Parece-me um tanto imoral a utilização recorrente, por parte das empresas de publicidade, de simulacros de notícias – entendendo-se aqui por «simulacro» esse «real», projectado por modelos sem origem na realidade, do qual falava Baudrillard – destinados a produzirem efeitos meramente comerciais. Para além de desviarem desnecessariamente a atenção das pessoas que se interessam pelo que acontece à sua volta, produzem um efeito de banalização que tenderá a depreciar, junto de um segmento significativo do público, o próprio valor do acto de noticiar. Se fosse jornalista, ou chefe de redacção, ou administrador de um grupo económico com interesses na área da comunicação social, preocupava-me um pouco com anúncios tão inócuos, mas apenas na aparência, como este sobre um tal Joaquim qualquer coisa, o «primeiro turista espacial português», que tem vindo a passar nas televisões.
Sulfúreo
Segundo Luis Bassegio, responsável por uma organização ligada à Confederação Nacional de Bispos do Brasil, deverá ser espalhado enxofre pelas áreas pisadas por George W. Bush durante a sua actual visita ao país, de modo a «exorcizar o diabo». O hiperactivo e sagaz Hugo Chávez já havia, aliás, relacionado Bush com o capeta: na Assembleia-Geral da ONU, o caudilho venezuelano declarou há algum tempo que a tribuna na qual discursava, utilizada pouco antes pelo presidente dos Estados Unidos, cheirava a enxofre. O mineral amarelado que, de acordo com as descrições bíblicas do Inferno e os sermões exaltados de uns quantos pregadores fundamentalistas, o diabo deixa ficar por onde passa. Sabe-se como a esquerda latino-americana é, em regra, profundamente maniqueísta. Mas torna-se difícil concebê-la assim, medieval.
Um estranho rosto da paz
Nos anos sessenta, a larga maioria das pessoas que, neste país, se importava com aquilo que acontecia para lá das fronteiras marítimas e terrestres – a oposição de esquerda, mais atenta e politizada – acompanhava o conflito na Irlanda do Norte tomando, sem pestanejar, o partido dos «bons» e dos pobres, que eram necessariamente «os católicos». É, aliás, interessante verificar hoje como a maior parte da imprensa portuguesa da época, indefectivelmente católica mas avessa, acima de tudo, à guerrilha urbana do IRA, tomava o partido dos «maus». Isto é, dos ricos «protestantes». Ninguém, de um lado ou do outro, falava então do rosto simpático do Sinn Féin. Como não se falava de um comportamento civilizado dos unionistas.
De entre estes destacava-se, nas primeiras páginas, o perfil rude e colérico do reverendo Ian Paisley, hoje com 80 anos de idade e desde há décadas a voz mais conhecida dos partidários de um Ulster sob o domínio da coroa britânica. Paisley, o inflexível provocador, era, para a esquerda europeia, o arqui-vilão irlandês, a figura do demo em traje de pastor presbiterano, uma chaga na ilha de S. Patrício. Por este motivo, é ainda quase impossível, para muitas das pessoas que possuem uma «memória à esquerda» desse tempo, imaginá-lo agora como o chefe de um governo da Irlanda do Norte capaz de partilhar o poder com Gerry Adams, Martin McGuinness e os antigos «iristas» reconvertidos ao fato e à gravata. Mas parece que é isso mesmo que vai acontecer. Mudam-se os tempos e também as vontades.
Boxe e badminton
No mesmo número do mesmo jornal da manhã. Vasco Pulido Valente, na sua reconhecida vertente Caterpillar, demole a RTP (que «sufocou, censurou e suprimiu o Portugal inconformista e moderno») e a sua festa do 50º aniversário («não devia comemorar, devia chorar».) Já Laurinda Alves, na consabida versão Aspilia foleacea que se lhe aceita, afaga a estação cinquentona («foi na RTP que comecei a trabalhar») e elogia a celebração (com «muitas pessoas muito comovidas»). É em momentos assim que dou valor ao facto de não ter de viver na República Democrática Popular da Coreia.
