Almanaque

Leitura Furiosa

De fio a pavio. A expressão caiu em desuso, mas foi assim – no todo e a fundo, com muita surpresa e algum entusiasmo – que, durante duas semanas de um Agosto do princípio deste século, li de enfiada os dezoito números (e um suplemento) da revista Almanaque que saíram entre Outubro de 59 e Maio de 61. A nota de abertura do primeiro número não enganava:

«Este Almanaque (…) vem ao gosto moderno, segundo a linha 1959, trata por tu o teatro de Beckett e Ionesco, os escritores da Beat Generation, os Pat Boone ou os Georges Brassens, os íntimos de Françoise Hardy e as verdadeiras causas do caso Pasternak. Só não conhece os segredos dos painéis de Nuno Gonçalves, mas há-de chegar lá um dia.»

No número 2, o tom mantinha-se, sublinhando-se a intenção de contrariar o salazarista «viver habitualmente» e olhar o mundo para além dos monótonos postos fronteiriços de Quintanilha ou Vilar Formoso:

«Bem se ralavam os nossos trisavós com terem ou não terem morrido mil pessoas nas inundações da Manchúria ou ter mudado de coronel a presidência da Bolívia. Nós não. Logo de manhã começamos a preocupar-nos com coisas que rigorosamente não nos dizem respeito. Que o Sultão de Alahabar tem trezentas mulheres, que em Munique uma velha bebeu por aposta cem litros de cerveja e morreu. E temos pena do Sultão, e temos inveja da velha.»

«O programa da revista era simples» – dirá José Cardoso Pires, um dos seus fundadores, em entrevista ao Século Ilustrado – procurando-se principalmente «ridicularizar os provincianismos, cosmopolitizados ou não, sacudir os bonzos contentinhos e demonstrar que a austeridade é a capa do medo e da falta de imaginação». O anseio de universal que transparecia das páginas da revista – com uma profusão de temas e citações e uma ousadia gráfica que chegaram a ser tomadas, à esquerda e à direita, como expressão de afectação – não se limitava pois a vagas intenções, distribuindo-se por secções e artigos nos quais era uma constante a aproximação a outras realidades e maneiras de estar no mundo. Reportagens mensais sobre países e povos considerados exóticos (Afeganistão, Israel, Saara, Pérsia, Polónia, os índios americanos, os esquimós), artigos sobre a forma como se divertiam os habitantes de Londres, Tóquio ou Nova Iorque, pequenos textos sobre filósofos ou rockers contemporâneos (sem grande distinção formal entre as duas categorias de gente), uma secção («As latitudes da felicidade») que procurava fazer um retrato da psicologia e das formas de vida das jovens mulheres da Suécia, de Inglaterra, dos Estados Unidos, da Alemanha, de França ou da Itália.

E ainda, tal como um verdadeiro almanaque – lembra-o agora Maria Antónia Oliveira num passo da recentíssima biografia literária de Alexandre O’Neill (outro dos fundadores, ao qual se devem juntar, para além de Cardoso Pires, Luís de Sttau Monteiro, Augusto Abelaira, José Cutileiro, João Abel Manta, Baptista-Bastos e o jovem Vasco Pulido Valente) –, com «muitas fotos, desenhos, artigos frívolos, astrologia, receitas, anedotas, artigos sobre actores de cinema, curiosidades, críticas de discos e de filmes, floricultura» e outras prosas consideradas mais sérias. Uma «espécie de magazine» bastante enviesado, num tempo em que eles eram mais que raros e absolutamente necessários.

Publicado originalmente em Passado/Presente
Fotografia de Eduardo Gageiro, retirada de um dos números da Almanaque

    História

    Ainda o Público light

    Não me apetecia voltar à vaca-fria do Público remodelado. Não me apetecia falar ainda da Pública de domingo, que parece assumir em parte a futilidade do inenarrável e saudavelmente extinto suplemento Xis. Não me apetecia referir também a forma com o Local, tão útil para tantas pessoas – para os leitores de Coimbra e de toda a região centro deste país, por exemplo – foi literalmente implodido. Mas o Rui Ângelo Araújo fez-me mudar de ideias. Concordo com ele e com ele partilho a secreta e (provavelmente) infundada esperança revelada no último parágrafo deste post d’Os Canhões de Navarone.

