Arquivos Anuais: 2011

Erva no asfalto

London 2011

Com uma vocação natural para tomar o partido dos mais fracos, tenho dificuldade em orientar-me quando tento perceber de que lado estão os bons e os maus nos motins que incendeiam a periferia de Londres e de outras cidades inglesas. Mas porque a vontade de justiça não é impeditiva de pensar um pouco, contorno a perspectiva simplista que tende a explicar o que está a acontecer desculpabilizando «os miúdos» bons – que por impulso partem, batem, queimam ou roubam – e apontando o dedo acusador apenas ao «sistema» mau, que os remete sem remissão para essa fila do fundo de onde procede a revolta.

Existe, claro, um ambiente de injustiça social que empurra aqueles rapazes – quase só rapazes, já repararam? – para a ira desmedida e sem desígnio perceptível. Como existe o problema dos lojistas remediados, dos trabalhadores anónimos, dos imigrantes à procura da sobrevivência, que vêm o seu ganha-pão e os seus pertences volatilizados por pessoas das quais se distinguem apenas pelo facto de possuírem um trabalho, um pequeno negócio, acesso a uma vida sóbria mas digna. Não pode excluir-se, evidentemente, a teoria do sintoma, que nos fala sempre do fumo que nasce do fogo, que insiste em que a revolta resulta do medo de um futuro que não pode ser vislumbrado com esperança. Como também não pode esquecer-se o efeito de imitação, que transforma a violência gratuita em exemplo a copiar. Ocorre aqui, de facto, uma «culpa sistémica», partihada, provocada por políticas que empurram tantos jovens para a falta de perspectivas, a miséria material, o bloqueio moral, o desrespeito do outro.

Mas existe também uma outra qualidade de culpa que deve ser imputada aos governos, aos partidos que disputam o poder, ao sistema escolar, até aos sindicatos, que, predominantemente preocupados com quem consome, com quem vota, com quem trabalha ou está em vias de o fazer, com quem paga impostos e por isso «conta», se têm muitas vezes esquecido dos marginados, dos precários, dos imigrantes, dos excluídos, principalmente jovens, que têm crescido sozinhos, à toa, «fechados na rua», como uma erva daninha, sem que ninguém se preocupe muito com ela enquanto não começar a invadir o asfalto. Foi isto, parece, que agora aconteceu. E da pior forma possível.

    Atualidade, Democracia, Opinião

    Três personagens (e mais um)

    Leonardo Padura

    O desígnio comunista, o ideal que se aplica a projectar um mundo mais justo, menos desigual e por isso presumivelmente melhor, convive com um espectro que lhe ensombra as noites e lhe atrapalha as rotas. A compleição colossal deste fantasma compreende três partes que funcionam em conjunto. A primeira integra o corpus teórico que definiu a teoria da luta de classes e a adaptou à tomada e à conservação do poder pelos autoproclamados mandatários da «classe revolucionária». A segunda parte comporta a experiência catastrófica, bestial e vencida do «socialismo real». A terceira inclui a organização e a prática dos partidos e organizações que juram lutar pelo comunismo sem serem capazes de ajustar as contas com a experiência histórica que o perverteu. Enquanto esta massa não for compreendida e desmembrada, dificilmente o ideal comunista recuperará a sua capacidade para conquistar milhões de partidários e de simpatizantes e para gerar futuros desejáveis e plausíveis de justiça e de liberdade. A percepção deste problema – e desta necessidade também – é uma boa chave para a leitura de O Homem Que Gostava de Cães, o último livro do escritor cubano Leonardo Padura. (mais…)

      Atualidade, Ficção, História

      Descer para baixo

      marxismo

      Como existe quem saiba – e eu até agora julgava consabido – «mais-valia» é o termo, ou o conceito, desenvolvido por Karl Marx para se referir à diferença entre o valor da mercadoria produzida e a soma do custo dos meios de produção e da força de trabalho que são necessários para a obter. Na sua aplicação se situa a origem do lucro, considerado injusto e parasitário pelo filósofo alemão, que constitui a mola real do sistema capitalista e a pedra basilar da explicação que dele ofereceu a economia marxista. Uma expressão que surpreendi este sábado num comentarista desportivo da SportTV que ostentava o epíteto de «professor» – ou por este título era respeitosamente tratado pelo repórter de serviço – é reveladora do modo como, após décadas de omnipresença, Marx, a par de outros pensadores fundamentais do mundo contemporâneo, está a desaparecer da formação universitária mais elementar. Entre largas dezenas de dislates, de palavras inadequadas e de erros do português básico que não vêm agora ao caso, referia-se o tal comentarista-professor a determinado jogador de futebol como representando para a sua actual equipa «uma mais-valia, passe a redundância».

