Arquivos Anuais: 2011

O professor de latim

«Quosque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? Quam diu etiam furor iste tuus nos eludet?» («Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência? Até quando teremos nós de suportar o teu escárnio?») Lembrei-me hoje, por via de uma daquelas figurinhas que nos cabem na administração paroquial ou continental da coisa pública, do velho professor de latim e do seu Cícero. Abria muito os braços, e mais ainda as mãos, e recitava de cor parágrafos completos da agastada e furiosa Oratio in Catilinam. Com tal ênfase que fechava sempre a última frase num violento ataque de tosse. A seguir acendia um cigarro Porto, produzia sucessivos anéis de fumo, e calava-se durante dois ou três minutos enquanto nos recompúnhamos dos efeitos da onda de choque verbal e do mais puro terror. Pensando no prazer que daria responder-lhe na mesma moeda.

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    Apontamentos, Etc., Olhares

    As últimas palavras de Nelson

    Nelson

    De Horatio Nelson (1758-1805), o almirante britânico que derrotou a esquadra franco-espanhola na batalha de Trafalgar, apesar de nela haver perdido a vida – confirmando então uma supremacia da Royal Navy que haveria de manter-se por mais de cem anos – contam-se pelo menos três versões, alegadamente testemunhais, daquelas que terão sido as suas últimas palavras. De acordo com o cirurgião William Beatty, que o assistiu nas últimas horas, terá repetido insistentemente, até perder a consciência: «Thank God I have done my duty». Já Alexander Scott, o capelão do seu navio-almirante, assegurou que Nelson terá dito antes: «Drink, drink. Fan, fan. Rub, rub». Por fim, alguns dos presentes contaram em algumas ocasiões que, referindo-se a Thomas Hardy, capitão do Victory e seu grande amigo, terá exclamado: «Kiss me, Hardy!». Jamais se conhecerá a verdade, mas qualquer das variantes serve para ler de diferentes modos a biografia e a personalidade de Lord Nelson. Podemos assim optar por um dos desfechos e, em função dele, reescrever todo o enredo.

      Apontamentos, Devaneios, História

      A «incidência contributiva»
      segundo o Xerife de Nottingham

      No mito de Robin dos Bosques o Xerife de Nottingham era o executante local das exações fiscais determinadas pelo príncipe João, o usurpador do trono do bom mas desaparecido rei Ricardo. Como sabemos que os mitos são sempre uma representação formal de atitudes humanas consagradas pela repetição, não é difícil encontrar, muitos séculos depois do seu desaparecimento, pequenos e médios xerifes que são fiéis continuadores da pura maldade aplicada em nome de quem manda «porque pode».

      Falo apenas de ilegalidades praticadas arbitrariamente pelos executantes do Estado. Por exemplo, da forma como, recentemente, numerosos contribuintes portugueses foram forçados a aguentar as consequências de execuções fiscais e a pagar coimas por uma ausência de pagamento de impostos devidos da qual não haviam sido previamente informados. Simplificando: não se avisa um bom número de pessoas que está devedor e assim, através do pagamento da inevitável multa, aumentam-se exponencialmente as receitas do Estado. Presumo que tal comportamento valha, aos xerifes espertalhaços que o conceberam e aplicaram, uma merecida comenda. Ou, no mínimo, um louvor. (mais…)

        Apontamentos, Atualidade, Devaneios

        Num filme neorealista

        Enzo Staiola (Bruno) e Lamberto Maggiorani (Antonio)
        em «Ladrões de Bicicletas», de Vittorio de Sica (1948)