      Da decadência do Entrudo

      « – O Entrudo está perdido. Eu lembro-me que, sendo rapaz, houve tal Entrudo na minha rua, que por conta das peças que ali se fizerão, houverão vinte brigas e quatro mortes. Então havião homens de bigodes; porém, hoje, estes Peraltas, ainda que lhes botem três arrates de polvilho no topete, fazem uma cortesia, e vão andando seu caminho. Oh tempora! Oh mores!
      (…)
      – Pois eu lembro-me que em hum Entrudo gastei três arrobas de polvilhos e nove arrates de grangea; todos os vestidos ficaram perdidos, as alcatifas, os cortinados, e as cadeiras, nunca mais prestarão para nada. Eu andei toda a Quaresma com huma doença nos olhos, que me embaraçou de ir ver as Procissões. Ah, Senhores, muito me diverti aquelle Entrudo!»

      Comedia nova, intitulada O Entrudo desabuzado em Lisboa, Lisboa, off. de Domingos Gonsalves, 1783

        Recortes

        À mercê do medo

        Medo na cidade

        Desprovidos de panoramas do futuro, mas intimados a cada dia a definir mais e mais objectivos, sobrevivemos à mercê do medo.

        «O progresso, que foi outrora a mais extrema expressão de um optimismo radical, promessa de felicidade universal e eterna, cedeu o seu lugar ao pólo oposto, anti-utópico e fatalista, das previsões: hoje em dia, representa a ameaça de uma evolução impiedosa e inesquivável, que não pressagia paz nem tranquilidade, mas crises e tensões contínuas, ao mesmo tempo que nos não consente um momento de repouso; uma espécie de jogo de “quem vai ao ar, perde o lugar”, em que a mais pequena distracção implica uma derrota irreversível e a exclusão sem concessões. Em lugar das grandes esperanças e sonhos dourados, o progresso suscita noites de insónia, semeadas de pesadelos, em que nos vemos ficar para trás, perdemos o comboio ou nos atiramos da janela de um automóvel que, entretanto, acelera o andamento.»

        Zygmunt Bauman, «Em busca de refúgio na Caixa de Pandora» (in Confiança e Medo na Cidade)

          Recortes

          Palmatoadas

          Castigo

          Todos ouvimos, diariamente, palavras e expressões que surgem datadas, remetendo para tempos que se vão esfumando. Há dias, quase me ia zangando com um amigo que discordava de um exemplo, adiantado de forma peremptória, que me parece ilustrativo de situações deste tipo. Dizia-lhe eu que, tal como «larápio», também a palavra «gatuno» praticamente caiu em desuso, confinada – pelo menos em Portugal continental – à exígua panóplia de epítetos grosseiros com os quais se costumam brindar os árbitros de futebol. E, além disso, não se escreve ou pronuncia «gatuno», mas sim «ga-tu-no!». O meu amigo, adepto pertinaz da luta de classes e do Vocabulario Portuguez e Latino do Padre Rafael Bluteau, não conseguia conceber um mundo sem «gatunos» (e também sem «amos», outra palavra decaída).

          Em situação análoga encontra-se a expressão «erro de palmatória», utilizada por alguns autarcas de província (ainda hoje, na rádio, por um presidente de Câmara), e por Alberto João Jardim, para combaterem determinadas medidas do governo central. Recorro ao Houaiss, que identifica a palmatória, ou férula, como uma «pequena peça circular de madeira com cinco orifícios em cruz e provida de um cabo, usada como instrumento de castigo para bater na palma da mão do castigado». Uma «menina-de-cinco-olhos», pois, utilizada no passado para punir alunos indisciplinados. De acordo com a Wikipedia, «no Brasil, antigamente era costume nas festas de formatura os alunos presentearem os seus professores com palmatórias, como sinal de submissão à autoridade». Actualmente, porém, o seu uso é considerado crime na maioria dos países ocidentais, tendo sido a doce Inglaterra o último país ocidental a aboli-lo, em 1989. Por isso, integrar no discurso político a memória de um tal objecto, se é verdade que pode ser entendido como exemplo de uma «metáfora morta» ao serviço da retórica, funciona também como vestígio de um modelo de autoridade e de um tipo de castigo que sobrevivem, fora da lei, na matriz cultural de quem a invoca. É feio e fica mal, prontos.