Baudrillard
Na morte de Jean Baudrillard (1929-2007), aquilo que de melhor sobre ele se poderá dizer talvez tenha sido resumido num parágrafo do Libération:
«Baudrillard era a própria curiosidade. Não falhava nada, nenhum livro, nenhum artigo, nenhum gesto, nenhuma paisagem, uma exposição, um filme, uma expressão num rosto, uma postura, um fato, um lenço, um logotipo, uma sombra, um ecrã de televisão, um candeeiro a gás, o asfalto molhado da chuva, uma peça de teatro, um conflito político, uma guerrra. Parecia errar, vagabundear num passo preguiçoso, roçar o olhar por tudo, sempre pronto a sorrir de tudo.»
Chama-se a isto viver, parece.
A luta continua
Celebrar, lembrar, relembrar, proclamar, murmurar, calar. Em toda a parte, num dia desigual.
A Torre de Tatlin
Aço, cristal, ferro. Erguendo-se altiva, perturbante, como um manifesto, sobre a cidade de Pedro. A Torre desenhada pelo arquitecto Vladimir Tatlin – uma grande espiral circundando uma pirâmide, um cone e um cilindro rotativos e concebidos para alojar escritórios e salões – deveria ter representado, em 1919, um signo visível da modernidade soviética. E da actividade de um Comintern que, nesse tempo de socialismo primevo, se propunha ainda unificar «todos os meios disponíveis, inclusive armados, para derrubar a burguesia internacional e estabelecer uma República Soviética internacional como um passo transitório à completa abolição do Estado». Recém-instalada em Petrogrado, a futura Leninegrado, a IIIª Internacional detinha uma missão grandiosa e imprevisível que a Torre, de uma forma assombrosa, deveria projectar junto daqueles que a pudessem observar. Jamais foi construída. Como o não foi também a revolução mundial que então se anunciava aos céus e à terra. Em breve os tempos revelar-se-iam outros, menos propícios para magníficas quimeras.
Costeando Kamchatka
O velho professor de Geografia gostava imenso de gozar com a nossa ignorância fazendo-nos perguntas absurdas sobre formações geológicas, rios e linhas de costa situados para lá dos Urais. Por causa dele, fui seguindo com o dedo os mapas de um velho Atlas, procurando alguma bibliografia adequada e ganhando uma certa relação de proximidade com paragens ignotas para a maioria dos meus concidadãos. Tornei-me assim, com mais dois ou três colegas da turma, um quase-especialista em questões siberianas, com interesses que se estendiam até ao ao Círculo Polar Árctico e, descendo depois uns quantos milhares de quilómetros, à inóspita península de Kamchatka. Talvez por isso, tenho vindo a seguir, com enorme prazer, Polaris, uma expedição em linha de Eduardo Brito.
Para antes de morrer
Acaba de chegar às livrarias a tradução portuguesa de 1001 Livros para ler antes de morrer, de Peter Boxall. Esta edição, tal como outras que estão a aparecer em diversas línguas, surge corrigida – com alguns cortes e outras tantas adendas em relação à original – mas mantém a mesma intenção de propor «deveres de leitura» que poderão parecer um tanto «de almanaque» mas não deixarão de ter alguma utilidade. Neste caso, com o acréscimo de aqui se referirem as obras pelos títulos (e editoras) das suas edições em língua portuguesa, sempre que estas existam. De uma forma ligeiramente megalómana, declara-se na introdução que a lista apresentada «não procura ser um novo cânon», mas, já mais honestamente, que ela também «não pretende definir ou ser exaustiva acerca do romance» (assim mesmo, num português um tanto nebuloso que transparece aqui e ali). Trata-se, de facto, apenas de um conjunto de possibilidades a explorar. De um plano de hostilidades. Feitas as contas, das 1001 obras concluí haver lido 412. O que significa que me devo aplicar para atacar as outras 589 antes de passar para a banda de além. Ou então que devo manter na estante este volume peso-pesado e continuar a ler sem programa. Pensando bem, creio que será isso mesmo que irei fazer.
Uma verdade inconveniente
Uma das formas de censura mais perigosas e perversas é aquela que é feita com o consentimento dos próprios censurados. Não posso deixar de condenar a forma como um determinado jornal diário resolveu ver-se livre de uns quantos colaboradores regulares, deixando no ar a vaga possibilidade de, pontualmente, poder recorrer a eles. Mas incomoda-me igualmente a forma como estes, para não enfrentarem a direcção do jornal e perderem essa eventual possibilidade, ou então por um certo dever de lealdade, entenderam silenciar o facto. Compreendo-os e, para ser sincero, talvez tivesse feito a mesma coisa. Mas como neste caso não tenho obrigação alguma para com a ingratidão e a fraqueza de carácter, aqui fica o apontamento.
