Decorreu há poucos dias, em Aveiro, uma reunião de alunos chineses a estudarem em diversas universidades portuguesas, destinada a «esclarecê-los» sobre o carácter inalienável dos «direitos históricos» da China sobre o Tibete, e a instruí-los sobre que argumentos deveriam utilizar quando confrontados com o tema por colegas e professores. Coordenação a cargo de um controleiro gentilmente cedido pela embaixada da RPC. Coisas que se sabem quando se contacta regularmente com estudantes universitários de muitas proveniências.
Como se percebe pelas referências regulares que tenho feito a posts seus na barra da direita deste blogue, simpatizo com muitas das posições de Pedro Sales, de quem sou habitualmente leitor. Mas divirjo da forma como, no Zero de Conduta, comenta uma frase escrita por José Pacheco Pereira em 1973, referindo-se a Maio e a Crise da Civilização Burguesa, de António José Saraiva, como livro «para ler atentamente e queimar». Comento-a como pretexto para falar de uma prática, utilizada por vezes no combate político, que recuso de todo.
Não conheço ao pormenor, nem penso que tal interesse para o caso, aquilo que Pacheco Pereira possa ter dito agora, perante uma opinião pública sem memória, para minimizar os estragos que aquela frase possa provocar na sua imagem. O que sei, e aquilo que me importa, é que a sua posição na época se conformava com a atitude expressa pelos grupos maoístas – área na qual, como se sabe, então militava – a respeito da perspectiva estritamente lúdica, «idealista» e «pequeno-burguesa» de Saraiva sobre o Maio de 68. Um livro no qual se depreciava a função revolucionária da classe operária e da sua «ideologia de classe», insistindo-se, algo deslumbradamente, no papel criador que o Maio e as suas circunstâncias pareciam então destinar à juventude e à imaginação. Não se esqueça, a propósito, que se viviam então os ecos da Revolução Cultural Chinesa, durante a qual o libricídio – como a destruição de estátuas, retratos ou monumentos – era utilizado para promover o eclipse do conhecimento antigo e dos vestígios da cultura burguesa que o socialismo não tinha podido erradicar.
Não me parece bem que se pegue agora num passado com 35 ou 40 anos e se faça deste bandeira para diminuir as posições de alguém. Sobretudo quando tal passado correspondeu a uma fase da vida sobre a qual assumidamente esse alguém virou uma página. Por outro lado, a esquerda está igualmente cheia de gente de quem será relativamente fácil encontrar frases, juízos e actos «comprometedores», associados a atitudes de intolerância ou mesmo de violência como esta que José Pacheco Pereira, metaforicamente ou não, alvitrou. Mas nem a discordância política nem a perseguição ad hominem justificam o recurso a argumentos que em circunstâncias normais descartamos. E que, muito justamente, condenamos nos outros.
A chama olímpica passou por Pyongyang, a capital da Coreia do Norte. Sem registo de incidentes, naturalmente. E sem a necessidade da presença de agentes de Pequim com bandeiras impecavelmente engomadas a fazerem de «manifestantes pró-chineses». Por ali o povo permanece sereno.
Se aquilo que António Cunha Vaz diz hoje em entrevista saída no Público com chamada de primeiríssima página, o padrão ético que transpira, as atitudes que insinua, a pesporrência que exibe, as rasteirinhas que passa, são coisas para levar a sério, chamar-lhe-ia um exercício público de abjecção. Se está a brincar connosco, chamar-lhe-ia um excelente momento de parvoíce.
Paul Berman (A Tale of Two Utopias) e Luc Ferry/Alain Renaut (La Pensée 68) falaram de uma «má ressaca» das experiências de 1968, no carácter vazio das propostas de mudança então adiantadas, na sua rápida redução a um estado de irrelevância. Uma certa direita, porém, não leva demasiado a sério esta desvalorização, vendo-se forçada, pela boca de Nicolas Sarkozy, a afirmar que «é preciso liquidar Maio de 68». A frase não passa de uma enorme boutade: como poderia Sarkozy ter a vida pessoal que tem, manter o estilo que mantém, e ao mesmo tempo ganhar umas eleições presidenciais, sem a cultura da informalidade e da complacência moral que o Maio legou e simboliza?