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            Ainda me torno iberista…

            Agora que passaram seis dias sobre a renovação do Público – e mesmo sem tomar ainda em consideração a edição de domingo – creio que já posso emitir uma opinião menos superficial sobre o assunto. Reafirmo a minha primeira impressão, que não foi de simpatia. Junto, àquilo que escrevi no dia 12, um aspecto que agora me parece definitivo: o texto é quase sempre mais curto e simplificado, funcionando, muitas das vezes, como simples «ilustração» da imagem que o acompanha. E até o suplemento Ípsilon, que prometia outras possibilidades, desiludiu um pouco. Veja-se, por exemplo, o tom ligeiro, ou ligeirinho, do artigo sobre o sempre actual tema do plágio (não é a sua autora, Alexandra Lucas Coelho, que questiono, mas sim o modelo ao qual esta se submeteu).

            Não sei se, desta maneira, será possível captar os novos leitores que se procuram. Mas, disso tenho a certeza, muitos dos antigos sentir-se-ão um tanto perturbados nas suas expectativas. E não porque rejeitem a novidade. Falo por mim: procuro, no jornal da manhã, um espaço de solidão e de abertura, capaz, por entre as migalhas da torrada e o sumo de laranja, de pôr a carburar a conversa com o mundo, pela via da escrita e do pensamento, que me está na matriz. Não procuro frases fugazes (zap!), títulos vistosos (zap!), imagens em Cinemascope e Color De Luxe (zap!), pois, para isso, tenho a leitura frenética da Internet e das revistas, da qual, aliás, sinto também alguma necessidade. E tenho a televisão. E o telemóvel 3G. Sendo assim, vou continuar a ler o jornal de JMF – até porque gosto de alguns dos seus colaboradores e a alternativa, o DN, tem navegado um tanto à deriva – mas vou passar a procurar algo de mais substancial nas páginas do El País. E ainda me torno iberista…

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              Perplexidade

              reading

              Num inquérito alargado e plural que envolveu uma amostra de 2851 (perto de 15%) dos alunos da Universidade de Coimbra (*), cerca de 18,3% dos inquiridos revelou jamais ler livros. Destes, 7,3% pertencem às Artes e Letras, 10,9% ao Direito e 13% às Ciências Sociais, áreas que estão num dos extremos da escala. No outro, quase 48% de Desporto e 40% dos alunos das diversas Engenharias afirmaram jamais pegarem em tais objectos. Do conjunto, para cada rapariga que declarou não ler livros, existem três rapazes que nunca o fazem. Partindo do princípio – não provado, mas que me parece admissível – de acordo com o qual muitos dos inquiridos terão, por pudor ou incerteza, entendido que raramente lêem quando de facto nunca lêem, os valores reais poderão ser ainda mais desoladores.

              Acredito que o livro em papel se está a transformar, cada vez mais rapidamente, num suporte complementar dos processos de aquisição de informação e conhecimento. Todavia, se por um lado ainda não chegámos ao previsível ponto de não-retorno que consumará a sua redução aos espaços de conservação e arquivo, por outro, parte substancial da informação em rede é ainda parcial e bastante insuficiente. Sendo assim, podemos questionar-nos sobre onde irá buscar a informação da qual precisa para a sua formação a parte desses alunos – e, acrescente-se, 33% deles também declarou que nunca ou raramente lê jornais – que conclui os cursos com formal aproveitamento. Mas o pior de tudo é imaginar o perfil, a sensibilidade e os processos de percepção do mundo desses futuros «doutores» e «engenheiros» que desconhecem os prazeres e os safanões proporcionados pela leitura física do livro.

              (*) Inquérito integrado nas iniciativas de um projecto de investigação – da responsabilidade de Elísio Estanque e de mim próprio – do qual em breve serão divulgadas as principais conclusões. Mais alguns dados parciais aqui.

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                Colunex

                Não poderia estar mais de acordo com aquilo que Eduardo Pitta escreveu a propósito das pobres credenciais de muitos dos nossos colunistas «de referência». Também me tenho questionado sobre as razões do destaque atribuído, em respeitados jornais da nação, a pessoas que se limitam a alinhar «de carreirinha» os lugares-comuns dos directórios partidários. Pois se eu, que sou tímido, distraído e bastante caseiro, conheço dezenas de cidadãos que escrevem melhor, têm ideias mais originais, possuem uma capacidade crítica superior à daquelas baças e previsíveis pessoas, porque motivo os sociáveis e sempre bem informados directores desses jornais lhes têm continuado a garantir a intangibilidade do direito de admissão? Suponho que por inércia não será.