        Apontamentos, Devaneios, Olhares

        O ruído do silêncio

        rua israelita

        Não é apenas por ser Verão e o número de cidadãos alheados dos infortúnios do mundo aumentar sempre com os calores da estação. Também nos meios habitualmente activos e interessados na mudança parece existir um pacto de silêncio em relação ao que está a acontecer agora mesmo em dois Estados do Oriente Médio. Na Síria, as cidades são bombardeadas sistematicamente pelo exército enquanto os manifestantes pró-democracia, presos, torturados ou simplesmente assassinados – «financiados pela CIA», bradam os mensageiros do costume – esperam em vão por iniciativas diplomáticas que ninguém toma. Fica assim o tirano Assad com as mãos livres para fazer o que bem lhe apetece. Uma boa prova de que do «não-intervencionsimo absoluto» pode resultar uma efectiva cumplicidade com o crime mais ignóbil. Em Israel, manifestações com uma dimensão sem precedentes questionam na rua as políticas sociais do governo, mas a solidariedade de quem do lado de cá se bate por idênticas causas permanece muda, queda e invisível. Outra prova de que do «anti-semitismo primário» facilmente pode resultar uma grande capacidade para confundir o justo com o injusto. Em ambos os casos, o activismo selectivo, mais preocupado com os meandros da política interna e os equilíbrios geoestratégicos, com o que importa invocar e o que interessa calar, do que com a vida efectiva das pessoas concretas, convive pacificamente com a iniquidade. Cala e por isso consente.

          Apontamentos, Atualidade, Democracia

          Atestado de pobreza

          Atestado de pobreza
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          Talvez seja um reflexo condicionado pela interferência da memória num horizonte mais imediato, mas é-me difícil deixar de ligá-lo a um tempo no qual o «Estado social» ainda não tinha passado a representar «um peso». Quando sigo o conjunto de medidas paliativas do Plano de Emergência Social proposto pelo governo e as vejo muito mais fundadas numa lógica caritativa de apoio aos indigentes do que num processo digno e eficaz de recuperação dos cidadãos carenciados ou marginalizados pela via da qualificação e da reinserção, regresso àquele tempo no qual o limiar mínimo da sobrevivência estava – quando estava – assegurado pelo velho «atestado de pobreza». A nódoa vexatória, a marca de exclusão, está de regresso, em nome de uma resposta das «boas consciências» às necessidades mais elementares das pessoas, e estas são cada vez mais, que subsistem no limite.

            Apontamentos, Memória, Olhares

            Cortar na silly season

            silly season

            Está tudo tão difícil de engolir, tão apertado nas costuras, tão sério nas consequências, tão sombrio nas previsões, que por mais que se revolvam suplementos de verão, jornais nacionais e regionais, magazines televisivos ou radiofónicos, blogues para todas as estações, dificilmente encontramos agora as habituais chamadas de atenção para as trivialidades garridas e um tanto obscenas da silly season. Os tons pastel dominam este ano as paisagens de Verão e esse não é propriamente um sinal positivo.

              Apontamentos, Etc.

              Gares, comboios e o resto

              A partir da década de 1830, com a abertura das primeiras linhas preferencialmente destinadas a passageiros, a Europa e as Américas descobriram no caminho de ferro uma dimensão da utopia. O novo meio de transporte permitia agora percorrer enormes distâncias a velocidades inauditas, construindo, para quem tinha a possibilidade de viajar, uma forma radicalmente nova de apreender o mundo, os mapas, as fronteiras, as paisagens, as relações humanas, os negócios, o conhecimento e até a memória. A literatura oitocentista testemunha mil vezes a participação do comboio e das suas linhas na aceleração dos enredos, na verbalização do fascínio romanesco por uma geografia renovada feita de chegadas, de partidas e de movimento.

