Arquivos Mensais: Junho 2011

Jorge e o espírito de Buchenwald

Jorge Semprún

Chegou a vez de Jorge, Jorge Semprún (1923-2011). A Wikipédia regista-o como «escritor, intelectual, político e guionista cinematográfico». Foi tudo isso, sem dúvida, mas para várias gerações de antifascistas e de democratas europeus foi principalmente o exilado da Guerra Civil, o resistente torturado transformado no prisioneiro 44.904 do campo nazi de Buchenwald, o dirigente comunista dedicado, expulso do Partido em 1964 por divergências políticas com Dolores Ibarruri e Santiago Carrillo, e o activo e independente ministro da Cultura de Felipe González. Como escreve o El País no seu obituário, «construiu a sua obra literária com os fragmentos da sua própria memória e nela reside, por isso, a recordação dos factos e dos sentimentos de uma vida marcada a fogo por todas as barbáries modernas.» De si próprio disse Semprún em Adiós, luz de veranos…, parafraseando Baudelaire, «tenho mais recordações do que se tivesse mil anos». Há três dias, na última colaboração que enviou para o diário madrileno onde escrevia habitualmente, recordou a última viagem a Buchenwald, realizada havia pouco mais de um mês, já em precárias condições de saúde e sabendo por isso ser a derradeira: «Ahí, en un antiguo campo de concentración nazi convertido en prisión estalinista, es donde debemos celebrar la Europa democrática. Contra todas las amnesias.»

    Apontamentos, Democracia, História, Memória

    Na Crimeia

    Carga da Brigada Ligeira

    Half a league, half a league, / Half a league onward,
    All in the valley of Death / Rode the six hundred.
    “Forward, the Light Brigade! / “Charge for the guns!” he said:
    Into the valley of Death / Rode the six hundred.
    Alfred Tennyson, 1885

    Comecei ontem Crimea: The Last Crusade, o último livro de Orlando Figes, que comprei em versão e-book para poupar espaço na estante e descansar algum músculo, pois sempre são mais 600 páginas. Leio-o pelo prazer de saber mais sobre um acontecimento que conheci cedo, através de descrições em «livros de quadradinhos», e me atraiu logo por situá-lo então num território vagamente epopeico de acção e aventura, com episódios como a Carga da Brigada Ligeira, durante a batalha de Balaclava, o cerco de Sebastopol ou a acção humanitária de Florence Nightingale. Mas leio-o também por poder seguir de novo um historiador que tem o dom raro e invejável de combinar o rigor e a profundidade da pesquisa com uma capacidade narrativa absolutamente magnética. (mais…)

      História, Memória

      Seis notas actuais

      calçada portuguesa

      1. A vitória da direita – ou do centro-direita, como preferem os benévolos – era esperada, mas foi bem mais ampla que o previsto. É verdade que a abstenção, somada aos votos brancos e nulos, também foi elevada, mas, queira-se ou não, e se contarmos também com os votos no PS, os resultados referendam a manifesta convicção da grande maioria dos eleitores de que as medidas de austeridade impostas do exterior são péssimas mas inevitáveis.

      2. Ao contrário, a esquerda que se autoproclama consequente foi incapaz de provar o inverso e de apresentar propostas nas quais uma parte substancial dos cidadãos pudesse confiar como algo de realmente possível, e não apenas de vagamente desejável. Permanecem quase sempre ideias imprecisas sobre futuros melhores sem a apresentação de programas concretos – não a de meros cadernos reivindicativos – e de alianças no terreno capazes de produzirem uma governabilidade à esquerda.

      3. A CDU ganhou pouco mas segurou os seus eternos 7 ou 8%. No entanto, festeja com grande alarido o facto de ter «mais força». Às custas do Bloco de Esquerda, como parece evidente. É preciso dizer mais alguma coisa sobre o grande futuro desse indefinido projecto de um «governo patriótico e de esquerda» hegemonizado pelo Partido Comunista Português que ninguém percebe o que seja, como se pode construir e o que nos propõe?

      4. O Bloco agiu muito mal na gestão política da crise financeira e no ensaio «a pedido» de uma aliança com o PCP, e isso pesou na deslocação de voto de muitos dos seus agora ex-eleitores. Mas, acima de tudo, diante da alternativa entre um «socialismo verdadeiro» e um «comunismo moderno», tombou para o segundo lado, quando o seu campo natural e o espaço por onde poderia e poderá crescer e afirmar a sua identidade é e será sempre o primeiro.