Nota posterior: Uma excepção a este «pacto de silêncio» foi expressa por Vítor Dias. Independentemente de me agradar ou não o registo que VD ali exprimia, não posso deixar de destacar a sua atitude.
No ano dois
Um ano. Um ano inteiro a escutar os rumores mais surdos. Cruzando a cidade que apenas dorme. Os médios ligados revelando sombras. Sobrevivendo assim, quase incólume. Quase azul.
Pós-escrito – A todos quantos deixaram comentários de felicitações, citaram o pequeno evento nos seus blogues ou enviaram mensagens pessoais de ânimo e carinho, um sentido obrigado. Tentarei não os (as) deixar ficar mal.
Estranho paraíso
Durante as décadas de 1880-1890, um grande número de judeus lituanos, empurrados pela fome, mas principalmente pelos pogroms promovidos pelas autoridades czaristas, resolveu embarcar rumo a uma prometida e distante América. A partir da experiência do seu próprio avô materno, conta Stanley Price na sua autobiografia (Somewhere To Hang My Hat, publicada em Dublin no ano de 2002) que muitos desses judeus, aportados a Waterford, na Irlanda, acreditavam, levados pelo cansaço da viagem, pela ignorância das distâncias ou pela ânsia de lucro dos seus transportadores, que tinham chegado à terra que lhes havia sido prometida. Anos depois, uma grande parte deles, fechada ainda na comunidade de origem e tendo como única língua o yiddish, continuava a acreditar que vivia na América. E por ali ficou, julgando habitar um paraíso algo estranho.
A OPA e eles
Apesar do estrépito mediático, aquela OPA, como qualquer OPA, desinteressou-me de todo. Bem sei que jamais serei próspero e invejado por não ligar muito à vida financeira do país – ou à minha própria vida financeira –, mas talvez seja um pouco mais feliz assim, sem apertos de ventre por causa do valor das acções, diarreias determinadas pela oscilação dos preços do crude, náuseas impostas pelas sequelas de um qualquer golpe de Estado ocorrido no principado de Andorra. Por isso, pouco mexeu com a minha pacata existência a recém-concluída novela (será que foi?) a propósito da oferta pública de venda das acções da Portugal-Telecom. E, em princípio, nem deveria quer saber – como o não querem saber talvez uns 99% dos portugueses – se foi o dr. Granadeiro ou o eng. Belmiro quem ganhou a contenda. Mas, sinceramente, comecei a preocupar-me um pouco quando ouvi na televisão as entrevistas balbuciantes dos accionistas que em assembleia votaram contra as pretensões da Sonae. Soou-me muito a capitalismo «de patrões», e não a atitude «de empresários». A conservadorismo de quem deseja o lucro imediato e tem medo do risco e da ousadia que, tanto quanto ouvi dizer, serão a fonte da fortuna. Mas poderá ser impressão minha. Coisa de ignaro em questões de boa e de má moeda, um tipo que se esquece sistematicamente de abrir os suplementos de Economia.
Busca Fidel
Tanto ou mais eficazes que os processos de censura directa, a manipulação e a sonegação da informação representam dois dos instrumentos centrais utilizados pelos regimes autoritários para controlarem a circulação de uma opinião livre e dos projectos capazes de os contrariarem. Impede-se deste modo o aparecimento e a afirmação de políticas ou de modelos culturais alternativos, criando-se as melhores condições para que a ordem das coisas possa ser perpetuada. Os Estados totalitários do século XX levaram ao limite essa tarefa de apagamento da diferença e de imposição do pensamento único, chegando ao ponto – tal como, de forma extrema, aconteceu no Camboja dos khmers vermelhos ou acontece ainda na Coreia do Norte – de se esforçarem por apagar do horizonte visível pela população toda a realidade não-controlada, situada para lá das fronteiras de um território insulado, vigiado, aterrorizado. Tivemos uma experiência desta natureza no Portugal de Salazar, que algumas vozes têm nos últimos tempos procurado descrever como moderada, e até, de certa forma, benigna.
