Invenção do património

Passou por mim um autocarro dos transportes públicos chamando a atenção dos passantes para o «perímetro medieval» da urbe. Uma linha a branco sobre a chapa traçava os contornos do antigo e inexistente castelo, sublinhando a imagem de um património desenhado por dentro das cabeças. Afinal, tirando a velha porta de Almedina e meia dúzia de pedras perdidas na Couraça de Lisboa, já não existem muralhas, torreões, cubelos. Nem a poeira deles. Quase nada para além de algumas casas oitocentistas, de portas a ranger, alguns edifícios religiosos, pedras exaustas, as luzes e as paredes da universidade antiga. Dão-se porém alguns prospectos aos turistas e a estudantes do sétimo bê e eles crêem-se felizes a circular por entre almocreves, bufarinheiros e artesãos, camponesas, frades e mendigos. Resvalando pelo tempo, como num filme.

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    Modo real

    «Sou um simpatizante da esquerda por sede de harmonia, de dignidade e de justiça. Mas vejo frequentemente que é a esquerda que mais ameaça essas coisas que me levaram a aproximar-me dela.» Sei que Caetano Veloso falava em contexto brasileiro, mas esta frase que deixou numa entrevista à Folha de São Paulo poderia transformar-se na essência de um manifesto universal, de uma carta-aberta transatlântica, de um abaixo-assinado que eu assinava por baixo sem a mais pequena hesitação.

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      Utopia Now

      acrobatas
      «Adoptando posições corporais que põem em perigo o ajustamento do sentido e das coisas, (…) [o acrobata] é associado à magia: por um efeito de ligação imediata, de impulso, de força sem mediações e sem dispositivo técnico, o corpo desloca-se de um lugar a outro pelo ar; os cotovelos tocam-se por detrás das costas, a cabeça desloca-se. (…) Une dois pontos do espaço através de um salto incompreensível.» (José Gil, Monstros)

      Um dia todos seremos capazes de o fazer. Todos quereremos fazê-lo. E assim talvez possamos viver mais felizes.

        Recortes

        As minhas agendas

        Estava a pensar falar sobre as agendas da minha vida quando vi que o Pedro Mexia já havia feito coisa parecida numa crónica da Grande Reportagem (agora reunida a outras na colectânea Primeira Pessoa, ed. Casa das Letras). Vale a pena, ainda assim, escrever alguma coisa sobre o assunto. Por dois motivos essenciais. Primeiro, porque se aproxima o Outono e chega com ele a altura de procurar o caderninho mais conveniente, antes que o stock esgote e tenhamos de aceitar a oferta anual das carpetes Avelino ou das confecções M. Santos & Filho. Depois porque quase todos nós temos recordações e sentimentos particulares em relação a esse tipo de objecto íntimo. Eu não escapo à regra.

        Lembro o prazer infantil que sentia em receber, em dose tripla ou quádrupla da responsabilidade de uma companhia de seguros qualquer, aqueles cadernos de capa cartonada ou em oleado, por vezes com um pequeno lápis lateral, e cheios de pormenores que achava abolutamente essenciais. Sobre coisas magnas e tão diversas como as fases da lua, o horóscopo chinês, a população de Copenhaga, os afluentes do Amazonas, o ramal da Lousã, a invenção do papel, «anedotas do Bocage», como tirar nódoas de azeite ou o cognome de D. Henrique, o tio e sucessor indesejado do Desejado. Folheava-as durante tarde inteiras, imaginando tudo a partir de muito pouco. Com uma única angústia: a minha vidinha sem responsabilidades não me dava motivos suficientes para apontar o que fazer. A parte da agenda propriamente dita ficava então em branco, com a excepção do meu aniversário, dos resultados do Sporting, e de um frase, exultante e em maiúsculas, inscrita a cada 1 de Julho: «COMEÇO DAS FÉRIAS GRANDES».