        Na minha escola primária, nós, as crianças – apenas rapazes –, dividíamo-nos em quatro grupos que se distinguiam pelos pés. Um, pequeno mas muito expressivo, chegava à escola descalço, mesmo de inverno, usando sacos de sisal para se proteger da chuva e do frio da manhã, e todos os colegas sabiam que aqueles eram os filhos dos pobres, sobrevivendo no limiar da miséria e da caridade. No extremo oposto, outro grupo, igualmente pequeno, usava sapatos de sola de cabedal, sempre a reluzirem e com aspeto de novos: era o dos que vinham de famílias com mais posses e melhores ligações, ou que se faziam passar por tal. No meio, um segundo conjunto de alunos usava calçado velho, de baixa qualidade, por vezes tamancos de madeira. Compunham-no os filhos da gente humilde mas aprumada, que fazia, sabiam Deus e o Diabo como, por se manter à tona, no rebordo da «pobreza honrada». E havia ainda um terceiro, ao qual eu pertencia, naquela escola talvez o maior de todos eles, que era composto pelos mais novos membros de uma classe média que via na poupança a única forma de encarar um futuro sempre imprevisível. Usávamos sapatos apresentáveis aos domingos e dias santos de guarda, que as nossas mães engraxavam com atenção e carinho, reservando para outros dias o calçado mais usado, reforçado com «protetores», pequenas peças de ferro ou de chumbo que serviam para prolongar a vida das solas e das capas dos saltos. Ontem, pela primeira vez em muitos anos, encontrei na vitrina de uma velha loja «protetores» à venda. Fiquei na dúvida sobre se seriam um vestígio arqueológico recuperado ou um sinal dos tempos. Ou se sempre ali estiveram e só agora, condicionado pela realidade, eu reparei neles.

          Apontamentos, Cinema, Memória

          Nem mesmo aos piratas

          Sinto algumas vezes pelos piratas informáticos uma simpatia idêntica àquela que tenho pelos ladrões do mar. Imagino-os sempre a navegarem num oceano sem lei, procurando, pela via insidiosa do ataque inesperado, bárbaro mas de peito aberto, regado a rum ou cerveja, noitadas e desespero, a vingança frente aos poderosos que os condenaram à errância, à margem e à solidão. Vejo-os pois, no fundo, como depositários de uma certa nobreza, pilhando o oiro dos galeões porque os seus proprietários o roubaram primeiro, impondo, sobre o destino das ondas (ou do éter), um padrão moral que faz deles arautos desafinados, mas arautos, de uma certa justiça poética. Custa-me por isso vê-los rasteiros, velhacos, quando descem ao nível dos que desejam combater. Foi o que me pareceu encontrar na iniciativa dos hackers que há dois dias piratearam a página oficial do Partido Socialista, servindo-se do ato para um ataque vil, grosseiro, pessoal, e não para o combate ilegal mas frontal e com um objetivo percetível. Darem-se a tanto trabalho, a tão arriscada abordagem, para mostrarem «o extrato de uma conta ligada à família de José Sócrates» é como tentar matar alguém pelas costas com um tiro de pólvora seca. Sem honra ou sentido. Tal inépcia não se pode perdoar. Nem mesmo aos piratas.

            Apontamentos, Olhares, Opinião

            Mãe-Rússia

            A sociedade russa tem um problema sério com a democracia. Mesmo tendo perdido parte do eleitorado, o Partido Rússia Unida, que apoia o sinistro Putin, obteve 49,6% dos votos expressos nas eleições legislativas para a Duma. Em segundo lugar ficou o pré-jurássico Partido Comunista, de Guennadi Ziuganov, que alcançou 19,7%. E em terceiro, com 12,2%, o Partido Liberal Democrata, na verdade da extrema-direita nacionalista, dirigido pelo «Le Pen russo», Vladimir Jirinovski. É só fazer as contas: 81,5% dos votantes – e a estes poderiam ainda somar-se algumas franjas vindas de outras forças minoritárias – aspiram a um governo monolítico e autoritário, revelando um menosprezo olímpico pelas virtualidades de uma democracia que, na realidade, jamais conheceram. Intimida constatar que uma boa parte do equilíbrio mundial passa ainda por este universo opaco, administrado por bandos de déspotas ou de candidatos a tal atividade. E que, no país onde, inventado por Piotr Boborykin, nasceu o conceito romântico de intelligentsia como espaço social para a atividade crítica e criativa dos intelectuais, a liberdade é ainda, fundamentalmente, uma quimera, um horizonte literário deixado ao abandono pelos cidadãos. Ou pela esmagadora maioria deles. Foram muitos, muitos anos de «engenharia das almas».