Por outro lado, resulta igualmente equívoca a ideia de que a esquerda actual é a herdeira única e universal de 68. Transcrevo o essencial do argumento do filósofo e ensaísta espanhol José Luis Pardo a este propósito, retirado de um artigo surgido há duas semanas no suplemento Babelia do El País. Ele suscita leituras críticas dessa vinculação exclusivista da esquerda aos acontecimentos do Maio:
«Primeiro, porque existem coisas provenientes de 68 que ninguém deseja herdar (como os grupos terroristas); segundo, porque a nova direita é muito mais ‘sessenta-e-oitista’ do que confessa: é-o na sua aversão à ordem jurídica e à regulação estatal, no seu culto da identidade ou na substituição da discussão política pelos valores morais; e, finalmente, porque se alguém tivesse então falado do casamento homossexual, das quotas de género ou da conciliação entre o trabalho e a família – justamente quando se previa a abolição concertada do casal, dos géneros, do trabalho e da própria família -, teria sido perseguido sem piedade como um reaccionário dos mais recalcitrantes.»
A SIC-Notícias acaba de passar uma reportagem sobre uma iniciativa da Liga dos Combatentes e da União Portuguesa de Paraquedistas no sentido de localizar e de levantar os restos mortais dos 11 militares que há 35 anos foram enterrados em Guidage, na Guiné-Bissau, após terem sido abatidos numa batalha muito dura para as tropas portuguesas. Intitulado «Ninguém fica para trás!», o programa expôs aos olhos do espectador-voyeur todo o detalhado trabalho de pesquisa e identificação dos mortos, cujos despojos foram tratados como meros objectos à disposição de uma observação científica voraz, mas também o confronto da sua descoberta com a memória dos familiares a quem a dor foi agora reacendida.
No debate que se seguiu, percebeu-se que a Liga pretende que esta iniciativa seja apenas um começo: propõe-se organizar equipas e partir para os territórios dos três antigos teatros da Guerra Colonial, com o substancial apoio financeiro do Estado e de pá e picareta em punho, à procura dos restos mortais dos milhares de militares portugueses que ali ficaram enterrados. Em grande número de casos com um convencimento, por parte das famílias, de que os seus mortos haviam regressado à «Metrópole» para se lhes fazerem os funerais. Numa campanha mórbida que visa, como ficou claro do inenarrável discurso de um dos responsáveis pela iniciativa – que se apresentou como «ex-combatente do ultramar» e «doutorado em neuropsiquiatria» -, um claro revanchismo militarista pós-conflito. Mais preocupado com «a honra» (daqueles que jazem, afinal, em território «inimigo» das «ex-províncias ultramarinas») que com o luto das famílias (um luto que não se importam de reanimar em nome dessa «honra» que inventaram).
Lúcida apenas a voz do Coronel Carlos Matos Gomes – um dos antigos combatentes que esteve nas três frentes de guerra e que presenciou inúmeras mortes em combate -, sublinhando com veemência o carácter doentio e chocante de uma reportagem que apenas explorou a curiosidade pelos dados científicos e pela emoção sentida das famílias envolvidas, desrespeitando a paz dos que caíram. E de uma iniciativa que pode dar início a um festim negro de busca e confirmação dos cadáveres dos mortos da Guerra Colonial. Reacendendo feridas, traumas e conflitos que julgávamos a caminho de serem resolvidos. Como se sabe, é perigoso brincar com fósforos.
