Não distingo o psicopata Josef Fritzl dos generais que sequestram o povo birmanês e ainda lhe dão a ajuda humanitária que chegou de fora, a pedido de governos preocupados com a dimensão da recente catástrofe, em caixas previamente estampadas com as suas próprias fuças. Sorte a deles não terem constado do «eixo do mal».
Gestão por Objectivos
«Lancemos mãos à obra, na plena consciência de que o plano despertará a grande força criadora que reside em cada alemão, fazendo-a florescer.» (Walter Ulbricht)
Não surpreende a notícia, amplificada pelo Expresso: o inspector-geral da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica enviou às direcções regionais do organismo que dirige um documento no qual se previam, apenas para este ano, 410 detenções, 25.420 processos por infracção, 1.230 suspensões de actividade, 1.640 processos-crime e 12.000 contra-ordenações. A prática é sobejamente conhecida desde o tempo dos absurdos planos quinquenais estalinistas e das quotas maníacas de fuzilados, deslocados, detidos e enviados para «campos de reeducação» que, ao longo de décadas, o poder soviético e os seus plagiários foram materializando. O problema é que a «gestão por objectivos» imposta de forma mecânica por governos cegamente tecnocráticos e orçamentários, aplicada agora, como se sabe, a um número crescente de organismos dependentes do Estado (incluindo-se nestes as instituições públicas de ensino, de investigação e de saúde), tende assustadoramente a aproximar-se dela. Mas não faltará quem diga que não, que não senhora, que isto apenas serve para promover a eficácia e a justiça social.
Desrazão de bancada
Podemos sempre fazer um esforço para recuar até aquele instante, localizado algures no nosso passado remoto, no qual decidimos ser aquele, e não outro, o clube de futebol do qual vamos gostar para toda a vida. Em certos casos, aquele com o qual nos envolvemos em momentos de euforia ou de depressão. Os motivos mais simples e mais comuns são os que condicionam a maioria dos adeptos: «é-se» do clube A ou B porque os nossos pais também o são, porque é esse o clube que mais adeptos tem na nossa terra ou no nosso bairro, porque – o pior dos motivos – é aquele o clube «que ganha sempre». Mas podemos sempre escolhê-lo porque gostamos da cor berrante ou discreta das camisolas, porque o associamos a um certo grupo social, porque é o clube da namorada que se deseja ou simplesmente porque é aquele que melhor se opõe aquele outro que simplesmente detestamos.
Porém, em cada tempo e circunstância as referências que nos fazem preferir uma camisola – ou a paixão por um emblema – serão sempre diferentes. Leio na crónica de hoje de Vasco Pulido Valente que, na sua infância, o Benfica estava «ligado à esquerda» (e por isso teria o miúdo Vasco simpatizado com ele), enquanto o Sporting era identificado com o regime. Populares, autenticamente populares, pelo menos na capital do país, seriam clubes como o Oriental, o Atlético ou o Belenenses. «Do Porto não se falava», e tal se aplicava, na época, mesmo a muitos dos habitantes da cidade do Porto. Para mim, as referências foram já completamente outras. Na viragem para a década de 1960, o Benfica era o clube «de toda a gente», do qual o regime se servia para mostrar um rosto benévolo do Império e para divulgar a imagem de uma já inexistente grandeza. O Belenenses era o clube do Tomás e do Tenreiro, enquanto o Atlético já mal se via, o Oriental tinha descido à Segunda Divisão e a Académica era apenas a simpática equipa «dos estudantes». O Sporting parecia-me, então, ser o clube de uma parte mais autónoma e razoavelmente esclarecida, embora um tanto snobe, da população. Apenas uma circunstância permanecia intacta: do Porto continuava a quase não se falar e tal se aplicava, na época, mesmo a muitos dos habitantes da cidade do Porto.
Claro que estes retratos possuem uma base estritamente empírica, capaz de produzir hoje resultados completamente diferentes. A verdade é que nenhuma ideia-feita pode contrariar o impulso irresistível para se gostar da cor mágica das camisolas ou para se simpatizar com o nome de um clube de futebol. Afinal, verdade lapalissiana, existe sempre qualquer coisa nos afectos que não se explica, e que pode induzir estados de alma e atitudes genuinamente irracionais. Por isso compreendo as lágrimas do Manuel do Laço quando soube que o seu Boavista iria descer de divisão por causa do apito final do «Apito Dourado». Se tivesse agora quatro ou cinco anos de idade, com o amor que tenho geralmente pelos fracos e pelos humilhados, talvez me tornasse um adepto incondicional do time do maillot xadrez. Nesta fase da vida, permaneço fiel à minha escolha irracional.