              Esta dependia em larga medida do traçado em rede, que dava azo a que as antigas jornadas lineares, normalmente por etapas, ganhassem agora novas configurações, mais complexas e ao dispor da vontade e da bolsa dos viajantes que se multiplicavam. Mas não servia apenas para os levar a conhecer mundos, uma vez que esses mundos podiam também desembarcar nas cidades. Eça fala-nos do alvoroço dos estudantes que peregrinavam semanalmente até à estação de Coimbra para verem chegar, e logo ali serem abertos, os caixotes contendo as últimas novidades literárias da admirada Paris. O Sud Express surge então como parte do que se acreditava poder vir a ser uma linha continental capaz de unir Lisboa a São Petersburgo. Foi a expansão dos nacionalismos, culminando com as duas guerras mundiais e a afirmação dos Estados autoritários assentes no controlo dos cidadãos, que tornou impossível, e por vezes pintado de negro carregado, o devaneio oitocentista. O medo e o desespero apoderaram-se então das gares e das carruagens, tantas vezes «rigorosamente vigiadas», como evocava o filme de Jirí Menzel.

              O fim das ditaduras e o derrube do Muro poderiam ter deixado que a utopia ferroviária retomasse o seu caminho, mas entretanto o uso das estradas já se havia tornado determinante. A linha de comboio, no entanto, não deixou de continuar associada a um certo padrão de viagem, tendo ao longo de décadas ajudado milhões de jovens a descobrirem o seu continente e gerações de trabalhadores a ganharem as suas vidas. Habitando o nosso imaginário colectivo, ela está agora em condições de ajudar a resolver muitas das dificuldades de transporte que a crise económica está a impor à maioria dos cidadãos. O comboio tomado – excepto para quem continue a comprar os pacotes turísticos que simulam os míticos Expresso do Oriente ou o Transiberiano – já não como espaço previsível de «aventura e descoberta» mas como uma necessidade e um veículo para ir traçando sucessivas linhas da vida. Assim o considerem as autoridades públicas, antes que os carris abandonados fiquem cobertos de pedregulhos, ervas daninhas e ninhos de serpentes.

              Fotografia: Marta Bevacqua, The Train

                Apontamentos, Atualidade, História, Olhares

                O troco da memória ofendida

                memória

                A partir de «Em Angola era o paraíso», um post da Isabela Figueiredo sobre o hate mail que lhe chega conectado com o Caderno de Memórias Coloniais, aterro num tema que se tem cruzado regularmente com o meu trabalho. Em grande parte por ser historiador e por nessa condição – ou na de crítico, ou na de cidadão opinante, que regularmente também exerço – me ocupar sobretudo de um tempo recente, próximo, ainda quente, testemunhado por muitas pessoas que, mais ou menos novas, permanecem vivas, confronto-as, e vejo-me confrontado porque eu mesmo fui parte do tempo que observo e do qual falo, com uma constatação que a todos perturba. É fácil identificá-la: quando alguém remexe no nosso passado, ou no passado que vivemos em colectivo, constrói dele uma descrição que jamais é a nossa. Enquanto passear pelo simples facto, pelo episódico, o problema não é grave, podendo até ajudar a recuperar fragmentos de memória perdida ou a corrigir certezas infundadas. No entanto, se passamos à fase de construção de uma narrativa razoavelmente complexa, coerente e documentada, tudo se torna muito difícil.

                A partir dessa altura começamos a abalar a bela encenação, cheia de verdade e fantasia, que essas pessoas construíram – ou nós mesmo construímos – do passado do qual todos participámos e no qual, quase invariavelmente, na nossa épica rememoração desempenhámos, enquanto actores ou figurantes, um papel se não heróico pelo menos positivo. Ver despedaçar o romance que construímos a partir da nossa própria experiência, da vivência do que convencionámos terem sido os nosso melhores anos – e ver que nos escaparam muitas coisas, que nem sempre aconteceram como as recordamos, e ver que certas vezes andámos enganados, que só percebemos uma parte, que tudo foi muito mais complexo e provavelmente menos idílico – não cai assim muito bem em toda a gente. Quem se dedica a remexer nas vidas dos que ainda respiram sabe muito bem que não se pode dizer a alguém que aquele instante particular, para essas pessoas tão forte e tão importante, pode afinal não ter acontecido bem assim como elas têm a «absoluta certeza» que aconteceu. Pode não ter valido aquilo que elas hoje pensam ou precisam pensar que valeu. Pode ter acontecido de diferentes maneiras. Ou melhor: lá dizer, pode dizer, mas sujeita-se a levar com o troco da memória ofendida.