        A seguir veio a filofax, com os seus separadores coloridos, lugar para cartões de crédito e credifones, uma presilha de botão. Pesada, com menos informação e ainda mais espaço para escrever notas e lembretes, nunca me entusiasmou particularmente. Usei-a principalmente para guardar moradas e, em casa, como pisa-papéis. E de repente, há uns cinco, talvez seis anos, passei a servir-me das agendas electrónicas. Nas quais parece caber de tudo. No meu actual Pocket PC, com inexploradas capacidades wi-fi e bluetooth, tenho agora uma agenda perpétua (sempre demasiado preenchida), um alarme, um processador de texto, uma base de dados, dicionários, programas para a Internet. Para não falar de versões das enciclopédias Compton e Britannica, um atlas sofrível, um guia de restaurantes, a Internet Movie Database, e toda uma série de obras de referência (como o Routledge Companion to Historical Studies ou diversos livros electrónicos sobre o cinema e a história do século XX), que consulto em desespero de causa. Mas falta-me um pouco aquele ritual da espera e da chegada das agendas do ano seguinte, o cheiro a cola e a tinta de impressão, a sensação de agarrar com as mãos a chave do mundo.

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          Et pluribus unum

          Graxas
          A Sociedade Portuguesa de Graxas dedica-se, hoje como outrora, à nobre arte da «fabricação de graxas, pomadas, cremes e outros artigos similares». E tem, no seu passado de labor em prol do calçado luzidio, anúncios tão eloquentes como este (datado de 1963 e que tomo de empréstimo ao blogue Às duas por três). Que me perdoem os amigos benfiquistas que virem na exibição deste documento qualquer insinuação um tanto dúbia e despropositada relativa a actos menos gloriosos. Estão enganados. História é história.

            Etc.

            A sete vozes

            Anos Inquietos
            Chega às livrarias um livro de entrevistas a activistas estudantis dos anos 60. Organizado pelo autor deste blogue e por Maria Manuela Cruzeiro, e editado pela Afrontamento, Anos Inquietos – Vozes do Movimento Estudantil em Coimbra (1961-1974) integra sete conversas com sete pessoas diferentes, com experiências diferentes, que permitem ampliar o olhar contemporâneo sobre uma época tantas vezes abordada a partir de ideias-feitas, de recordações filtradas ou de experiências contadas para legitimar um certo presente. Sendo também histórias de vida, estas entrevistas – a Eliana Gersão, Fernando Martinho, Carlos Baptista, Pio de Abreu, Fátima Saraiva, José Cavalheiro e Luís Januário – viajam um pouco pelo passado de cada um, pela imagem que dele preservam ou que sobre ele foram construindo, preenchendo, como documentos a confrontar com outros documentos, áreas da nossa história recente que têm permanecido na penumbra.

              Novidades

              Apenas palavras

              Neste caso a memória permanece estranhamente presente. Tudo se esquece com facilidade, menos aquelas imagens cintilantes de aviões sob um céu azul, que sabemos lotados de passageiros em pânico, a colidirem em fogo contra as enormes torres de cimento, vidro e aço atulhadas de pessoas distraídas com a sua vida. Tudo se esquece menos o momento no qual soubemos que jamais voltaremos a jurar, onde quer que nos encontremos, que estamos em completa segurança. Menos perceber, como sugere Slavoj Žižek, «a ideia da existência de um agente Maligno que faz pairar constantemente sobre nós a ameaça de uma destruição total». A certeza, por mais debates que se façam sobre o conflito ou o entendimento das religiões – com todos os mulás, rabis, padres e demais pastores jurando sobre o seu livro, pelas barbas ou pelo sangue de um qualquer profeta, a benignidade essencial da sua -, de que podem as simples palavras, ou as boas intenções, não servir para nada.

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                O humor mora ao lado

                discurso público
                Apareceram no blogue Branco Sujo alguns posts, reunidos com o título comum «INDYvagações amadoras sobre Imprensa», a propósito do fim do Independente e da importância desse jornal na imprensa (e na sociedade) portuguesa dos últimos vinte anos. Sublinho algumas ideias que me interessaram mais.