                  Opinião

                  Brevíssimas notas pós-11 de Fevereiro

                  # Uma vaga de civismo e de razoável tolerância dominou a campanha, se a compararmos com as batalhas apocalípticas travadas em 1998 entre cruzados e sarracenos. Não se verificaram grandes cenas de peixeirada (bom, a D. Laurinda Alves não conta, pois é uma senhora).

                  # Existem importantes correntes de opinião e de militância cívica que são absolutamente transversais na sociedade portuguesa. Os partidos políticos começam agora a entendê-lo, ainda que possuam uma tendência inata para o esquecerem depressa. Espero enganar-me.

                  # Uma parte da esquerda percebeu que uma outra, que não pensa tal e qual como ela, não é necessariamente composta por traidores do povo, adeptos da mesma Igreja metodista que frequenta George W. Bush e vis serventuários do capitalismo. Óptimo sabê-lo, camaradas e amigos!

                  # Como era de prever, a Igreja católica começa a recuar, em termos de influência. Principalmente junto dos jovens e nos ambientes urbanos. Renascerá, como sempre, mas para isso precisará ganhar uma outra cara. Aceitar a contracepção e a educação sexual nas escolas são já pequenos passos que folgo constatar.

                  # O problema do aborto não desapareceu, evidentemente. Nem o combate por vidas cada vez mais dignas e autónomas. Apenas existe agora um terreno mais limpo para os enfrentar.

                    Opinião

                    A nova cara do Público

                    ler o jornal

                    A primeira impressão é-me pouco simpática. Não pela inovação em si. Acontece apenas que existe espaço livre a mais (para o meu gosto, claro), fotografias demasiado grandes (para isso existem as revistas), um lettering que se me revela de difícil apreensão (poderá também ser este um sinal subliminar da minha oftalmologista), um logotipo que me deixa os olhos a arder (novo sinal?), alguma confusão na disposição dos colunistas (falta de hábito, admito), uma arrumação dos Classificados que os parece remeter para um mundo paralelo (esquisitice minha, provavelmente). Pelo sim, pelo não, durante uns dias, vou comprar sempre o Público (que leio desde o número um e quero muito continuar a comprar) e o Diário de Notícias (com o qual aprendi a ler, e que, talvez por isso, me oferece sempre um certo sentimento de pertença a não sei bem o quê). O futuro me fará ver como é que isto vai acabar.

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                      Da «superioridade moral» do Sim

                      Lonely

                      Sempre evitei aceitar que alguém, uma ideia, uma determinada atitude, a partilha de um conjunto de princípios ou de convicções, possam determinar uma qualquer forma de «superioridade moral». A percepção da fragilidade e da imaterialidade da condição humana, associada a uma visão optimista e céptica do mundo, têm-me ajudado a fugir a essa tentação de me considerar superior – pela forma como penso ou actuo, pelas certezas passageiras que partilho – às pessoas com as quais pouco ou nada tenho a ver. Por vezes indigno-me com elas, outras vezes ignoro-as, mas jamais considero deter um qualquer valor de superavit moral. De vez em quando, porém, caio na tentação de contradizer esta espécie de filosofia de vida.

                      É o que me tem acontecido nestes últimos dias, no contexto do confronto – mais confronto que debate – entre os adeptos do Sim e os do Não, a propósito do referendo do próximo domingo. Senti isso quando olhei, e quando ouvi, aquela plateia que, do lado dos defensores do actual estado de coisas, apareceu no último «Prós e Contras» da RTP1. Primeiro olhei para trás e vi um conjunto de pessoas triste e pobres, algo perdidas no meio de tantas luzes e de senhores e senhoras bem-falantes e bem-penteados, claramente ali plantadas por instituições religiosas ou de caridade social. Pessoas que jamais estariam, espontaneamente, num debate daquela natureza. À frente delas, os seus «patrões». Quase apenas gente «de bem» onde, por detrás daquele imutável sorriso que apenas os fanáticos são capazes de manter, cada palavra, cada proposta, soava a total hipocrisia, a vergonhosa mentira, a completa insensibilidade, por vezes a uma cegueira fácil de admitir a quem não sabe, ou não quer saber, das consequências sociais daquilo que propõe. Em relação àquela gente, a tudo aquilo que ela representa, admito que me sinto tentado a afirmar, associado a todos aqueles que se lhes opõem, alguma superioridade moral. De entre eles, apenas desculparei os que defendem o que defendem com base em critérios de fé. Mas como a fé é igualmente uma coisa que me incomoda, confesso que também em relação a ela, no gozo de uma liberdade não condicionada a quaisquer dogmas, experimento uma certa dose de sobranceria. Vamos ver se isto passa no dia 11.