              Apontamentos, Atualidade, Opinião

              A caminho da Praça Tahrir

              Agora que os destinos do Egito retornam à encruzilhada, com os militares ainda no poder, os muçulmanos moderados a ganharem as eleições e os radicais salafistas a obterem 30% dos votos expressos, reivindicando as regras medievais da sharia como fundamento da nova Constituição, vale a pena lembrar o nascimento da Praça Tahrir como território simbólico e elemento orgânico do encontro de credos e do combate pela liberdade.

              Em 25 de janeiro de 2011, o dentista e escritor egípcio Alaa Al Aswany, fundador do movimento oposicionista Kefaya que havia anos preparava a mudança no Egito, chegou atrasado à manifestação da Praça Tahrir que iria marcar o fim do regime despótico de Hosni Mubarak. Quando foi avisado do que estava a acontecer, vestiu-se à pressa e correu para se juntar ao milhão de compatriotas que haviam saído à rua para exigir a queda do regime. Ali permaneceu dezoito dias, vivendo os acontecimentos revolucionários e assistindo ao renascimento de um país que em todo o mundo muitos olhavam como destinado a viver na indolência, na estagnação e sob o jugo da bota militar.

              Este O Estado do Egito recua um pouco no tempo e reproduz mais de quatro dezenas de crónicas publicadas em jornais entre 2008 e 2010. Nelas se abordam temas tão diversos, que a revolução iria rapidamente passar para o centro das atenções, como o autoritarismo e a corrupção do regime, a estagnação económica, a brutalidade da polícia, a pobreza endémica, a repressão das mulheres, o cerco vivido pelas minorias cristãs, o lugar do fanatismo ou a construção da democracia. Em todos esses artigos se pode entretanto detetar uma leitura comum, ajustada a duas linhas coincidentes e complementares que o movimento revolucionário irá adotar. A primeira aponta para aquilo a que o escritor discutivelmente chama o «caráter especial» da generalidade dos egípcios, que os terá tornado «menos propensos ao conflito e mais inclinados ao compromisso», à recusa maioritária da violência e da tentação do extremismo político e religioso. A segunda, decisiva nos acontecimentos de janeiro, leva-o a considerar que os seus compatriotas «como camelos», suportando a repressão, as humilhações e a fome por muito tempo, mas com uma enorme capacidade, quando finalmente se revoltam, de o fazerem «subitamente e com um ímpeto que é impossível controlar».

              Este livro ajuda-nos a mitigar a surpresa causada na maior parte do mundo pelo eclodir da aparentemente inexplicável revolução egípcia, e a compreender o impulso de esperança e de mudança que esta suscitou. Mas também a vislumbrar, por vezes mascarados, alguns dos seus piores inimigos.

              Alaa Al Aswany, O Estado do Egito. Trad. de Lucília Filipe. Quetzal. 296 págs. Versão revista de uma nota publicada na LER de Novembro de 2011.

                Atualidade, Olhares

                O fim da grande máquina

                Percebi hoje como carrego comigo qualquer coisa de excessivamente antigo ao receber, através da crónica mensal que Pedro Mexia escreve para a revista Ler, a informação de que a empresa Godrej & Boyce, de Bombaim, última fabricante em atividade de máquinas de escrever, resolveu «descontinuar» o produto. Apesar de já terem passado duas décadas e meia, ainda recordo o tormento que foi passar a limpo na minha Olivetti portátil azul, para entregar na manhã seguinte, as duzentas e tal folhas da tese de mestrado – ou melhor, do seu equivalente – sobre as práticas ostentatórias do poder absoluto no tempo do rei João V. Particularmente daqueles momentos, ao chegar ao fim da página, em que verificava não caberem já as notas de rodapé e tinha de começar tudo de novo. Antes disso, muito antes, na poderosa Underwood do meu avô (ou seria uma Royal?), a escrita «a limpo» em teclado HCESAR dos primeiros textos públicos destinados ao pequeno jornal local. E antes ainda, no mesmo engenho, o preenchimento, por encomenda do meu pai que mantinha um biscate suplementar como correspondente bancário, dos avisos destinados aos clientes devedores nos quais se comunicava a proximidade do vencimento dos títulos de crédito enviados pelo sacador. É estranho mas até dessa tarefa monótona sinto, agora que desapareceu para sempre a possibilidade de a repetir, uma certa falta. Daquele barulho tac-tac tac-tac, sim, e do caráter tátil da ação. Mas, mais ainda, do aroma único, para mim aroma a infância, do óleo que lubrificava a engrenagem e do rolo da fita que sujava os dedos e marcava o papel a vermelho e a negro.