Deixei de frequentar «cerimónias comemorativas» de Abril. Sessões de reprise, quase sempre organizadas por pessoas com saudades de si próprias ou por autarcas com escassez de imaginação. Transformadas tantas vezes em dever. Repetindo, ano após ano, as mesmas palavras de ordem, as mesmas canções, as mesmas histórias, o mesmo cravo vermelho ao peito «que a todos fica bem». Sempre o que se me afigura uma idêntica, pesada e opressiva nostalgia. Aborrecem-me, admito. Aborrecem-me quase tanto quanto aborrecem a generalidade dos portugueses normais com menos de quarenta e oito anos. Transferi pois o 25 de Abril para a memória-cache, como parte central da minha vida e como âncora da memória colectiva que partilho. Como uma dobra, separando o que ficou para trás – a desigualdade como princípio, a vida triste, a fealdade no poder, o medo persistente como a caspa – de tudo aquilo que ali mesmo começou. Um campo aberto a sucessivos trilhos, a mil e uma quimeras, a todos os desígnios e precipícios possíveis e impossíveis. Mesmo aos piores. Prefiro por isso falar do 24. E de como a vida a 26 se tornou infinitamente mais trepidante, mais bela, melhor apesar de tudo. Graças a um 25 inesquecível para quem o viveu.
I Festival de Vilar de Mouros (Agosto de 1971) um dos fotografados é o autor deste blogue – clique para ampliar
Apontamentos do Maio – 3
Só hoje li aquilo que Joana Lopes escreveu sobre os «diferentes Maios». Chamou-me particularmente a atenção – para além da referência que fez à vivência dos então jovens «católicos progressistas» – o passo no qual refere uma opinião recentemente expressa por Fernando Rosas. Segundo este, os jovens portugueses, ou pelo menos os então ligados a partidos ou a grupos radicais de inspiração marxista, estariam de tal modo ideologicamente concentrados na luta contra o regime e contra a guerra colonial que teriam passado relativamente ao lado das influências libertárias do Maio de 68 em França. Nesta direcção, tanto os seus hábitos como os seus valores, expressos no plano colectivo mas também no individual, manteriam essencialmente, segundo Joana Lopes, uma «militância mais ou menos espartana». Sob este aspecto, digo agora eu, em pouco se distinguiriam os jovens militantes comunistas estudantis dos da extrema-esquerda, embora estes últimos, no processo de rejeição da sua própria condição de classe, assumissem quase sempre posições particularmente inflexíveis, próximas do que acreditavam ser uma «moral proletária» suprema e redentora.
Esta perspectiva afigura-se-me essencialmente correcta, sobretudo quando aplicada ao meio estudantil em si, embora me pareça também um pouco incompleta. É verdade que em Portugal, se exceptuarmos núcleos muito reduzidos de jovens integrados em ambientes artísticos e literários, não era perceptível à época – e falamos já do período marcelista – uma componente social do caldo de cultura sixtie, dotada de uma dimensão hedonista, contracultural e libertária, e da qual Maio de 68 terá constituído talvez o símbolo maior. Todavia, e ainda que tardiamente em relação à matriz original, ela encontrava-se em construção, do que constitui prova o surgimento dos primeiros grandes festivais musicais, uma clara modificação dos consumos, o interesse por determinados tipos de literatura e de cinema, a atracção pela french theory, transformações profundas ao nível do divertimento, da moral e até do look, reconhecíveis principalmente entre os estudantes (universitários e do secundário) e os jovens quadros, mas que se encontravam, pelo menos nas maiores cidades, em pleno processo de alargamento a outros sectores.
Por outro lado, encontra-se por fazer – a intervenção de testemunhos pessoais poderá vir a documentar melhor este aspecto – o reconhecimento do que se me afigura uma evidência «silenciada»: muitos dos jovens que partilhavam das convicções e das metas de diversos sectores da esquerda, incluindo-se nestes até muitos dos radicais, levavam uma espécie de «vida dupla», de natureza militante mas também escapista, integrando consumos provindos de origens aparentemente contraditórias: de Moscovo ou Pequim, mas também de Paris, Londres ou São Francisco. Lenine e Marcuse, Luis Cília e Janis Joplin, Léo Ferré e Dylan, Eisenstein e Godard, Murais da Revolução Cultural e Andy Warhol. Uma prova desta duplicidade? Basta seguirem-se os conteúdos de jornais então muito lidos entre a juventude estudantil e urbana, como o «cor-de-rosa» Comércio do Funchal e o Diário de Lisboa, verificar-se qual o seu padrão de leitor e ter-se uma ideia das suas tiragens.