                  História, Memória, Olhares

                  Viver depressa, muito depressa

                  James Dean

                  A propósito da morte prematura de Amy Winehouse, um despacho da Agência France-Press veio falar-nos de um certo «clube 27». O dos «grandes mitos musicais do século passado» que morreram com esta idade, quando supostamente tanto havia ainda a esperar das suas vidas e do seu trabalho criativo. O despacho lembra alguns, os mais conhecidos: Brian Jones, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Kurt Cobain. É fatal, numa situação destas, evocar a deixa do actor John Derek em Knock on Any Door (O Crime Não Compensa), realizado em 1949 por Nicholas Ray: «Live fast, die young and leave a good-looking corpse». Pouco tempo depois Ray dirigiria James Dean em Rebel Without a Cause (Fúria de Viver, de 1955), onde paira a permanente vertigem da morte prematura, aparentemente sem sentido, e da linha ténue que a separa da vida. Como se cumprisse um destino, Dean morreria pouco tempo depois, aos 24, ao volante do carro com o qual contava participar numa corrida em Salinas. Em qualquer caso, um elo parece unir o trajecto de um conjunto de pessoas que desapareceram naquela altura da vida em que todos ainda nos cremos imortais, circulando sem olhar para o lado no limite do possível e sobre o fio da navalha. A daquelas ou de tantas outras, mais ou menos anónimas, que todos os dias aparecem pelos piores motivos nas páginas dos jornais. Não valerá a pena proclamar princípios de moral comum a propósito das «vidas perdidas» e dos exageros – de álcool, droga, noitadas, sexo, velocidade – daqueles que pagaram por eles o mais alto dos preços. Talvez acreditassem que viver era apenas aquilo, que mais nada valia realmente a pena. Como também não me parece que devam ser transformados em modelo apenas por recusarem os valores da moderação ou da mediania. Podemos talvez conjecturar, com alguma crueza e mórbido egoísmo, sobre como seriam hoje Morrison ou Janis aos 68, o que restaria do seu legado acumulado ao fim de todos estes anos, e se para nós – não para os seus pais, os seus amigos, que sofreram a perda – não terá sido preferível que as coisas se tenham passado daquela triste maneira.

                    Cinema, Música, Olhares

                    A poesia não é para os cães

                    poetry

                    Para que serve a poesia hoje? é um pequeno livro de Jean-Claude Pinson, recém-editado pela Deriva, que nos ajuda a responder a uma pergunta completamente actual: «O que pode ainda a poesia, quando as suas ilusões líricas do passado recente (proporcionar uma vista desimpedida para o Absoluto, “mudar a vida”…) foram desacreditadas?» Com uma intensidade ampliada quando na ordem-do-dia se encontra a eliminação por decreto – e por organizado descrédito – do que se revela supérfluo, daquilo que não possui valor de uso nem serve para trocar por papel-moeda ou linha de crédito, não podendo aplicar-se a reduzir défices, a aferir «competências efectivas» ou a cumprir «objectivos estratégicos», importa olhá-la como território da clarividência e de resistência, não meramente onírico ou projectado para a evasão, que jamais deixou de ser mas deve reassumir.

                    (…) o poeta – o poeta baudelairiano – confia-se à musa citadina em vez da académica, e coloca-se do lado do que é «fraco, arruinado, entristecido, órfão». Canta sem refilar os «cães calamitosos que erram, solitários, nas ruínas sinuosas das imensas cidades». E talvez seja por a poesia não hesitar em encarregar-se, acrescenta Baudelaire, da «honra dos cães sujos», que pode esperar contribuir para que permaneça aberta outra habitação do mundo, menos alienada. Pois a poesia não é, apesar de tudo, feita para os cães.

                      Atualidade, Poesia

                      Arqueologia

                      Do número 8 da revista Almanaque, saído em Maio de 1960: «A rapariga portuguesa não é normalmente muito alta. A altura média anda por 1,55 m. O peso é de 52 kg. A cor dos olhos e dos cabelos é castanha. Mede de peito 86 cm e de ancas 90.»