                  Apontamentos, Memória, Olhares

                  O soldado britânico de Auschwitz

                  É recorrente o testemunho, transmitido por aqueles que sobreviveram ao Holocausto e puderam contar a experiência do horror, segundo o qual passada a Guerra quase ninguém aceitava escutá-los. Primo Levi transportou toda a restante vida esse fardo e, quando encontrou finalmente quem o quis ouvir, não se cansou de lembrá-lo. Este A Última Testemunha de Auschwitz, um relato de Denis Avey (n. 1919), antigo soldado do exército britânico que se bateu contra os alemães no Egito e na Líbia – e depois de capturado viveu o pesadelo do trabalho escravo nas instalações da IS Farben em Buna-Monowitz, anexas ao campo de Auschwitz-Birkenau –, é ilustrativo dessa realidade. Para além da dor legada pelo que viu e viveu, carregou quase até ao fim com a contrariedade de não encontrar quem aceitasse perder algum tempo com aquilo que tinha para contar. De tal forma que só depois dos noventa, e com a ajuda de Rob Broomby, um jornalista da BBC que soube da sua história, teve condições para falar do que presenciara e daquilo que os outros mereciam e deviam conhecer.

                  E, no entanto, a sua experiência foi provavelmente única. Não apenas pelo relato circunstanciado, a partir da perspetiva do militar não graduado, das dificuldades reais do combate nas campanhas do Norte de África contra as tropas de Rommel. Não apenas por nos fornecer um retrato muito menos benévolo do que aquela doado pela tradição cinematográfica das condições reais nas quais viveram acantonados os militares aliados capturados pela Wermacht. Mas, para além disso, por nos oferecer a experiência absolutamente singular de alguém que, pela sua própria iniciativa e risco, decidiu trocar de identidade com um prisioneiro judeu destinado ao extermínio. O objetivo foi vivenciar de forma direta, para poder passar para fora uma informação que muitos resistiam ainda a aceitar como válida, as condições sub-humanas em que vegetavam, a caminho da morte certa, os prisioneiros sinalizados com a estrela de David. O relato intenso das noites de pesadelo que passou deitado nos catres dos mortos-vivos, seus fugazes companheiros de martírio, preenchem algumas das páginas mais perturbantes que sobre esse inferno na Terra alguém foi capaz de escrever.

                  Denis Avey (com Rob Broomby), A Última Testemunha de Auschwitz. Trad. de Ana Glória Lucas. Clube do Autor. 320 págs. Publicado na revista LER de Novembro de 2011.

                    História, Memória

                    Do impasse radical à libertação

                    SZ

                    Para além de filósofo, crítico e académico, atividades em regra associadas a hábitos de recolhimento e ao sossego das bibliotecas, Slavoj Žižek é, como se sabe, personagem único do seu próprio espetáculo. Deve-o em parte ao estilo idiossincrático e enérgico, no qual o desassombro e a iconoclastia ocupam um lugar central. Mas também ao facto de atrair um público interessado na reflexão, por vezes nos sound bites, de alguém que volta a colocar a ideologia, há duas décadas declarada liquidada, no centro do debate teórico. Fá-lo seguindo um método caleidoscópico, no qual os seus interesses de partida – Lacan, Lenine, o ciberespaço, a crise da modernidade, o pós-Marxismo ou Hitchcock – surgem combinados com os mais diversos e desclassificados temas da materialidade contemporânea, num processo de «tudo ligado com tudo», associado à diluição da fronteira entre alta e baixa cultura e ao repensar radical da esquerda política, que reúne legiões de indefetíveis entusiastas mas também de cáusticos detratores. Viver no Fim dos Tempos, publicado originalmente em 2010 e acabado de traduzir numa série de edições do esloveno que a Relógio d’Água tem vindo a publicar, é um excelente exemplo dessa prolixidade e da vastidão de um olhar que incorpora a capacidade de questionar as dimensões menos visíveis mas não menos obsidiantes do mundo atual. (mais…)