Será este olhar benigno sobre o controlo das consciências que mantêm aqueles que insistem em conceber a Cuba actual como uma experiência de «democracia possível», de algum modo perfeita pois apenas exclui aqueles que dela não possuem uma perspectiva positiva, ou então que, pela via dessa mesma descrença, implicitamente servem o inimigo americano. A censura existe e os prisioneiros políticos também, mas estes seriam apenas aos «contra-revolucionários», aqueles que se atreveriam a questionar um governo de indiscutível bondade e de irrepreensível perfeição. Só que o pior, o mais duro e sufocante para quem se atreve a sentir-se desalinhado, ou, pior ainda, para as pessoas que não têm a possibilidade de conhecer o mundo para além do canal único de televisão e dos dois jornais controlados pelo Estado, é a omissão da informação. E mesmo a Internet, de acesso circunscrito e vigiado – como acontece também na «moderníssima» China – tem sido integrada neste processo de silenciamento e de controlo. Lembra-o hoje o Público, no novo suplemento Digital, ao revelar-nos o Buscador 2por3 (www.2por3.cu), o Google cubano, que apenas pesquisa nos sites patrocinados pelo Governo de Havana ou pelos media oficiais. Que mantém uma secção que se ocupa apenas com os discursos de Fidel. E que, por exemplo, tem como dez primeiros resultados, se digitarmos «Portugal», duas referências a movimentos de solidariedade portugueses pela libertação dos «cinco heróis cubanos» detidos nos EUA, três à actuação de Portugal no Mundial da Alemanha e cinco a discursos de Castro durante a sua última visita ao nosso país, ocorrida no já longínquo ano de 2001.
Pobrezinhos mas invejados
Um estudo sobre a identidade nacional, desenvolvido no âmbito da actividade do Instituto de Ciências Sociais, revela que a História e o futebol constituem os dois maiores motivos de orgulho dos portugueses. Sobre o futebol pouco me espanto e nada me admiro, dada a carência de experiências contemporâneas de relevância no confronto público com outros países mais desenvolvidos. Figo e Cristiano Ronaldo são embaixadores seguros da nossa existência, ao passo que Durão Barroso se mostra apenas um vice-cônsul expedito e os Madredeus perderam o pio. O destaque da História terá, aliás, idêntica motivação, convocando os pergaminhos, herdados do salazarismo, da nossa vivência comum de fidalgos arruinados. Pobrezinhos, sim, mas invejados pelos outros. Por mim, preferia não ser invejado e viver bem, como acontece com a maior parte dos suecos, dos islandeses e dos japoneses, que relativizam a História e não stressam com os resultados do futebol. Mas julgo que estarei mais próximo da minoria dos inquiridos.
Órfãos do Che
Não adianta olhar para o lado e passar à frente. O Che vive e, por mais morto que esteja, insiste em confrontar-nos. Não a sua alma errante, obviamente, mas a sua imagem lembrada, evocada, manuseada, maquilhada. A suprema cosmética conseguiu-a em 1997 Fidel Castro, ao decidir – como acaba de provar a reportagem «Operación Che. Historia de una mentira de Estado», publicada num número especial da revista Letras Libres por Maite Rico e Bertand de la Grange – o enorme embuste que foi a exumação do seu cadáver (sem testes de ADN) e a deposição dos supostos restos mortais, em cerimónia apoteótica, num mausoléu em Havana voltado para o planeta. Quem no-lo lembra é Mario Vargas Llosa, no artigo «Los huesos del Che», recém-saído no El País, e que sublinha de uma forma transparente, sem marcas de repulsa ou de sedução, alguns dos sentidos tomados pela manipulação contemporânea da memória de Ernesto Guevara de la Serna.
