mais triste do mundo

                    Josef Koudelka

                    Da autoria de Josef Koudelka e editado pela Thames & Hudson, Invasion Prague 68 deve ser o álbum de fotografia mais triste do mundo. Em 1968, com 30 anos, Koudelka nunca tinha fotografado guerras ou revoluções. Chegara da Roménia, onde andara a perambular retratando ciganos, no dia anterior à invasão, e a partir da madrugada de 20 para 21 de Agosto não parou de disparar a câmara. Muitas das fotografias que então tirou foram divulgadas pela agência Magnum, mas foi apenas em 1986, quando os laços familiares no interior da Checoslováquia desapareceram pela morte do pai, que a sua autoria foi revelada. Quarenta anos depois, 250 dessas fotografias – uma grande parte delas aqui mostrada pela primeira vez – foram seleccionadas para esta obra impressionante. (mais…)

                      História, Memória, Olhares

                      Por uma liga hanseática de livrarias decentes

                      Originalmente em Os Livros Ardem Mal

                      Um texto de Osvaldo Manuel Silvestre sobre a impossibilidade de encontrar um único título de Jorge Luis Borges nas livrarias de Coimbra, e depois dele o seu útil post-scriptum, suscitaram um comentário de João Diogo seguido de uma resposta do primeiro. Ficam os links para quem pretenda conhecer os seus argumentos – que se completam mais do que se contrariam -, pelo que me limito a abordar o problema principal que a ambos preocupou. Refiro-me à gestão dos stocks de livros na sua relação com um certo número de inquietantes alterações perceptíveis na fisionomia de boa parte das nossas livrarias e dos seus clientes. Um problema associado à crescente dificuldade que têm os grandes leitores, os verdadeiros e obstinados amantes dos livros, em encontrarem as obras que procuram ou que gostariam de poder descobrir quando deambulam pelo interior de livrarias que cada vez mais se banalizam. Confundindo-se, na disposição espacial e no modo de estar dos seus frequentadores, com os alegres e ruidosos corredores dos grandes centros comerciais e dos hipermercados. E nas quais esses leitores se não sentem bem.

                      Osvaldo Silvestre fala daqueles, e eles são cada vez mais, que estão a deixar de ir às livrarias, preferindo mandar vir os livros pela Internet, e sugere, a meu ver bem, que tal se fica a dever ao facto dessas pessoas acharem cada vez mais inútil, e quase sempre pouco agradável, o tempo que despendem a deslocarem-se a espaços nos quais apenas se privilegiam as obras e os autores divulgados em campanhas promocionais na televisão ou na imprensa sensacionalista, e onde os restantes títulos são empurrados para estantes remotas ou simplesmente ignorados, ao mesmo tempo que a antiga relação de cumplicidade com os leitores habituais é abolida. Fala daqueles a quem a disposição estratégica das grandes redes de livrarias e a capacidade financeira dos conglomerados editoriais não agradam porque impõem regras que condicionam as escolhas dos leitores, forçando-os a optarem entre os livros que lhes são colocados diante dos olhos sem terem sequer, muitas das vezes, a hipótese de saberem que se escreve e se edita muito mais. Sem terem a possibilidade de perceber que é possível comprar de uma forma diferente, menos condicionada e automática, como escolha cultural e momento de descoberta.

                      Já João Diogo compreende estas queixas mas fala de uma certa inevitabilidade dos processos de mudança que se relaciona com as características actuais do mercado livreiro e a necessidade deste recorrer a estratégias de venda idênticas às utilizadas para outro tipo de bens de consumo. Entende, por um lado, que o alargamento do número de títulos torna impossível, mesmo a um grande leitor e a um cliente endinheirado, a aquisição da maioria deles, revelando-se imprescindível a afluência de pessoas que, apesar de no máximo comprarem apenas dois ou três livros por ano, permitem, uma vez que são em grande número – fala-se aqui, naturalmente, de quem compra apenas os tais títulos que lhes são colocados diante dos olhos – equilibrar a contabilidade das lojas e aumentar o volume de vendas de determinados títulos. Mas anota, por outro, que o elevado número de livrarias existente na sua relação com o universo de potenciais leitores – e Coimbra é hoje, de facto, um caso típico – retira à maioria delas capacidade para poderem investir num stock muito mais alargado e diversificado de títulos, capaz de satisfazer um leque também ele muito mais amplo de leitores.

                      Mesmo sendo ainda poucos em termos europeus, dizem inquéritos recentes que os leitores que hoje temos são mais, bastantes mais, do que aqueles que possuíamos há cerca de dez anos ou quinze atrás. Porém, sendo verdade que se lê mais, também é verdade que se lê mais superficialmente, do que resulta, em parte, o impacto de um certo tipo de livros e a estagnação ou o recuo do interesse por outros, sobretudo por aqueles que requerem algum treino da técnica de leitura, algum lastro cultural e uma sensibilidade particular. Todavia, continua a existir para estes, principalmente nos principais centros urbanos, um público de leitores mais exigentes e com formação que se mantêm como grandes compradores de livros. E são estes que preferem as livrarias nas quais podem encontrar aquilo que procuram, onde podem deparar com espaços para a descoberta, onde gostam de se sentir bem, de serem reconhecidos, de saberem que não estão num lugar que vende livros tal como poderia vender sapatos, pipocas ou acessórios para computadores.