                      Atualidade

                      O Pai Natal não paga portagens

                      Percorro as boulevards do hipermercado suburbano e confirmo o que havia intuído ao longo dos últimos meses: é já nítida a redução do volume e da qualidade da oferta comercial, particularmente nos artigos supérfluos (telemóveis, acessórios, joias, álbuns ilustrados, sistemas de som e imagem). Mas igualmente em ramos muito mais difíceis de contornar, como o vestuário, os materiais para reparações domésticas ou mesmo a alimentação. Os livros, vivendo no país em que vivemos, esses continuam mais ou menos na mesma, comprados fundamentalmente pelos lunáticos que os consideram bens de primeira necessidade. Impressiona, no entanto, verificar o florescimento contínuo das lojas de brinquedos e de roupa para crianças. Serão elas, com toda a certeza, as últimas a sofrerem as consequências da recessão. Afinal tudo fazem sempre os pais e os avós para conservarem os seus meninos no mundo de aventura e ilusão dentro do qual nada de muito mau ou tormenta alguma parecem acontecer. E apesar de ser funcionário público o Pai Natal ainda não paga portagens ou desconta para o IRS. Pelo menos por enquanto.

                        Apontamentos, Atualidade

                        Ceaucescu em solo absoluto

                        Nicolae Ceaucescu e Kim Il-sung em 1980

                        Só esta semana vi as três horas ininterruptas da Autobiografia de Nicolae Ceaucescu, o filme de Andrei Ujică, realizado em 2010, que explora a imagem do ditador romeno numa montagem que recorreu a mais de mil horas de películas, em grande parte não utilizadas pela propaganda, existentes nos depósitos da Televisão Nacional Romena e do Arquivo Nacional de Bucareste. A expectativa de assistir a um desfile documentado de crimes de Estado e de maquiavelismo prático frustrou-se em poucos minutos. Mas aquilo a que pude assistir não foi menos violento e de certa maneira penoso. Seguindo a voz e o olhar que são os do próprio Conducator, os da construção do seu universo pessoal ao longo de duas décadas e meia de autoridade incontestada, percebemos como é fácil fabricar uma versão completamente distorcida da realidade quando o poder absoluto, a interminável bajulação, a fantasmagoria de uma conceção unilateral do mundo e da história, afastam da realidade o dirigente que vive exclusivamente dentro das suas margens, projetando-o num abismo dourado do qual já não pode sair. E percebemos também a lógica ilógica da construção de um discurso dogmático e previsível, projetado como voz do povo e em nome do povo, ao mesmo tempo que o transforma numa amálgama de escravos empobrecidos e mudos. Um documentário que assusta e no entanto elucida.

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                          Apontamentos, Cinema, História, Olhares

                          Dia da vergonha

                          Deixei na altura exata uma nota de indignação no meu mural do Facebook, mas fica aqui um registo menos efémero. Hoje, 30 de Novembro de 2011, ao final da manhã, quando a maioria PSD-CDS aprovou em votação na Assembleia da República o Orçamento para 2012, aquele que marca a pauperização acelerada de milhões de portugueses, o princípio do derrube daquilo que resta do Estado social e a submissão aos ditames políticos do eixo franco-alemão, fê-lo em euforia, batendo as palmas após a divulgação do resultado. Um vergonhoso sinal de insensibilidade e de traição que define quem o praticou.

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                            O peso da memória

                            Não sou antifadista. Aliás, o Vasquinho da Anatomia, d’A Canção de Lisboa, era-o – «Morra o fado!», chegou a gritar do fundo da alma – e acabou por ser chamado à razão, passando, por via da redentora mudança proporcionada pelo estudo e pela moderação, da condição de degenerado à de doutor. Como aconteceu com o estrangeirado moço Luís, n’O Feitiço do Império, de António Lopes Ribeiro, no momento em que trocou os prazeres tóxicos da jazz-band e a namorada americana Fay Gordon, que fumava e detestava Portugal, pela «canção nacional» e o amor de Mariazinha, esse símbolo casto, modesto e compassivo da «portugalidade» no feminino. Mas que tanto fado me reconduz ao passado, lá isso, perdoem a franqueza, reconduz. Admito que estejamos a precisar de qualquer coisa que nos sacuda a autoestima, mas não exageremos. «Viva o fado!», muito bem, levanto também o meu copo, mas não façamos dele o hóquei em patins que nos falta. O fado não merece que lhe façam isso.