                Dizendo estranhar que na sua área política, com pouquíssimas excepções, se não tenham apercebido daquilo que o semanário trouxe de novo, José Quintas afirma ali que «dessa ignorância resultou a aceitação generalizada que o discurso típico da esquerda é aborrecido, escrito de modo seco, limitado à enumeração inócua dos pés de barro do capitalismo». E adianta: «Admita-se publicamente: há muito mais pessoas conotadas com a direita a escrever bem». Para depois acrescentar: «Para quem detém um edifício ideológico coerente (…), a ‘graça’ pode parecer ‘graçola’ inconsequente de miúdos’», lamentando ainda que «a esquerda, de um modo geral, nunca tenha entendido essa particularidade da natureza humana». São afirmações que me parecem lúcidas, mas levantam questões difíceis de tratar em três ou quatro dúzias de linhas. Ficam pois algumas anotações, com a intenção de voltar ao assunto.

                Reconheço também o facto do discurso-padrão da esquerda ser, por via de regra, não só desprovido de humor como militantemente resistente a quem tente perturbar esta orientação. Existe uma base histórica para este facto, uma vez que ele parte da tradição de um verbo protestativo, que fala em nome do injustiçado, do sofredor, do oprimido – herdeiro de um outro, recolhido no romantismo, que falava em nome do «homem» e da história – e que não tem motivo algum para se rir deste (e neste) mundo. Produziu-se, desde o início, um «fundamento de classe» que determinou a aridez da fala matricial da esquerda. A grande dificuldade em superá-lo mantém-se na mesma medida em que também se verifica, por parte desta, uma enorme dificuldade em superar a tradição das suas experiências, mesmo as mais negativas, que sempre se fundaram na consideração de uma escusa ao combate «em estado de ódio» como forma de traição. Entre nós, a linguagem do PCP funciona como testemunho duradouro desta característica, mas a fala, principalmente a mais recente, do Bloco de Esquerda, não me parece substancialmente diferente. E até a generalidade dos «independentes» situados à esquerda a conserva no essencial. Mesmo no interior do pequeno universo dos blogues, naturalmente mais aberto a alguma desenvoltura nas ideias e nas maneiras de falar.

                A constatação de que existe agora um número maior de pessoas conotadas com a direita a «escrever bem» põe outra hipótese que parece fazer todo o sentido. Principalmente, porque tempos houve, há três ou quatro décadas atrás, nos quais a direita era um deserto de ideias mais do que gastas, de linguagens esclerosadas, de fortes bloqueios, enunciando os seus discursos um certo agastamento, e uma clara incompreensão, em relação às transformações profundas que ocorriam no mundo. Quase todos os melhores escritores, os jornalistas mais capazes, os artistas mais originais, as pessoas mais cultas, activas e optimistas, integravam-se então – em Portugal era essa, sem dúvida, a tendência dominante – inequivocamente na área da esquerda. Hoje, porém, a esquerda continua a pensar-se essencialmente a mesma, continuando tolhida na posição meramente defensiva do discurso exclusivo do protesto – apenas temperado, ocasionalmente, por alguns sinais de marketing eleitoral – sendo por isso facilmente ultrapassada por sectores menos complexados, por vezes conotáveis de facto com uma certa «direita», que passaram as últimas duas décadas a reformular as suas causas, a ensaiar uma nova língua para as enunciar, a transportá-la sem complexos por todos os meios de comunicação, incluindo-se neles, e com um grande peso, a Internet.

                A resistência «tenaz» da esquerda face a uma criatividade sem entraves, que passe pela falta de humor, pela fuga ao uso da ironia, pela desconfiança diante da dimensão lúdica do acto de comunicar, é uma das peças obsoletas de um discurso dirigido a um «grande ghetto» e que, por isso, dificilmente rompe o isolamento (acto no qual, por vezes, nem interessada parece estar). Reduzindo – tal como, inversamente, o Independente dos melhores tempos o demonstrou pela positiva – as vias de empatia com sectores sociais cultos e informados, que já não partilham de uma consciência essencialmente colectivista e sofredora da vida e do próprio combate social. A direita, com muito menos traumas e complexos, vai aproveitando.