                        Apontamentos, Memória

                        Ser, não-ser e parecer

                        parecer

                        A resolução do Conselho Académico da Universidade Católica sobre esse dress code mínimo pelo qual, em proveito da sua dignidade corporativa, são responsáveis professores e alunos, encerra contornos inquietantes. Ela visa banir dos espaços e instalações da instituição os «modos de trajes e formas de apresentação próprias de local de lazer e de desporto», sugerindo, como instrumento de controlo, que «todos os responsáveis pela salvaguarda do ambiente e da imagem da universidade nas suas instalações e no espaço do Campus universitário, devem chamar a atenção dos que se apresentarem de maneira imprópria». Ocorre aqui, desde logo, uma dimensão normativa que colide com a liberdade individual. Ela até pode ser aceitável em quartéis ou prisões, mas não em locais públicos frequentados por pessoas que podem entrar e sair dos espaços sob a alçada do código sem qualquer coacção. Não se percebe, além disso, a quem se aplica, dado que os cidadãos atingidos pela medida podem ser até convidados vindos de outras universidades, de outras culturas, ou simples cidadãos em viagem de férias mas interessados numa conferência ou numa exposição. Pode ainda afrontar identidades pessoais ou colectivas, ostracizadas por «impropriedade» daqueles que transportem no corpo os seus sinais «aviltantes».

                        O que mais importa aqui não é, porém, o caso em si, mas sim a tendência que ele sinaliza. A insinuação da cultura antidisciplinar, nascida nos Estado Unidos na década de 1950, e que dominou o ocidente por mais de vinte anos, traduziu-se, entre outros aspectos, na apropriação de estilos de vida, modalidades de gosto, padrões de vestuário, códigos de comportamento, cambiantes gestuais, linguagens, definidos como uma espécie de prolongamento, no que à vida pessoal dizia respeito, das «estradas da libertação» então abertas. De Lisboa a Praga, ela perturbou particularmente os regimes fechados e autoritários, para os quais a emancipação e a diversidade do parecer – da cor da camisa ao corte das calças e do cabelo – constituíam uma marca de intolerável rebeldia. Para os insurrectos, por sua vez, ela era um sinal identitário, um modo de perturbação da ordem cultural, social e ética que visavam contestar. Não será, por isso, por um acaso que, nestes tempos nos quais passou a ser sinal de boa política a correcção da desordem utópica produzida e propagada durante os sixties, o resgate do fato-e-gravata se imponha como aspecto de um «regresso à ordem». Alguns pedagogos do Estado Novo falavam das universidades como lugares de formação de um «escol de mandantes». Este processo de diferenciação social passava então por uma normalização rigorosa da economia do parecer. Felizmente os tempos são outros e estes círculos já deixaram há muito de deter capacidade para imporem o seu modelo de regulação. Mas teimam em cumprir o papel de difusores de uma concepção de elite – do saber e de poder – destinada a demolir a ideia de liberdade e de igualdade que fundamenta a civilidade democrática.

                          Atualidade, Olhares, Opinião

                          A voz sem voz da solidão

                          Solidão

                          A condição do solitário traduz ausência de afectos, uma necessidade intelectual ou a escolha radical de um modo de vida. Ou então tudo isso a um só tempo. Ele é aquele que ninguém interpela, e que, à força de não ser nomeado, acaba por adquirir uma espécie de transparência. É assim, como assim foi há mil anos, no tempo em que o escape do mundo podia até transportar consigo um halo de respeito ou de santidade. A solidão moderna, todavia, abandonou os lugares de ascese ou de exílio, os eremitérios, as ilhas perdidas, as florestas mais obscuras, para se instalar no coração da experiência urbana, contaminando a vida daqueles que não tiveram, ou em algum momento perderam, a possibilidade de manterem uma teia física de relações, de objectivos e de interesses. Sem espaço para fazerem ecoar a sua voz, escutando ao mesmo tempo as dos outros, estão condenados ao silêncio, à irrelevância, à morte em vida. Podem até agarrar-se a um terminal, deambulando pelas redes sociais, subscrevendo mil causas, protestos ou clubes de fãs de qualquer-coisa aqui ou além, mas sem o hálito e o olhar dos seus semelhantes permanecem insulados num deserto próprio. Tão sós que até a sua sombra perdeu a fala.