                      Atendendo às dificuldades reais que todos reconhecemos, a sobrevivência das livrarias que não cedem ao processo fácil de se deixarem reduzir à condição de entrepostos para títulos empurrados para os tops de vendas deverá passar por uma colaboração entre elas. Não será possível então criar-se uma espécie de liga hanseática de livrarias decentes, em condições de se dirigir a quem gosta mesmo de livros, de gerir stocks comuns, e, um pouco como acontece já com as redes de bibliotecas, de efectuar permutas em função dos interesses dos clientes, reduzindo dessa forma os condicionamentos financeiros impostos por um armazenamento disperso? Admito que chegar a tal disposição requeira imaginação, bastante iniciativa, algum tempo e muito trabalho. Mas todos nós, aqueles que amamos a leitura, que continuamos a encher as nossas casas com livros e mais livros, e que não pertencemos ainda a uma espécie em vias de extinção, agradeceríamos o esforço. E até pagaríamos por isso.

                        Olhares

                        Três revistas

                        Mesmo em tempo de Internet, as revistas especializadas de grande circulação publicadas em papel dão-nos imenso jeito como fontes de informação actualizada, veículos de opinião ou pontos de partida para aceder a determinados temas. As que circulam entre nós são quase exclusivamente estrangeiras, com um claro destaque, em campos como a história, a literatura, a filosofia ou as ciências sociais, para aquelas que se publicam em França. O que apenas será estranho se não considerarmos que a maioria dos seus compradores pertence a um segmento social e etário cuja formação conservou ainda o francês como segunda língua. São pois em francês os três números temáticos de revistas que aqui destaco e podem ser encontradas em alguns quiosques e livrarias.

                        A Philosophie Magazine é sobre um tema – XXe siècle. Les philosophes face à l’actualité – particularmente útil numa época de desvalorização do papel interventivo do intelectual e da sua revisão como conceito operativo. Comporta largas dezenas de fragmentos de intervenções públicas de importantes filósofos, colocando-os em confronto com as suas circunstâncias. De Bergson, Berdiaev, Kraus ou Benjamin até Baudrillard, Zizek, Enzensberger e Amartya Sen, sucedem-se intervenções participativas sobre temas como a guerra, a revolução bolchevique, a ascensão dos fascismos, o Holocausto, a questão colonial, os feminismos, os acontecimentos de 1968, a conquista do espaço, a queda do Muro, o neoliberalismo, o «choque de civilizações», a globalização ou o conflito real-virtual.

                        Já o Magazine Littéraire publica um número especial que tem como assunto La Passion – théâtre de l’existence. Aqui o objectivo é coligir cerca de três dezenas de artigos publicados na revista, ao longo de mais de vinte anos, tendo sempre em conta uma dupla abordagem da paixão, seja esta afirmada por um ser amado, por uma causa, por uma actividade ou por uma ideia. A primeira abordagem é talvez a mais antiga, e é associada a um certo desregulamento da personalidade, a uma forma de exaltação ou de doença. A outra, mais recente, aproxima-a do desejo, da vertigem, da exaltação. Flutuando sempre entre a melancolia e a acção.

                        Para fechar, o bimensário Manière de Voir, editado pelo Le Monde Diplomatique, preocupa-se na edição de Agosto-Setembro com De Lénine à Poutine: Un siècle russe. Esta será, sem dúvida, a mais controversa das três publicações. Por ser a única que oferece textos centrados num tema cujas ondas de choque permanecem, tanto ao nível das representações de um passado recente como no que diz respeito aos contornos do mundo contemporâneo, plenamente activas. Estes distribuem-se por três partes organizadas cronologicamente: a primeira vai da Revolução de Outubro à resistência perante os nazis, a segunda parte da Guerra Fria e fecha com o aparecimento da perestroika, e a última ocupa-se do tempo preenchido com as presidências de Yeltsin e de Putin. É na primeira parte, centrada nos fundamentos do regime soviético e na perversão do Gulag, que se torna possível detectar os textos mais polémicos. Mas os mais perturbantes são aqueles que revelam a Rússia actual como um território que se mantém perigosamente inflamável.

                          História, Opinião

                          Dos malefícios do esperanto

                          «- Sou esperantista, compreende? Trata-se de uma linguagem universal. Para mim não é inglês básico. Foi por isso que fui condenado. Sou membro da Sociedade de Esperantistas de Moscovo.
                          – Você quer com isso dizer Artigo 5, Parágrafo 6? Espião?
                          – Obviamente.
                          – Dez anos?
                          – Quinze.»