                  Opinião

                  Tão gregos como nós

                  Revi há dias, com alguma nostalgia mas também o distanciamento crítico que na altura não era capaz de ter, a beleza ficcionada das aulas de uma excelente professora da faculdade. Um dos últimos e interessantes números dos Cahiers Science et Vie despertou essa recordação. Tinha como tema a travessia do tempo protagonizada por seis heróis gregos: Prometeu, Orfeu, Édipo, Teseu, Hércules e Sísifo. Porém, mais do que a habitual informação enciclopédica, colocava dúvidas e problemas sobre a forma como todos eles, e as suas respectivas lendas, foram apropriados ao longo do tempo por escritores, filósofos, cientistas ou pessoas comuns. Uma conclusão geral parece-me agora alguma coisa de óbvio: ao contrário daquilo que uma leitura ingénua ou entusiástica dos heróis gregos por vezes nos faz crer, os monstros, os milagres, os gestos heróicos e salvíficos, tal como aconteceu na sua posteridade, jamais foram tomados à letra pelos antigos. Como nós, como aqueles que se colocaram entre eles e nós, serviram-se dos mitos, das lendas, das narrativas, para produzirem imagens reflectidas do seu próprio mundo. Para proclamarem a recuada origem das suas cidades, a legitimidade das formas de poder nelas estabelecidas, a variedade dos problemas por resolver, dos enigmas por inquirir, dos medos por apaziguar.

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                    O Saturno

                    Saturno,  o chapéu
                    A cada vez mais rápida transmutação do presente em memória, e logo em esquecimento, obriga-nos a viver tudo como se da primeira vez se tratasse. Este sintoma de atracção pela velocidade detecta-se dramaticamente em parte substancial da prática jornalística. A mesma que, pelo menos do ponto de vista ético, deveria perspectivar o presente sem ignorar os «presentes» que o antecederam. A sedução da rapidez, a par, em muitos casos, de uma ignorância crassa – ou, pior, da completa incompetência – produz assim situações de confrangedora ausência de rigor. Segundo o Público, o papa Bento XVI saiu ontem à rua com um chapéu inteiramente «novo» e «inovador», o Saturno, o qual, de acordo com a mesmíssima notícia, foi também… utilizado muitas vezes por João XXIII e por João Paulo II, nos primeiros anos de pontificado. Acrescento: pelo menos Bento XV e Pio XII usaram-no também. Tem, aliás, um corte tradicional, muito ao estilo do cura de aldeia dos finais do século XIX, naturalmente em versão carmesim, que será do agrado de um papa objectivamente retrógrado como o actual. Este tipo de imprecisão pode parecer uma irrelevância. Repetida, como tem sido, é acima de tudo um sintoma.

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                      Blogues, e-zines & companhia

                      Num conjunto de textos publicados no Auto-Retrato sob a comum designação «O mal dos blogues», Sérgio Lavos refere-se – com ecos no Esplanar – a um conjunto de problemas e perplexidades aos quais provavelmente devemos ficar atentos.

                      Enuncia-se ali uma contradição entre os limites colocados ao funcionamento dos blogues, sempre dependentes do seu imediatismo e efemeridade, e a insistência no grande salto que eles representaram em relação ao período dos e-zines, nos quais era possível produzir um nível de discurso mais complexo e elaborado (se alguns deles foram fanzines com outro rosto, muitos outros foram bem mas do que isso). Concordo por completo com os limites apontados a estes e-zines em termos de capacidade para se manterem actualizados e de facilidade de manipulação, mas já não concordo – e posso dizer que conheci bem o meio pois estive mergulhado nele durante seis ou sete longos e exaltantes anos – com a referência à sua vinculação aos «tiques e defeitos das publicações académicas tradicionais». A verdade é que – terei, com mais meia dezena de pessoas, configurado a excepção – durante mais alguns anos os académicos e o seu mundo mantiveram-se, em Portugal, completamente alheios a esse espaço aberto. Projectos tão originais como o Top 5% Webzine , a Babel, o Código de Barras ou a Alface Voadora – de José Couto Nogueira, meu saudoso parceiro e amigo – seguiram por caminhos e linguagens bem diferentes.