«El Che representa una hermosa ficción, un personaje del que la historia contemporánea está huérfana: el héroe, el justiciero solitario, el idealista, el revolucionario generoso y desprendido que realiza hazañas soberbias y es, al final, abatido, como los santos, por las fuerzas del mal. No importa que los historiadores serios muestren, en trabajos exhaustivos, que el Che Guevara real, de carne y hueso, estaba muy lejos de ser ese dechado de virtudes milicianas y éticas. Que fue valiente, sí, pero también sanguinario, capaz de fusilar a decenas de personas sin el menor escrúpulo, y que, desde el punto de vista militar, sus fracasos y errores fueron bastante más numerosos que sus éxitos. Es verdad que era consecuente con sus ideas, sobrio y austero, incapaz de las payasadas y dobleces de los politicastros profesionales. Pero, también, que la violencia y eso que Freud llamó ‘la pulsión de muerte’ lo atraían y guiaron su conducta tanto como su pasión por la aventura y la revolución.»
O pior que podemos fazer, nas tentativas de traçar abordagens compreensivas dos personagens que marcam a História, é desumanizá-los, transformá-los em símbolos, confundi-los com deuses ou com heróis. Pois apenas estes são perfeitos. Nas nossas cabeças, claro.
A preto e branco e às cores
Podemos detectar, do imediato pós-Abril à actualidade, uma certa tendência para desenhar o Estado Novo a preto e branco. Os principais e quase sempre involuntários responsáveis por este estado de coisas são muitos dos que lhe sobreviveram e que dele nos vão legando uma memória selectiva. Fixam-se principalmente na evocação dos momentos mais sonoros, ou mais dramáticos, ou mais difíceis, capazes de terem deixado um inequívoco legado na vida colectiva. Ou então na experiência individual, mas de acordo com esse processo de depuração do passado que ocorre sempre que cada um de nós ascende do pessoal, e único, ao domínio das generalizações encaixadas na forma de máximo denominador comum. E rejeitam tudo o resto. Alguns historiadores incorrem no mesmo lapso, ao aceitarem apenas a leitura do salazarismo construída na tradição da esquerda – da mais à menos ortodoxa – que muitas vezes procurou integrar a investigação em interpretações que a antecediam. O mesmo, aliás, se passou com a historiografia conotada com a direita, a qual avalia a democracia saída da «revolução dos cravos» como um tempo de decadência e a época que a antecedeu como essencialmente gloriosa.
No entanto, à medida que o reconhecimento daquele período aperta a sua angular, que se ensaiam sucessivos estudos de caso, que se registam histórias de vida, ambientes, práticas e gestos que não constam das publicações sobre o período centradas na vida das elites, nem dos manuais oficiais que ensinam o salazarismo às crianças – e aqui são absolutamente centrais o testemunho oral, a correspondência privada, os arquivos individuais –, pode perceber-se que algo mais acontecia. E a época ganha outra vida. E outra cor. É essa a impressão mais vivida com que fiquei da leitura do excelente Alexandre O’Neill. Uma Biografia Literária (e pessoal) escrita por Maria Antónia Oliveira. O «Sr. Nildo», comedor voraz, fumador compulsivo, frequentador de tascas, amante de muitas mulheres e enorme poeta (praticamente desemparelhado, à época), cruza ali, com os seus amigos ou com parceiros de momento, um universo de profanação do «pequeno Portugal», de provocação do «português suave». E a experiência da boémia enquanto processo de resistência. Parte significativa de uma forma de oposição não alinhada, situada fora da vida e da luta das classes populares, «pequeno-burguesa» se se quiser – mas propedêutica da queda do regime –, que tem sido quase ignorada, e cujo eco, em larga medida apoiado em textos inéditos e testemunhos pessoais, se pode encontrar neste livro.
Foot-ball
«Para poder jogá-lo, é necessário ser são de coração e pulmões, ter pernas rijas, pé leve, resistência para uma a duas horas de campo, visão rápida e presença de espírito.
Além de promover o desenvolvimento harmónico do corpo, é o foot-ball uma escola de coragem, de decisão, de consciência da própria responsabilidade, de disciplina, de solidariedade, de sacrifício até, em que a personalidade de cada um se apaga diante do interesse colectivo.
(…) Além das vantagens directas ligadas aos exercícios físicos, provocam eles resultados indirectos do maior alcance, afastando a mocidade da frequência dos cafés, das casas de tavolagem e dos bordéis. É, em regra, nos cafés, respirando um ar viciado, que os rapazes se intoxicam pelo álcool, muitas vezes com uma inconsciência que assombra.»
H. Teixeira Bastos, A Vida do Estudante de Coimbra (antiga e moderna), Coimbra, 1920