                          Varlam Shalamov, Kolyma Tales

                          Em Abril de 1973 começava a cumprir o serviço militar quando fui por duas vezes interrogado por um inspector da PIDE. Tive sorte e não fui demasiado apertado: sei que a minha condição de militar no activo e o facto de os interrogatórios terem decorrido dentro do quartel e com conhecimento do comando me deram alguma protecção. O pide era do tipo paternalista, vagamente sorridente e na aparência cheio de tédio por estar a perder tempo com o que lhe parecia ser peixe miúdo. As perguntas foram vagas e nunca me pediu nomes ou moradas. Enquanto escutava aquilo que eu tinha a dizer sobre a minha própria vida – omitindo no questionário, por exemplo, quaisquer referências à organização na qual eu militava, o que confirmava uma certa dificuldade da PIDE no cruzar das informações – tomava apontamentos e ia-me dando alguns conselhos como «tenha juízo», «veja lá o que anda a fazer» ou «não estrague a sua vida». Em ambas as sessões, porém, um tema permaneceu recorrente: ele insistia em saber se eu conheceria alguém que estivesse ligado à divulgação do esperanto. Na altura não percebi muito bem os motivos da insistência, mas sei hoje algumas coisas sobre o movimento esperantista que me ajudam a entendê-la.

                          O esperanto surgiu em 1887, o ano da publicação de Unua Libro – o primeiro livro sobre o assunto, da autoria do judeu russo Ludwik Lejzer Zamenhof –, como uma língua franca, muito útil em viagem, na troca de correspondência, no intercâmbio cultural ou na organização de encontros internacionais, e teve particular divulgação durante primeiras três décadas do século XX. Foi sem dúvida a sua capacidade para derrubar fronteiras e para criar um universo de comunicação paralelo que instigou a desconfiança, e depois a acção repressiva, por parte dos regimes totalitários. Sob Hitler e Estaline foi mesmo proibido e inúmeros esperantistas foram perseguidos, detidos ou mortos. Entretanto, a nova língua começara a ser divulgada entre as correntes libertárias, que procuravam um meio capaz de facilitar as ligações entre organizações de trabalhadores de vários países, o que acabaria por levar a um aumento da suspeição por parte das autoridades.

                          Em Portugal, terá sido sobretudo por influência do anarco-sindicalismo que o esperanto obteve alguma influência, chegando a ser acolhido pelo PCP, na sua primeira fase, como instrumento de mobilização. Talvez fosse em parte por aí que o regime, como todos os regimes que temem a circulação sem barreiras da informação e da opinião, o tenha passado a olhar com desconfiança, se bem que nos inícios da década de 1970 – e daí a minha estranheza com a insistência do pide – ele parecesse estar bastante frágil e confinado a pequenos núcleos de entusiastas mais ou menos isolados. Mas até poderia ter acontecido que tudo aquilo resultasse de uma qualquer mania do indivíduo. Um tema que não me importaria de conhecer melhor e um pequeno mistério que gostaria de desvendar. Quem sabe se por esta via lá poderei chegar?

                            História, Memória

                            «Já o tinha afirmado o Génesis…»

                            Um artigo de opinião que saiu no Público, assinado por Pedro Vaz Patto, desenvolve mais uns quantos parágrafos em apoio da grande cruzada da direita católica contra a legitimação das uniões entre pessoas do mesmo sexo. Não vale a pena perder muito tempo com o essencial da argumentação, uma vez que esta apenas retoma os conhecidos clichés a propósito da impossibilidade, em tais uniões, de se consumar uma preconceituosa «função social do casamento» assente na actividade reprodutora do par. Este raciocínio primário já o ouvimos alto e em bom som pelo menos desde os idos de 1982, dando então lugar à memorável altercação de Natália Correia(*) com o deputado centrista João Morgado.

                            Mas aquilo que é particularmente grave neste artigo é que o seu autor avança numa direcção menos usual e que é inadmissível na boca de um jurista. Acontece «apenas» que ele deixa implícita, na forma ligeira como se refere ao assunto, a menoridade social e jurídica daquilo a que chama o «casamento de casais estéreis». Na sua cabeça claramente confinado a uns desventurados que devem ser olhados como pessoas incompletas. E deixa obviamente de parte a possibilidade da existência – sabe-se hoje cada vez mais presente na nossa vida colectiva – de uns quantos depravados que não têm filhos por lhes ser impossível educarem de forma estável uma criança ou simplesmente por opção de vida. A desumanidade destas pessoas de credo na boca é apenas brutal.

                            (*) Lateralmente mas a propósito: que jeito nos dariam hoje uns quantos deputados menos pusilânimes, assim da têmpera da Dona Natália!

                              Atualidade, Opinião