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                              Apontamentos, Atualidade, Memória

                              «Imaterial», o tanas

                              Diz-se que fado vem de fatu, a palavra latina para destino. E que é fado dos portugueses cantar o fado. Fado é assim aquilo que é fatal, o que necessariamente tem de acontecer. A índole plangente e fatalista da canção de Lisboa não pode assim ser outra, porque, com ou sem faina de renovação, fado será sempre fado. O resto, bem, o resto é invenção de escriturários, engomadinhos, temerosos de sangue, lágrimas e cheiro a vinho tinto. O que cantaram em tempos certos estudantes de Coimbra – e que uns quantos repetem, até à náusea, sem ousadia ou inventiva – não era fado mas balada, tristonha e lamecha, chansonette de quem não sabia muito bem que coisa seria espetar, apenas por paixão ou desfastio, uma faca nas tripas de alguém. E meter toda a raiva, todo o sofrimento e danação, numa só cantiga.

                              A Amália que tantos lembram não era bem fado, pois cantava com uma elevação, olhar altivo e queixo levantado que não eram próprios do fado. Talvez fosse mais canto lírico. Fado-fado era a Severa, a desgraçada, ou o Marceneiro, com a voz a precisar de uma colher de mel coado, talvez a Hermínia quando estava com os copos, talvez Maria da Visitação, Zé Porfírio, Ginginhas, e outros malandros igualmente desconhecidos do excelentíssimo público. Fado era assim, e assim continua, o que fazia quem puxava pela voz quando tinha ganas de puxar da pistola. Ou quem só queria carpir a infelicidade sobre o ombro de alguém. Por isso pode servir, agora que nos empurram para uma nova vida de condenados, como choro e maldição face ao destino que não conseguimos fintar. Ou então, de faca na mão (ou na liga), como canção de combate. «Imaterial», o tanas.

                              Variação (em ré menor) sobre dois fragmentos de um artigo que publiquei em 1996.

                               

                                Apontamentos, Atualidade, Coimbra, Olhares

                                O alpinista do Kremlin

                                Não estando por esse motivo impedido de compreender o enredo, talvez o leitor comum não tenha uma perceção completa do imenso trabalho da urdidura dos factos – e da verosimilhança das falas às quais recorrem os personagens – que antecedeu a escrita de O Epigrama de Estaline, o romance de Robert Littell, saído em 2009, que a Civilização acaba de editar. Mas quem conheça de perto a história da União Soviética nas primeiras quatro décadas da sua existência não pode deixar de sentir-se impressionado com o conhecimento que o autor demonstra desse tempo, desse universo humano e até do modo de falar (e, diria, de pensar) das personagens, espelhos de pessoas com uma existência comprovada, que são os narradores deste romance. Falo dos poetas Osip Mandelstam e Anna Akhmatova, de Nadezhda, a mulher de Osip, de Zinaida, amante ocasional, de um vacilante Boris Pasternak, de Nikolai Vlasik, guarda-costas pessoal de Estaline, e de Fikrit Shotman, um antigo campeão de levantamento de pesos. E, acima de todos eles, como um espetro omnipresente, do bigode desse «alpinista do Kremlin» que Mandesltam parodiou num poema clandestino, o epigrama mencionado no título, assim assinando o seu destino de prisão, tortura, desterro e morte. Littell é, de facto, um profundo conhecedor da realidade e do passado da Rússia, e só isso lhe permitiu, apesar de nascido em Brooklyn, transformar este romance num quase-documento sobre a coação e o medo, e também a presença da traição, que comprovadamente percorreram a terra soviética nesses anos trinta espoliados e enegrecidos pelo Grande Terror. Triturando, inevitavelmente, Osip. Afinal o que seria de esperar do destino de quem, em pleno ano de 37, escreveu: «Se as pessoas não falarem comigo, / (…)Se me tratarem como a um animal, / Se me atirarem o comer pró chão –, / A dor não amordaço, não me calo (…)». Sim, este é um excelente e inquietante romance.

                                  Ficção, História