Uma grande delegação da União Europeia, chefiada por Durão Barroso, desloca-se à China para discutir a criação de um «mecanismo económico e comercial de alto nível». Pelo caminho, tentará convencer as autoridades do principal país emissor de gases causadores do efeito de estufa a comprometerem-se com esforços de combate às alterações climáticas. Os responsáveis europeus contam poder tratar ainda em Pequim de temas ligados aos direitos humanos e à situação no Tibete. Esperarão porventura, com toda a legitimidade, que os governantes chineses concedam aos últimos dois temas uns intensos cinco minutos.
Entretanto, as referências concertadas de manifestantes locais – como é sabido, no Império do Meio as manifestações são por via da regra livres e espontâneas – a Joana d’Arc, à independência da Córsega e ao carácter consabidamente «nazi» do estado francês, são no mínimo comoventes. Que se cuide o governo português e não se deixe enredar em questões menores, como os tais direitos humanos, para não ver nas ruas de Cantão ou Nanquim uma manifestação com cartazes declarando «Brites de Almeida=Meretriz» ou «Free Porto Santo Now!».
Na sequência do post anterior sobre a deserção, Vítor Dias interpela-me no seu blogue. Mescla aí, porém, a legítima vontade de ver publicamente esclarecidas algumas das minhas afirmações que considera erróneas com pedidos de esclarecimento acerca do que penso de antigas decisões do PCP. Como no texto em causa procurei não revelar simpatias mas apenas proceder a uma abordagem o mais imparcial que me foi possível, a estes não irei responder aqui. Quanto ao que poderei clarificar a propósito das tais afirmações, creio que será suficiente a leitura de um texto que escrevi em 2001 e que aqui parcialmente disponibilizo (a versão final, da qual não disponho neste momento, inclui pequenas revisões formais e meia dúzia de considerações complementares que hoje me parecem menos relevantes).
Admito que a palavra ziguezagueante que utilizei num parágrafo possa não ser inteiramente correcta. Coisas dos blogues, onde se edita quase sem revisão. Sugiro a sua troca por hesitante.
Quanto às expectativas, não agradeço, mas obviamente retribuo.
Uma nota complementar por causa de referências feitas ao métier que exerço durante a maior parte do tempo: o historiador inquire a História, não a oficia.
PS – Em resposta a esta adenda Vítor Dias tece mais algumas considerações, de novo pautadas pela vontade de justificar uma posição unívoca do PCP que este, de facto, nesta matéria nem sempre teve. Apenas faço uma correcção, destinada a quem tenha lido com pouca atenção o artigo para o qual remeti e se fie apenas no que diz Vítor Dias: a posição «hesitante» da abordagem da Guerra nos 2º e 3º Congressos da Oposição Democrática refere-os no seu conjunto. Mas logo adiante se afirma que «no Congresso de 73, todavia, notamos alguma preocupação com o assunto por parte de diversos participantes, sobretudo no que se refere aos sectores mais próximos dos comunistas.» A deturpação é uma arma, como todos sabemos. Já agora: não me limitei a ler sobre o 3º Congresso, estive em sessões de preparação e estive lá, em Aveiro.
Três textos disponíveis nos respectivos blogues – um de José Pacheco Pereira e dois outros de Vítor Dias (este e mais este) – reconduzem-nos até um dos aspectos da Guerra Colonial dos quais ainda se não falou o suficiente. O relativo silêncio à volta da deserção política como acto de resistência reconhece-a, de facto, como algo que se mantém incómodo. Os conservadores, mesmo aqueles que já tiveram tempo de se converterem à democracia, continuam a evitar um problema que afronta a sua noção de patriotismo e a ética militar. Os socialistas defendem-se de falar de um assunto sobre o qual nunca tomaram uma posição clara e que a maioria dos portugueses hoje com direito de voto jamais compreendeu. Os comunistas contornam a posição ziguezagueante, crescentemente moderada, que foram mantendo sobre o assunto. E muitos dos «arrependidos» da extrema-esquerda preferem não falar de um dos lados do seu antigo combate no qual a radicalidade das atitudes foi mais longe.