                      Por outro lado, parece-me importante introduzir na reflexão quatro tipos de blogues sempre algo marginalizados pelos «grandes cruzadores» do debate político, aqueles que somam e multiplicam um número muitíssimo maior de page views. Ainda que tenham uma visibilidade inferior, eles têm pontuado muito do que neste domínio existe de melhor, de mais criativo, e, num certo sentido, de mais profundo. Refiro-me aos blogues mais directamente preocupados com a criação, com o «comentário cultural», com causas e interesses mais específicos, assim como aos, inúmeros, de natureza intimista. Permitindo todos eles – os que conservam uma regularidade e uma qualidade acima da média, para não falar do inevitável lixo, bem entendido – a pluralidade e o encontro de interesses absolutamente ímpares. E permanecendo também enquanto notáveis espaços para o treino de escrita e dos próprios processos de reflexão e de crítica.

                      A leitura dos blogues tem, além disso, permitido a definição de modalidades de democracia informal e a visibilidade de posições que os grandes jornais e as estritas organizações da democracia representativa costumam silenciar ou ignorar. O que valerá a pena sublinhar ainda é que eles tem contribuído também, e de uma maneira sem dúvida crescente, para colocar problemas que de outra forma nem sequer se teriam posto sobre a agenda dos meios de comunicação social, dos órgãos de soberania e dos partidos. SL reconhece-o ao fazer notar que os blogues «seja qual for a forma tomada no futuro, irão ser um meio fundamental de produzir, acima de tudo, opinião». Por isso mesmo é que se torna necessário não aceitar como inevitável, e via única para a sua sobrevivência, a completa integração comercial deste meio. É que foi precisamente por aqui que começaram a morrer os e-zines, substituídos por «portais» incaracterísticos, estandartizados, frívolos até. Por isso também é necessário resistir à apropriação completa e às tentativas de aniquilamento deste espaço de liberdade. Felizmente que, para o fazer, não é preciso muito mais do que vontade e inteligência.

                        O amor em fascículos (3)

                        r-love
                        Tenho alguma dificuldade em falar nas aulas do amor romântico. Quando tento revelar, em primeira mão, as quatro características que distinguem esse estado de espírito ocidental e único – o facto de nascer sempre de um encontro fortuito, a impossibilidade de desaparecer por um simples esforço de vontade, o sexo como algo de longínquo e não essencial, a presunção de que aquele estado de plenitude durará «para sempre» – parece-me entrever alguns sorrisos cínicos. Se sugiro a leitura de Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, ou de O Vermelho e o Negro, de Stendhal, sinto cruzarem-se alguns olhares trocistas. E preciso desdobrar-me em explicações. Afinal, o amoroso romântico – sonhador, nostálgico, capaz de ir até ao fim do mundo, ou de morrer, pelo seu amor – é acima de tudo um personagem literário. Paradoxalmente, são muitos daqueles que nada lêem que mais acreditam nele.

                          Devaneios

                          Mais sixties

                          Tem razão Eduardo Pitta em achar redutora uma tentativa de entender as mudanças dos sixties, principalmente no que elas tiveram de mais profundo e duradouro, sem destacar as transformações no campo artístico e intelectual. Elas foram quase sempre protagonizadas por gestos pioneiros, vidas difíceis, dramas, momentos de felicidade em certas ocasiões, e essa sina, não sendo, como sabemos, exclusiva do tempo em causa, teve nele uma interferência relevante. Isso foi ainda mais evidente num país como Portugal. Tirando à época os «intelectuais de regime» – se é que alguém nos sabe dizer hoje onde estavam eles nos seus anos terminais – e as celebridades locais, a condição de romancista ou de poeta, a de artista plástico, de actor ou a de crítico, era quase sempre associada, fora dos pequenos círculos nos quais cada um deles se incluía, fora do pequeno público que eram quase as mesmas pessoas, a algo de estranho e de perturbador. Mas foi sem dúvida com eles, quase sempre, que as ideias e atitudes, as técnicas e experiências, que definiram a especificidade dos anos 60 portugueses, e aquilo que nos permite identificá-los na nossa história recente, entraram e se puderam reproduzir.