      5. A alternativa futura passará sempre por um PS pós-Sócrates renovado, que corte assumidamente com o modelo neoliberal e erradique tanto quanto possível o caciquismo que o consome e lhe mina o prestígio. Em convergência com um Bloco que se decida entre as duas vias e alije de vez o fardo tardo-leninista que ainda carrega, assumindo o seu papel de partido democrático e europeu, e, ao mesmo tempo, regressando quando necessário à «política de causas» que lhe deu identidade. E com um PCP que perca de vez a cisma da hegemonia «da classe operária», rompendo também com o projecto estatista e totalitário do qual não se viu ainda livre. Isto custa e demora, mas não é impossível, devendo todos mostrar serem capazes de transigir em algumas coisas. Não para unir – esse é um princípio errado e perigoso, com péssimas provas dadas – mas sim para aproximar.

      6. A luta social não pode abrandar, mas no plano político e organizativo é melhor a esquerda à esquerda lamber as feridas, reflectir sobre o acidente sem pôr a culpa sobre os ombros dos eleitores mal-agradecidos – como já hoje vi fazer –, e começar a tratar da cura, do que cair na tentação da fuga para a frente, prego a fundo e fé «na luta», isolando-se no plano social e dilatando o tempo de espera para ser possível a construção de uma alternativa de governo capaz, credível e mobilizadora.

      Adenda: Votei neste domingo – como o tenho feito desde a sua fundação, mas admito que desta vez com algumas reservas – no Bloco de Esquerda. Daí também a minha preocupação. Regressarei mais desenvolvidamente a alguns destes tópicos.

        Atualidade, Olhares, Opinião

        O romeno que admirava Salazar

        Mircea Eliade

        Em 1941, Mircea Eliade, o professor e escritor reconhecido como um dos fundadores da história moderna dos mitos e das religiões, foi nomeado adido cultural e de imprensa junto da embaixada da Roménia em Lisboa. Por aqui se manteve até 1944, vivendo por isso em Portugal um dos períodos mais agitados da história europeia do século passado, incluindo-se nesta agitação a vivida então no seu conturbado país, cujo governo por essa altura colaborava activamente com a Alemanha de Hitler. Nesta «terra incógnita» para o romeno comum, vem encontrar um «oásis de tranquilidade», e uma acalmia na sua própria vida, que rapidamente associa à lógica de funcionamento do Estado Novo, ao padrão de vida que este impõe à sociedade portuguesa e à figura tutelar, aos seus olhos providente e benevolamente paternal, de Oliveira Salazar. (mais…)

          História, Memória

          Uma história falada

          História oral

          É cada vez maior o número de trabalhos sobre a história recente – a nossa e a dos outros – que recorrem ao depoimento oral como fonte absolutamente decisiva. A tendência não é nova, uma vez que se tornou patente já em meados do século XX quando a irrupção prática e metodológica da abordagem histórica do presente forçou a uma revisão do pressuposto, ainda dominante entre as duas primeiras gerações da Escola dos Annales, segundo o qual um corte com o passado seria garantia essencial para se chegar a um conhecimento seguro do passado. Esta legitimação da oralidade não foi, de início, nada consensual entre a comunidade dos historiadores, para quem os testemunhos, materializados em entrevistas necessariamente mediadas pelo investigador, eram por vezes considerados fantasiosos e tomados como factor negativo de «subjectivação do passado». Jogando um papel decisivo neste processo, os primeiros estudos sobre a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto cedo mostraram que, ao contrário, esse instrumento representa uma forma de recuperação do vivido que nenhum outro documento, seja ele um diário, um relatório, um livro ou uma imagem, está em condições de colocar à disposição dos investigadores e dos leitores. (mais…)

            História, Memória, Olhares

            Feminismos em Portugal

            feminismos

            Uma ideia disseminada considera que o percurso dos feminismos, ou pelo menos o da sua presença visível e com impacto público, é em Portugal relativamente recente, circunscrito às duas últimas décadas do regime democrático. Feminismos – Percursos e desafios, um livro de Manuela Tavares publicado há poucos meses, vem provar o equívoco desse juízo injusto e apressado, mostrando, precisamente em sentido contrário, que o rasto dos movimentos promotores dos direitos das mulheres é afinal razoavelmente dilatado e tem uma agenda própria. Duas das razões que determinaram esse erro de perspectiva são anotadas logo no início da obra: de um lado, a possante influência do regime autoritário do Estado Novo, vinculado a «uma ideologia de submissão das mulheres» que silenciou as ténues mas reais posições de natureza emancipatória projectadas durante a Primeira República; do outro, o peso do «pensamento dogmático das esquerdas políticas», que não souberam «captar a dimensão plural dos feminismos» e aquilo a que a autora chama «as contradições de género na sociedade», sistematicamente subsumidas na lógica da unidade na acção. (mais…)

              Atualidade, Democracia, Olhares