Apesar do esforço para centrarem os seus discursos em experiências e estados de espírito de natureza essencialmente pessoal, ambos os autores são reconduzidos às posições políticas que mantiveram durante o conflito e que, independentemente das revisões que foram assumindo ao longo da vida, se reconhecem em aspectos da matriz ética que hoje adoptam. José Pacheco Pereira destaca a coragem daqueles a quem «nunca passou pela cabeça fazer a guerra»,e que, por esse motivo, optaram por desertar, escolhendo a via do exílio ou da emigração. Vítor Dias fala dos homens para quem desertar significava inevitavelmente um «afastamento do combate em Portugal», optando em consequência por se manterem nas fileiras e por seguirem até aos teatros da Guerra. Sem tirar nem pôr as posições dominantemente mantidas, à época, pela esquerda radical e pelo PCP. A primeira, assentando o seu combate numa atitude de grande radicalidade e de ruptura, de natureza simultaneamente individual e geracional, tanto em relação ao regime quanto em relação aos códigos e valores que o sustentavam. O segundo, mantendo nesta matéria uma posição cautelosa, evitando fracturas que considerava desnecessárias e procurando justificar uma política que visava gerir riscos, não contrariar a política de aproximação interclassista «de todos os portugueses honrados» e tentar subverter o aparelho militar do regime a partir de dentro.
Como Pacheco Pereira reconhece, em adenda ao texto escrita após ter sido interpelado por Vítor Dias, não é possível estabelecer aqui um grau de «medição de coragens». É a pura verdade, claro: como comparar os graus de bravura dos soldados dispostos em diferentes trincheiras e distintas frentes, ainda que de uma mesma batalha? Mas é possível entrever nesta troca de posições, e de recordações, duas atitudes, dois modelos, duas formas de entender a mudança em Portugal e no mundo, a dos esquerdistas e a dos comunistas, que então não só divergiam profundamente como se confrontavam no terreno.
Resta dizer, para evitar sugestões de ligeireza e já que tanto José Pacheco Pereira como Vítor Dias invocaram o seu percurso pessoal para esclarecerem a sua posição sobre o assunto, que o autor destas linhas tem uma parte da sua vida ligada a esse universo agora distante. Detido durante uma manifestação contra a Guerra Colonial, viria por tal motivo a ser compulsivamente incorporado no exército onde fez trabalho político e foi alvo de uma segunda detenção, tendo desertado quando foi confirmada a sua mobilização para África. Após viver algum tempo na clandestinidade, seria reintegrado depois do 25 de Abril nas forças armadas, acabando por cumprir ainda, já na fase de transição para a independência, uma comissão de serviço em Angola. Muitos anos depois viria a escrever um pequeno trabalho académico sobre o lugar ocupado pelas diversas esquerdas na resistência interna à Guerra.
Ver: Rui Bebiano, «As Esquerdas e a Oposição à Guerra Colonial» (2002), em A Guerra do Ultramar: Realidade e Ficção. Actas do II Congresso sobre a Guerra Colonial. Lisboa: Editorial Notícias – Universidade Aberta, pp. 293-313.
Tomo conhecimento, através do blogue de Vítor Dias, da saída de um número especial do L’Humanité dedicado à celebração dos quarenta anos passados sobre o Maio de 68. Vou tentar adquiri-lo, até porque fico bastante curioso a respeito da inevitável reescrita, por parte dos sectores intelectuais ligados ao PCF, da posição reaccionária e depois seguidista que os comunistas franceses (e não só) mantiveram na altura sobre os acontecimentos do Maio que ainda não era «o Maio». E que hoje, muito naturalmente, farão por rever. Reescrevendo a história para fazerem o elogio do movimento que na altura rejeitaram. Mas não há como ler para crer.