                          Porém, isso não invalida – e foi este o sentido da minha leitura inevitavelmente parcial – que se tenha constituído, gradualmente, um amplo sector da sociedade, centrado principalmente numa classe média em crescimento e nos ambientes universitários, então mais irrequietos do que nunca, que foi articulando uma crescente desafectação em relação ao regime e aos seus códigos, desenvolvida, muitas vezes, em paralelo aos duros esforços da oposição política. Incorporando, ainda que quase sempre sob forma de vulgata, alguns dos contributos ensaiados no campo artístico e intelectual, treinando e aplicando estilos de vida e leituras do mundo alheios ao modelo fechado e ruralista que fora dominante na fase de formação e de afirmação do Portugal de Salazar. Falava eu, pois, da constituição de uma nova cultura popular autóctone, inseparável da outra, mas que possuía, naturalmente, outros contornos. Apenas desta forma me parece possível explicar o alheamento da maioria dos portugueses, os «da metrópole» sobretudo, em relação à derrocada do império, e a quase unanimidade com a qual, no dia 1 de Maio de 1974, os mesmos portugueses, grande parte dos quais sem nada que os aproximasse da esquerda, e menos ainda das elites de oposição, saíram à rua com esse cravo vermelho ao peito que, como se dizia na canção, «a todos fica bem».

                          Uma nota um tanto lateral ao post estimulador do Eduardo Pitta: está por fazer a história intelectual das comunidades de origem europeia em Angola e Moçambique durante as guerras coloniais e os tempos que as precederam. Será preciso ultrapassar ainda muitas desconfianças, rancores adormecidos, preconceitos explicáveis e desnecessários. Mas perdendo-se entretanto, até que isso se torne possível, grande parte da memória disponível. Só depois chegaremos a uma compreensão mais completa, e mais complexa, dos sessentas portugueses.

                          PS – Claro que tudo isto carece de reconhecimentos mais aproximados. As generalizações usam-se, aqui como em outros casos, para contestar outras generalizações (estas, devido à sua provecta idade, com menos razão para existirem). E também, pelo menos no que me toca, como estímulo para um trabalho sistemático.

                            Frére Jacques

                            Prévert
                            Reencontro por um acaso a edição de Paroles que comprei às escondidas em 1972 e entro em flashback. Jacques Prévert na capa, no seu estilo único, como um dandy com boina de operário, capaz de alternar ferroada da grossa com patinhas de veludo. Como os irredutíveis da anarquia, preferia sempre ver-se «de fora», contra toda a ordem. Recusará por isso manter uma ligação com os comunistas que não fosse apenas pontual: «Aderir?.. Mas iam logo meter-me numa célula!». Tinha outro programa («J’écris pour faire plaisir à quelques uns et pour en emmerder beaucoup») e uma certa percepção da condição incerta e perigosa do intelectual («Il ne faut pas laisser les intellectuels jouer avec les allumettes»).