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                        A barba de Harry Potter

                        Os deuses vivem uma vida muito deles, com a qual nós, comuns mortais, nada temos a ver. Importam-nos sempre as suas intervenções pontuais, coléricas ou benfazejas. Fora desses momentos, porém, nada queremos saber sobre a forma como trabalham, comem e ocupam os tempos livres. Aliás, estão tão distantes que seja o que for que possam fazer apenas podemos aceitá-lo. Mesmo quando se trata de actos da maior brutalidade ou despudor. Mas tal já não acontece com os semideuses. Poucos admitirão, sem se mostrarem contrariados, que um sátiro, protector dos pastores e dos rebanhos, se passe a comportar como um lobo. Ou que uma ninfa estabeleça a sua residência num bairro movimentado e passeie entre nós de headphones nos ouvidos (eu já vi uma, mas deveria tratar-se de uma alucinação). Semideuses, porém, são também aqueles seres extraordinários, homens ou mulheres, que pelos seus feitos, ou pelo seu talento, se destacam do comum dos mortais. E então com estes somos particularmente severos.

                        Não me surpreende, por isso, que pais dos fãs de Daniel Radcliffe, o actor que interpreta no cinema a personagem de Harry Potter, se mostrem agora publicamente escandalizados com o facto deste ter aparecido, na fotografia de promoção de uma peça de teatro na qual participa, abraçado a uma outra actriz, ambos sem roupa da cintura para cima. Daniel é um semideus, e os semideuses não podem anular os traços que os definiram como tal. Deveria, pois, na opinião dos progenitores dos pequenos cinéfilos, permanecer para sempre criança e assexuado. Há uns bons vinte anos atrás, algo de idêntico se passou, quando Julie Andrews, a noviça Maria do patético The Sound of Music (Música no Coração), mostrou os seios a todo o universo no filme S.O.B., deixando prostrados de pasmo e dor aqueles que a viam como preceptora exemplar – e irrepreensível – dos sete filhos do capitão Von Trapp. É sempre difícil aceitar que as figuras que endeusamos são, em larga medida, um produto da nossa imaginação e das nossas egoístas expectativas. E que seguirão o seu próprio caminho enquanto nós permanecemos naquele que escolhemos. Demasiado humanos para deixarmos de precisar do divino.

                          Devaneios

                          Burberry fields

                          Burberry
                          Não entendo o motivo pelo qual a óbvia intervenção militante da Opus Dei na actual campanha para o referendo sobre a despenalização da IVG tem sido omitida pela generalidade dos comentadores. Não existem provas evidentes? Bem sei que não servem de prova de tal ligação os rostos sinistros e o aspecto geral triste, conservador e vagamente aristocrático dos Médicos pela Vida – como não provam uma relação fraternal com a Burberry as cuidadíssimas toilettes de muitas das senhoras e das jovens do Não – mas porque motivo não poderemos especular sobre a nossa própria ingenuidade?

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                            Palito à bolonhesa

                            Na sequência das alterações nos cursos introduzidas pelo Processo de Bolonha, o Diário As Beiras, de Coimbra, reporta a preocupação de alguns sectores da academia com a necessidade de reestruturar o código da praxe. Perante a mudança e a inovação – para o bem e para o mal, mas essa é outra questão – há pois que refrear os ânimos e reconquistar a quietude. A confusão instala-se: «serão criados novos títulos com termos antigos que serão recuperados». Os problemas sucedem-se: os estudantes quartanistas não podem seguir no cortejo da Queima das Fitas porque vão deixar de existir estudantes quartanistas. O mapa dos festejos académicos será voltado do avesso. Mas não há que entrar em pânico, pois, de acordo com o dux veteranorum, existe «um grupo de trabalho» a congeminar uma solução. Definitiva, presumo. E esse grupo tem a que se agarrar: «Estamos a investigar o Palito Métrico, para saber como é que antigamente se designavam os estudantes em termos hierárquicos». Calculo que a investigação seja demorada, pois o Palito Métrico – destacado da mais livre Macarronea Latino-Portugueza – tem, nas edições que conheço, 14 (a 1ª, de 1746) ou 7 páginas (numa mais serôdia, de 1965), com diferenças de conteúdo entre si. Nestas coisas, porém, não há tempo que chegue, pois é preciso andar para a frente, para trás, aos triângulos e aos círculos. Como em qualquer investigação, bem entendido.