Durante algumas semanas, Dany «Le Rouge», o libertário, foi para o Ministério do Interior «judeu alemão» e para o PCF «anarquista alemão». Hoje permanece inclassificável, com atitudes que desagradam à esquerda e à direita. Em 2001, a defesa pública da intervenção armada anti-taliban retirar-lhe-ia a simpatia política de muitos dos antigos correligionários e desacreditá-lo-ia junto daqueles que jamais aceitarão o mais pequeno pacto com o arquivilão americano. A leitura que Daniel Cohn-Bendit (DC-B) tem vindo a fazer do Maio de 68 e do seu rastro tem alargado ainda mais o círculo da rejeição.
Em Forget 68, um pequeno livro das Éditions de l’Aube que transcreve uma conversa mantida com o jornalista Stéphane Paoli e o sociólogo Jean Viard, DC-B indica aquelas que considera serem as duas grandes incompreensões mantidas a propósito do significado do movimento. A primeira, afirma, «é a de Sarkozy e da direita, para quem todos os males da França de hoje derivam de 68», a segunda residirá «nessa fábula da extrema-esquerda para quem concluir 68 se mantém na ordem do dia» (p. 123-4). Contra a depreciação ou o maravilhamento, admite a derrota política do Maio, mas destaca a sua vitória a longo prazo, determinada principalmente pelo impacto das ideias e das vivências que o acompanharam.
Deve dizer-se que DC-B não partilha com muitos dos seus contemporâneos de uma visão nostálgica do movimento do qual continua a ser o rosto mais visível. E faz questão de afirmá-lo. Sublinha sempre o seu carácter episódico, datado, e a sua manifesta incapacidade para produzir na sociedade francesa uma qualquer ruptura de carácter revolucionário. Destaca também a sua inclusão na vaga de revolta que cruzou uma grande parte do planeta nos anos 60, representando um dos seus mais importantes momentos. Mas sublinha principalmente a sua dimensão simbólica como instante no decorrer do qual passaram para primeiro plano práticas e propostas que questionaram a ordem política e moral da burguesia, ao mesmo tempo que revelavam a inadequação das ortodoxias da esquerda a um universo social emergente.
Nesta direcção, pode aproximar-se parcialmente a posição de DC-B da expressa logo em 1970 por António José Saraiva, para quem, em Maio e a Crise da Civilização Burguesa, os acontecimentos de 68 teriam sido «obra de uma mudança espiritual». Mas, tal como o fez recentemente a americana Kristin Ross em May’68 And Its Afterlives, recusa também a leitura inócua de um Maio puramente festivo, reconhecendo-o sem equívocos como momento de aproximação das esperanças e da contestação dos intelectuais à luta dos trabalhadores e dos sectores anticolonialistas e anti-imperialistas que se incorporaram no movimento. Diversamente de Ross, porém, DC-B considera-o também como momento dotado de um significado simbólico que o tempo ampliou, acabando por ganhar vida própria ao materializar uma espécie de vitória a longo prazo, e de desforra, da geração derrotada pela polícia e pelos gaullistas nas ruas de Paris.
Propõe esquecer 68, mas apenas na medida em que a excessiva e recorrente lembrança tem servido para que os seus inimigos «em diferido» lhe atribuam um sentido perverso. E para que os seus partidários passadistas se não continuem a servir da sua memória oficial como obstáculo ao lançamento desse esforço de «recomposição do pensamento», associado «a uma exigência de liberdade e de autonomia tanto colectivas quanto individuais» (p.85), que se revela hoje indispensável, como um desafio, na procura de soluções para os ventos de mudança que varrem um mundo radicalmente outro.
Não se encontrará nada de substancialmente novo nem de particularmente original neste pequeno livro. Mas o discurso enérgico que percorre Forget 68 ajudará a pensar o Maio francês, o seu tempo e a sua posteridade sob perspectivas que não sejam a da rejeição liminar sugerida pelas palavras de Sarkozy, ou a da nostalgia de um mundo carregado como um fardo por todos esses soixante-huitiards que num dado momento das suas vidas deixaram de dar corda aos relógios. Esquecer para, talvez, melhor lembrar.