                              Olhares

                              Indigestão (ainda a geração de 60)

                              68 algures
                              Deixei aqui um pequeno texto no qual afirmava que o impacto local do renovado ambiente da cultura popular, ou «de massas», internacionalmente definida ao longo dos vinte anos que duraram os sixties, preparou – apoiado sobretudo na juventude estudantil, nas novas gerações de profissionais liberais e numa classe média urbana em expansão – um clima de rejeição do regime que veio a cair em Abril de 1974. Outros textos, aparecidos essencialmente em blogues, têm entretanto levantado a questão em idênticos termos, ainda que com nuances naturais na abordagem de uma realidade da história das últimas décadas que, sobretudo por ter grande parte dos seus actores ainda vivos e atentos, e também por dela ainda se recolherem as ondas de choque, permanece bastante quente. Surge hoje no Público um texto, assumido como resposta à tendência interpretativa que tem dominado esta polémica, no qual o dirigente do PCP Vítor Dias recoloca a questão em termos muito diferentes daqueles que anotei.

                              Desde já uma ressalva. Ao contrário do que infere VD, nenhum dos textos sobre o assunto que eu tenha lido – nem mesmo o inaugural de Vasco Pulido Valente, pelo que se vê saudavelmente provocador – desvaloriza aquilo a que ele chama «a luta popular e democrática». Vinda de muito antes, esta continuou, à margem de modas e epifenómenos, no meio da dura repressão salazarista, mas também das purgas internas e das reviravoltas tácticas, a ser essencialmente organizada pelos comunistas, tendo sido pautada por iniciativas, sobretudo de natureza reivindicativa, que procuravam combater, sempre na expectativa de um amanhã melhor, as injustiças e as desigualdades instaladas na sociedade portuguesa. Ela foi essencial, sem dúvida, para a redução de muitas arbitrariedades e para a afirmação de uma resistência que chegou ao poder após o 25 de Abril e que viveu depois, em liberdade, a instalação da democracia representativa. Nada disto parece questionável ou foi sequer questionado.

                              Já o mesmo não posso dizer em relação ao que se passava no tal universo urbano habitado por uma juventude com anseios radicalmente novos e por uma classe média sedenta de autonomia, ambas crescentemente adversas às práticas do regime e ao seu código de valores. VD, ao dizer, com o objectivo claro de relativizar a importância deste sector nos processos de mudança, que na época «os estudantes universitários andavam por 30.000 ou pouco mais», o que é verdade, faz por esquecer de que se falou de um arco temporal de cerca de 15 anos, e que, durante todos esses anos, a multiplicação de estudantes e ex-estudantes, portadores de uma experiência de oposição cultural e vivencial, ter-se-á ampliado, no todo, a várias centenas de milhares de pessoas, às quais podem ainda associar-se, frequentes vezes, muitos dos seus familiares, os amigos chegados, os conterrâneos… Por outro lado, o lugar deste amplo sector, numa altura em que a dinâmica social fazia recuar o peso dos operários e dos camponeses – que integrariam prioritariamente a «luta popular» da qual fala VD – era de um cada vez maior destaque, na definição de comportamentos de natureza anti-disciplinar tal como na organização dos processos de mudança. Estou em crer que o próprio regime o acabava por reconhecer, ao mostrar-se incapaz de reprimir a contestação ou as iniciativas de resistência desses sectores com a mesma inflexível brutalidade com a qual, anteriormente, reprimira a luta operária, as revoltas campesinas ou a dissidência intelectual.

                              Um livro de entrevistas, feito a activistas estudantis da época, que organizei em conjunto com Maria Manuela Cruzeiro e que estará muito em breve disponível (Anos Inquietos. Vozes do Movimento Estudantil em Coimbra (1961-1974), ed. Afrontamento), mostra documentalmente, com razoável clareza, a emergência dessa noção, geracional se se quiser, de uma incontornável desafectação em relação ao Estado Novo, a qual nasceu, para quase todos os seus actores, como experiência natural de resistência a um poder que viam como caduco, injusto e fora do seu tempo. A militância partidária, nos casos, muitos, em que aconteceu, ocorreu sempre razoavelmente depois dessa tomada de consciência e dessa predisposição para se afirmarem como sendo «do contra». Incluindo – sublinho isto – aquela que aconteceu dentro do próprio movimento estudantil.

