O humor mora ao lado

discurso público
Apareceram no blogue Branco Sujo alguns posts, reunidos com o título comum «INDYvagações amadoras sobre Imprensa», a propósito do fim do Independente e da importância desse jornal na imprensa (e na sociedade) portuguesa dos últimos vinte anos. Sublinho algumas ideias que me interessaram mais.

Dizendo estranhar que na sua área política, com pouquíssimas excepções, se não tenham apercebido daquilo que o semanário trouxe de novo, José Quintas afirma ali que «dessa ignorância resultou a aceitação generalizada que o discurso típico da esquerda é aborrecido, escrito de modo seco, limitado à enumeração inócua dos pés de barro do capitalismo». E adianta: «Admita-se publicamente: há muito mais pessoas conotadas com a direita a escrever bem». Para depois acrescentar: «Para quem detém um edifício ideológico coerente (…), a ‘graça’ pode parecer ‘graçola’ inconsequente de miúdos’», lamentando ainda que «a esquerda, de um modo geral, nunca tenha entendido essa particularidade da natureza humana». São afirmações que me parecem lúcidas, mas levantam questões difíceis de tratar em três ou quatro dúzias de linhas. Ficam pois algumas anotações, com a intenção de voltar ao assunto.

Reconheço também o facto do discurso-padrão da esquerda ser, por via de regra, não só desprovido de humor como militantemente resistente a quem tente perturbar esta orientação. Existe uma base histórica para este facto, uma vez que ele parte da tradição de um verbo protestativo, que fala em nome do injustiçado, do sofredor, do oprimido – herdeiro de um outro, recolhido no romantismo, que falava em nome do «homem» e da história – e que não tem motivo algum para se rir deste (e neste) mundo. Produziu-se, desde o início, um «fundamento de classe» que determinou a aridez da fala matricial da esquerda. A grande dificuldade em superá-lo mantém-se na mesma medida em que também se verifica, por parte desta, uma enorme dificuldade em superar a tradição das suas experiências, mesmo as mais negativas, que sempre se fundaram na consideração de uma escusa ao combate «em estado de ódio» como forma de traição. Entre nós, a linguagem do PCP funciona como testemunho duradouro desta característica, mas a fala, principalmente a mais recente, do Bloco de Esquerda, não me parece substancialmente diferente. E até a generalidade dos «independentes» situados à esquerda a conserva no essencial. Mesmo no interior do pequeno universo dos blogues, naturalmente mais aberto a alguma desenvoltura nas ideias e nas maneiras de falar.

A constatação de que existe agora um número maior de pessoas conotadas com a direita a «escrever bem» põe outra hipótese que parece fazer todo o sentido. Principalmente, porque tempos houve, há três ou quatro décadas atrás, nos quais a direita era um deserto de ideias mais do que gastas, de linguagens esclerosadas, de fortes bloqueios, enunciando os seus discursos um certo agastamento, e uma clara incompreensão, em relação às transformações profundas que ocorriam no mundo. Quase todos os melhores escritores, os jornalistas mais capazes, os artistas mais originais, as pessoas mais cultas, activas e optimistas, integravam-se então – em Portugal era essa, sem dúvida, a tendência dominante – inequivocamente na área da esquerda. Hoje, porém, a esquerda continua a pensar-se essencialmente a mesma, continuando tolhida na posição meramente defensiva do discurso exclusivo do protesto – apenas temperado, ocasionalmente, por alguns sinais de marketing eleitoral – sendo por isso facilmente ultrapassada por sectores menos complexados, por vezes conotáveis de facto com uma certa «direita», que passaram as últimas duas décadas a reformular as suas causas, a ensaiar uma nova língua para as enunciar, a transportá-la sem complexos por todos os meios de comunicação, incluindo-se neles, e com um grande peso, a Internet.

A resistência «tenaz» da esquerda face a uma criatividade sem entraves, que passe pela falta de humor, pela fuga ao uso da ironia, pela desconfiança diante da dimensão lúdica do acto de comunicar, é uma das peças obsoletas de um discurso dirigido a um «grande ghetto» e que, por isso, dificilmente rompe o isolamento (acto no qual, por vezes, nem interessada parece estar). Reduzindo – tal como, inversamente, o Independente dos melhores tempos o demonstrou pela positiva – as vias de empatia com sectores sociais cultos e informados, que já não partilham de uma consciência essencialmente colectivista e sofredora da vida e do próprio combate social. A direita, com muito menos traumas e complexos, vai aproveitando.

    Opinião.