Há 39 anos, precisamente na manhã do dia 17 de Abril de 1969, teve lugar em Coimbra o episódio que levou ao rubro o conflito conhecido na história e na memória do movimento estudantil português como «a crise de 69». Nos anos que se seguiram, mas principalmente após a instauração da democracia, a data passou a ser celebrada como um momento de profundo significado simbólico para a vida associativa coimbrã, a sua autonomia e o seu impacto no país. Porém, tal como acontece com todas as celebrações que não são acompanhadas de uma atitude crítica e interpretativa que as explique e actualize, esta lembrança tem vindo a transformar-se num ritual, integrando discursos pontuados por clichés, e até a exibição repetitiva de alguma iconografia, cuja leitura se revela progressivamente limitada. Principalmente para as novas gerações, mas também para muitos daqueles que participaram daquele «evento fundador» e que de forma alguma se revêem na dimensão litúrgica e celebratória da sua evocação.
Esta redutora simplificação vai-se tornando perceptível durante a leitura de A Tradição da Contestação. Resistência Estudantil em Coimbra no Marcelismo, de Miguel Cardina (MC), que a Angelus Novus acaba de editar. Resultante da tese de mestrado que o autor defendeu em 2005 mas entretanto actualizou, este livro cumpre desde logo uma importante função: bem documentado e reflectido, ajuda-nos a diluir algumas formas de ver o movimento estudantil, desde os finais da década de 50 até 1974, mas em particular durante os anos da governação marcelista, que são imperfeitas porque fundadas em leituras do passado mais apoiadas em generalizações e no rastro nostálgico de determinados momentos do que no estudo e na reflexão crítica.
Contribui também para mostrar de que forma narrativas pré-formatadas do passado do movimento têm servido como instrumento destinado a evocar instantes e gestos reputados como exemplares ou heróicos (como é o caso do referido episódio do 17 de Abril), que promovem um território de legitimidade e de reconhecimento público adequado à aceitação dos processos reivindicativos e das vozes do associativismo estudantil no presente. Deste modo, pode dizer-se que este livro relativiza uma leitura passiva, que reduz o movimento estudantil à evocação oficial de determinadas datas, limpando-o da poeira comemorativista que tende a esvaziá-lo da sua complexidade ou a transformá-lo numa caricatura de recorte mais ou menos nostálgico.
Este problema é visível no processo de hipervalorização, aqui comentado, da «crise de 69». Não se contesta que esta tenha correspondido a um momento central da história do movimento estudantil português e que foi decisiva para o aprofundamento do processo de decadência e crise do regime que desabou em Abril de 1974. No entanto, ela tem sido vezes de mais anotada como um «acontecimento em si», espécie de clímax antes do qual dominara o conformismo e depois do qual se estabelecera uma fase de refluxo, ou de esmorecimento, da iniciativa estudantil, que, de acordo com essas leituras, teria sido apanhada algo adormecida pela Revolução dos Cravos.
A verdade, mostra MC, é que o período que preparou a «crise», a «crise» em si, e os anos que se lhe seguiram, estabeleceram antes um continuum que incorporou, entre outros aspectos, transformações vivenciais (com a rápida desvalorização das praxes académicas), alterações culturais (com uma abertura rápida aos valores comuns à cultura juvenil internacional dos anos 60), e principalmente um alargamento muito grande da participação cívica estudantil, crescentemente politizada no sentido de integrar o activismo e as suas reivindicações nos processos mais gerais de transformação da sociedade portuguesa da época e na sua própria vida. A Tradição da Contestação mostra assim, com nitidez, que a «crise» não correspondeu ao apogeu do movimento, mas antes a um momento de mudança e de viragem.