                              A «festa», a ruptura pelo lado da vivência do quotidiano, da sensibilidade, da estética, da experiência individual, que, hoje como ontem, aqui como noutras partes, incluindo na Paris ou na Praga de 1968, os comunistas essencialmente desvalorizaram e desvalorizam – utilizando-a apenas como chamariz de alguns sectores juvenis incapazes hoje de viverem sem ela – não significava, como VD insinua e como Álvaro Cunhal deixou claro no texto sobre o «radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista» com o qual, em parte, pretendeu riscar de alto a baixo o livro Maio e a Crise da Civilização Burguesa (publicado em 1970 por António José Saraiva), um néscio alheamento da realidade. Mas antes uma reacção natural perante um mundo que ruía sem que se percebesse muito bem que outro mundo dali poderia emergir. Coisa que a «ideologia da classe operária», bem como os seus presumíveis oficiantes, jamais serão capaz de abarcar ou simplesmente de aceitar.

                              VD conclui o texto, afirmando, para diminuir o valor dos testemunhos daqueles que interpretam aquele passado mais a partir da sua experiência vivida do que das cartilhas que lhe pretendem atribuir um sentido meta-histórico, que «o nosso umbigo é o pior e mais limitado horizonte para conhecer o país, a vida e a sua história». Eu poderia dizer a mesma coisa, ainda que, a partir das conquistas do vocabulário político da geração de 60 – que, ao contrário de Vítor Dias, não coloco entre aspas – o prefira fazer com palavras menos previsíveis.

                                Opinião

                                Os matizes

                                Mario Vargas Llosa
                                Como se tem percebido no decorrer dos debates, ou da vozearia, sobre a actual crise no Médio-Oriente, é difícil, e eventualmente pouco popular, tomar posições complexas. Mario Vargas Llosa, que, neste como em outros assuntos, as toma frequentes vezes, comenta hoje no suplemento 6a, do Diário de Notícias, as dificuldades pelas quais tem passado. Pelos mesmíssimos motivos, foi por uns acusado de «comunista», «ultra-esquerdista», «castrista», «outro Saramago», «anti-semita», enquanto, a partir de diferente barricada, o consideravam «neo-conservador», «ultra-liberal», «pró-americano» ou, como diz ele, «outras lindezas do mesmo estilo». Toda a sua crónica de hoje é sobre a difícil condição do que não vê apenas para um dos lados. Como não está disponível online, aqui vai um fragmento:

                                «A abolição dos matizes facilita muito as coisas na hora de julgar um ser humano, analisar uma situação política, um problema social, um acto de cultura, e permite dar livre curso às filiações e às fobias pessoais sem censuras e sem o menor remorso. Mas é, também, a melhor maneira de substituir as ideias pelos estereótipos, o conhecimento racional pela paixão e pelo instinto de malentender tragicamente o mundo em que vivemos. Há certos conflitos que, pela violência e pelos antagonismos que suscitam, levam quase irresistivelmente aqueles que os vivem ou seguem de perto a liquidar os matizes a fim de promover melhor as suas teses e, sobretudo, desbaratar as dos seus adversários.»

                                  Recortes

                                  Amor em fascículos (2)

                                  amour
                                  O «amor galante» surge, no século XVII, como instrumento fundador de uma ordem das coisas. Na literatura, a paisagem, os caminhos, as colinas, os riachos, os lagos e florestas que envolvem as ligações amorosas, transfiguram-se em função do motivo central: os dois amantes que, descobrindo-se, redescobriam ao mesmo tempo a sua presença no mundo. Uma gama vasta de emoções subtis, de metáforas sucessivas e reveladoras – que a poesia barroca desenvolverá de forma poderosa e obstinada, e que o extremo-romantismo retomará – teatraliza a ligação amorosa, sobrepondo-se a um viver comum que lhe escapa e lhe parece desenvolver-se num território degradado. Amar é, assim, colocar o mundo num palco novo. A galanteria aparece, desta forma, como comédia do amor, tendo lugar no texto mas sem corresponder minimamente às expectativas do autor. Como um fingimento vivido enquanto ocasião de deleite.

                                    Devaneios