                          A propósito da saída de um número do Magazine Littéraire dedicado ao tema da solidão.

                            Apontamentos, Olhares

                            Memória dos tempos que hão-de vir

                            T. Roszak

                            Quem se interesse por perceber o percurso dos velhos sixties, superando a visão nostálgica ou aquela que se lhe opõe, tomando-os como um desperdiçado tempo de desordem e retrocesso, ouviu por certo falar de um livro chamado The Making of a Counter-Culture, subintitulado Reflections on the Technocratic Society and Its Youthful Opposition, e que foi publicado logo em 1969, ainda os sons de Woodstock ressoavam vagamente pelos ares. Nesta obra, como tantas outras mais citada do que lida, o professor californiano Theodore Roszak abordou a origem americana, rapidamente alargada aos ambientes urbanos das sociedades dos países capitalistas avançados, da contracultura como ferramenta da ruptura e da contestação cultural, e como instrumento de rejeição da tirania imposta pelo sistema educativo e pela autoridade familiar produzidos pelo triunfo histórico do capitalismo. (mais…)

                              História, Memória, Opinião

                              O que aconteceu a Patty Hearst

                              Patty Hearst

                              Do arquivo dos meus blogues-antes-deste. Escrito em Outubro de 2005.

                              Há cerca de três décadas, quando as correntes «de raiva e esperança» dos sessentas haviam suavizado já o furor, foram muitos os que desistiram dos planos para mudar o mundo a troco da aceitação silenciosa das regras conviviais do neoliberalismo. Só uns quantos obstinados procuravam ainda resistir-lhe. Portugal vivia na altura o transe da sua doméstica metamorfose, mas mais além, do lado de cá do Dniepre como da outra banda do Atlântico, cresciam ou radicalizavam-se os movimentos, autoproclamados como vanguardas, que se propunham inverter os ventos através da acção directa das minorias esclarecidas e activas. Mostrando-se como exemplo ou servindo de rastilho para o que acreditavam poder ser um retorno da acção redentora «das massas». Integravam a arquitectura de um terrorismo – à época selectivo, e quase benigno quando comparado com o que hoje conhecemos – que os governantes procuravam conter. E se não conquistavam grandes adesões, convocavam alguma simpatia da parte daqueles a quem o sistema imposto pelos vencedores da ressaca «sessentista» parecia realmente odioso. (mais…)

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                                Antes tarde que nunca

                                marreta

                                Antes tarde que nunca. E mais vale já que depois.

                                A comissária europeia para a Justiça, Viviane Reding, acaba de propor, em declarações ao jornal alemão Die Welt, o desmantelamento das três principais agências de rating norte-americanas, a Standard & Poor’s, a Moody’s e a Fitch. «A Europa não pode permitir que o euro seja destruído por três empresas privadas norte-americanas», disse esta comissária luxemburguesa, exigindo mais transparência e mais concorrência na avaliação de Estados pelas referidas agências. Resta saber se este tipo de declaração corresponde a uma intenção sincera, a um programa a traçar e a cumprir, ou se se limita a servir para pacificar os ânimos mais exaltados.

                                  Apontamentos, Atualidade

                                  Os dados estão lançados

                                  BE

                                  À hora a que termino estas linhas deve ter acabado já o encontro aberto do Fórum Manifesto destinado a debater o passado recente e o futuro do Bloco de Esquerda. Sou um daqueles seus votantes e/ou simpatizantes – com a presunção de aqui pertencer a uma maioria – que não fora a presença forte desta corrente muito dificilmente se teria conservado nessa qualidade por mais de uma década a fio. O reconhecimento desta proximidade acaba, aliás, de ser confirmado pelo documento que serviu de ponto de partida para o debate de hoje, uma vez que me revejo no essencial da sua análise da actuação recente, das debilidades, das forças e das necessidades imediatas do partido. Discordo de pouca coisa, anotando apenas a falta de uns quantos temas que me parecem decisivos, entendendo essa ausência como motivada pelo desejo de «unir em vez de dividir». Mas como sou daqueles que reconhece também a necessidade de, em alguns momentos, «dividir para unir», ou mesmo «para reinar», aqui fica, embora a destempo, o meu pequeno contributo. (mais…)

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