De facto, a rápida e acentuada politização, notada sobretudo junto dos universitários comunistas e da esquerda radical – que apesar de ilegalizada e minoritária desenvolvia uma intervenção cada vez mais notória -, mas também entre os estudantes comuns, maioritariamente empurrados para um lugar de visível oposição ao regime e à sua guerra colonial, constituiu um das marcas mais salientes do movimento nos anos de 1971/1974, que MC aborda com particular detalhe. Essa politização extrema, associada a factores como o encerramento compulsivo da AAC, levou à perda de relevância da intervenção de índole essencialmente associativa, e formalmente reformista, que até essa altura dominara a actividade reivindicativa estudantil, traduzindo também o aprofundamento de um clima geral de desafectação em relação ao que restava do Estado Novo e aos seus intérpretes. Clima do qual apenas era possível excluir os então ultraminoritários sectores da direita estudantil.
Foi também ao longo destes anos estudados por MC que foram chegando os ecos do Maio de 68, traduzíveis em influências bastante mais amplas do que aquelas materializadas apenas no comprometimento político ou no revigoramento da reivindicação estudantil. Se é verdade que os acontecimentos de França ecoaram rapidamente no ambiente universitário de Coimbra – como ecoaram por quase todo o mundo – foi apenas nos anos seguintes que o sentido mais profundo do movimento, traduzido num recuo da esquerda ortodoxa, na visibilidade da extrema-esquerda e na construção de uma nova abordagem da política, da cultura, da moral e dos estilos de vida entre os sectores estudantis universitários, chegou a Portugal, e particularmente a Coimbra. E é esta mudança que MC mostra de uma forma aliciante.
A Tradição da Contestação evoca ainda uma imagem estereotípica da cidade de Coimbra, onde a palavra «tradição» se continua a cruzar com algumas referências recolhidas de um passado mais ou menos remoto, mas remete também para os ecos de uma vida estudantil até há bem pouco tempo ainda essencialmente masculina e boémia, feita de hierarquias, de praxes académicas e de formas inócuas de uma autoproclamada «irreverência», que nunca chega a sê-lo quando não assume uma dimensão participativa. Este livro mostra-nos que, afinal, existe também uma outra tradição possuidora de lastro histórico, provindo pelo menos da época das lutas liberais mas acentuado nos anos 50 e 60 do século XX, que é a da intervenção activa. Revela-nos uma outra Coimbra, mais plural, emancipada da imagem do lente inquisidor e do estudante truculento, mergulhada numa tradição de cidadania que integra o património identitário da própria cidade.
O livro de Miguel Cardina funciona pois como uma lição que os actores e os agentes da Coimbra de hoje não devem deixar de conhecer. E mostra a todos os leitores que, na história do movimento estudantil, como na história de qualquer movimento social, os episódios sonantes, por mais visíveis e mediáticos que se mostrem, representam apenas a ponta do iceberg.
No dia em que a nova lei do divórcio foi aprovada pela esquerda parlamentar (com um voto contra e uma abstenção no PS) e os votos de rejeição do PSD (com 7 votos a favor e 11 abstenções) e do CDS-PP, a recordação de um tempo de muitas urgências e de outra frontalidade.
Não há muito mais para dizer sobre a posição frouxa do Sr. Silva durante a visita à Madeira. Onde, de sorriso nos lábios, contemporizou com o colérico soba local na desqualificação agressiva desse «bando de loucos» que tem a suprema ousadia de se opor à sua administração populista e prepotente. O Presidente Cavaco, aquele cavalheiro discreto, de atitude aparentemente equidistante, carnes secas e pose indulgente, que nos habituámos a ver à distância nos últimos tempos, voltou a recordar-nos o homem sisudo, inflexível, sem dúvidas ou enganos, que foi o primeiro chefe de governo da III República totalmente liberto da «mácula» de ter resistido ao regime que Abril fechou. O conformismo cultivado durante a juventude deixa sempre marcas para o resto da vida.
PS – Para quem ler esta mensagem semanas ou meses depois e não pode detectar o duplo sentido: referia-me também à tomada do poder em Itália pelo Sr. Berlusconi.