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                              «Rute» e a banalização do mal

                              Rute

                              Compreendo a posição de Eduardo Pitta relativa ao «caso Rute» mas não consigo concordar inteiramente com ela. Refiro-me, como parte dos leitores saberá, ao artifício «wellesiano» utilizado por Luís Carmelo para ampliar o impacto da divulgação de E Deus Pegou-me Pela Cintura, o seu último romance. Começo por dizer que não tenho quaisquer preconceitos a respeito da existência de «temas tabus», sejam eles considerados no campo da criação artística e literária como nos da abordagem jornalística, académica ou qualquer uma outra. Não estou, porém, a falar do romance: refiro-me sim à estratégia utilizada para o divulgar. Mas mesmo nesta direcção não acuso LC, como já foi feito, de colaborar «na degradação da imagem pública da blogosfera», e, menos ainda, de se envolver num assunto «com o qual não se brinca». Tal como respeito a opção criativa do autor, e, neste caso, de alguma forma aceito também a crítica de EP aqueles que tudo levam a sério (o que não é o mesmo que levar tudo a peito). «Não saber rir, não ser capaz de rir, foi a herança que o Velho nos deixou»: não poderia concordar mais com isto.

                              Mas devo confessar que tenho sérias dúvidas sobre se uma brincadeira envolvendo um tipo de drama que permanece muito presente no nosso quotidiano – neste caso, o rapto, levado a cabo por por um grupo de islamitas, de Rute, uma jornalista portuguesa a trabalhar no Líbano, associado ao silenciamento do assunto por parte da comunicação social e à «descoberta» do mesmo providenciada pelo universo atento dos blogues lusitanos – não contribuirá para uma certa «banalização do mal», transformando, com consequências imprevisíveis, um drama possível num episódio trivial. Um pouco como acontece com os hipocondríacos a quem ninguém dará importância no dia do AVC definitivo. Aplicaria este juízo a um exercício feito em 1945 sobre o campo de Auschwitz, como a outro feito em 1973 sobre o massacre de Wiriamu. Ou ainda a um outro, concebido em 2007, sobre técnicas terroristas com as quais somos actualmente forçados a conviver. Trata-se de uma questão pessoal de gosto e de sensibilidade. Provavelmente, apenas provavelmente, também de bom senso. De qualquer forma, este alarido já tirou a espoleta à bomba de fabrico caseiro.

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                                A toalha de linóleo

                                Parece-me inegável a forma como, tomando a generalidade dos espectadores por parvos, a RTP tem vindo a transformar as suas «reportagens» diárias sobre o referendo, supostamente imparciais, em sessões de propaganda insidiosa do não. As estratégias são diversas, sendo a mais comum a subversão da própria questão a referendar. É preciso relembrar que ninguém nos vai perguntar no dia 11 de Fevereiro se somos taxativamente contra ou inequivocamente «a favor do aborto». Mas a RTP mantém o equívoco.

                                Outra das manobras consiste em utilizar de forma parcial o poder da imagem. Como aconteceu com os bonequinhos em plástico, prefigurando um feto com 10 semanas de vida, que uma das piedosas organizações favorecedoras do negócio da Clínica dos Arcos tratou de mostrar ao país num assomo de sadismo e mau gosto. Ou com a repetição da imagem de uma daquelas cadeiras – com óbvio mau aspecto, como tem qualquer móvel ou utensílio utilizado em cirurgia – na qual, nas melhores condições possíveis, é possível interromper voluntariamente uma gravidez. Porque não mostram as mesas de cozinha cobertas com uma toalha de linóleo ou com folhas de jornal utilizadas vulgarmente em abortos clandestinos? Provavelmente, será essa a linguagem que entendem muitas das pessoas que irão «deitar o voto». Sim, custa-me dizê-lo, mas talvez a campanha pelo sim o deva fazer. Chama-se a isso combater o inimigo no seu próprio campo. Neste caso, vale a pena.

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                                  Sim – um bom exemplo

                                  «Todos os participantes neste blogue concordam com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado. E votarão “sim” no referendo de 11 de Fevereiro. Os argumentos de cada um são da sua exclusiva responsabilidade e não vinculam os restantes participantes.» Um bom exemplo, e um exemplo raro entre nós, daquilo que pode a recusa civilizada do sectarismo. Aqui por uma causa justa e absolutamente prioritária.

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