Selo de garantia
Posso garantir aos potenciais interessados que Miss Johansson canta bastante melhor do que Marilyn Monroe antes de falecer ou do que Carla Bruni antes de mudar de estado civil. Não tenho a certeza de que isto funcione como um elogio.
Sem comentários
Dia-a-dia high-tech
Y de Yoani
Longe de Madrid. E neste momento fora da rede. Por quanto tempo?
PS – Entretanto foi retomado o sinal da Generación Y. Ainda bem. Por quanto tempo?
L’Humanité: uma visita guiada
Apontamentos do Maio – 8
«Certos grupúsculos (anarquistas, maoistas, trotsquistas, compostos em regra de filhos da grande burguesia e dirigidos pelo anarquista alemão Cohn-Bendit) tomaram as carências governamentais como pretexto para se dedicarem a agitações que procuram impedir o funcionamento normal da Universidade.» (L’Humanité, órgão oficial do Partido Comunista Francês, em Maio de 1968)
Segui a sugestão feita há semanas atrás no blogue O Tempo das Cerejas e encomendei o número especial do L’Humanité sobre o Maio de 68. Previa então um exercício de reescrita da recusa, e depois de uma gradual acomodação à sequência dos acontecimentos, que os comunistas franceses adoptaram durante o movimento. A previsão não falhou. Percorrendo as 132 páginas, que transportam uma extensa série de artigos, testemunhos e imagens, pode dizer-se que o número materializa uma leitura «a contracorrente» em relação às interpretações do Maio hoje dominantes, despojando-o em larga medida da sua carga libertária, sinal da irrupção de um anti-autoritarismo militante, e retirando-lhe também as características de instante de viragem.
Desde logo, a dimensão da revolta estudantil propriamente dita, essencial para sinalizar o movimento e garantir a sua originalidade, sai claramente diminuída, embora possamos dizer que se trata de uma opção editorial (discutível mas legítima). Nota-se depois que a presença tão paralela quanto coincidente da «insubordinação operária» é sobrevalorizada (o que é sublinhado ainda no DVD que acompanha a revista). Omite-se, em absoluto, uma referência consistente à crítica dos sectores radicais ao «reformismo» do PCF. Exalta-se de um modo desproporcionado o papel do Partido e dos estudantes comunistas. Insiste-se no carácter «anarquista» de Cohn-Bendit e de outros activistas não enquadráveis pelas organizações da esquerda tradicional. Em pouco ou nada se revela uma clara percepção desse tempo de brusca mudança na irrupção dos novos movimentos sociais e na transformação das sensibilidades colectivas, que o Maio de 68 condensou.
Os redactores do L’Humanité não perceberam o que se passou, continuam sem perceber aquilo que estava então a mudar, e insistem basicamente nos mesmos erros.
O remorso da pop-star e o JA
Sir Bob Geldof é um tipo bastante irritante e que vale menos do que julga. Não fora a participação num programa sobre a fome na Etiópia que a BBC passou em 1984, e o seu pequeno sucesso como músico e actor tê-lo-ia confinado a actuar o resto da vida em bares esconsos das imediações de Quarteira ou de Shepard’s Bush. A partir da canção de caridade «Do They Know It’s Christmas?», para a qual conseguiu na altura o apoio de pessoas como Bono, The Edge, Boy George e Paul McCartney, e do mega-concerto Live Aid, de 1985, Geldof transformou-se numa figura reconhecida em toda a parte, perambulando como porta-voz de um certo remorso da pop-star, tão preocupada com os males do mundo, os famintos e os pobrezinhos quanto por levar uma vida protegida e sumptuária. Pelo meio, Bob lá foi conseguindo dinheiro, alguma influência, eventualmente um certo êxito numa tarefa que não terá deixado de ser importante para as pessoas carenciadas que dela podem ter beneficiado. Desculpando, de certa forma, o facto de ser um tipo arrogante e assumidamente conservador, de usar fatos às riscas, de dar-se a conhecer por dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça, e de ser apaparicado por quem ainda se deixa deslumbrar por qualquer rosto de projecção planetária.
Dito isto, convém reconhecer que está por provar que, tal como Geldof disse agora em Lisboa num jantar para banqueiros, diplomatas, políticos, académicos e jornalistas, Angola seja essencialmente «um país gerido por criminosos». Aceitemos que possa andar lá por perto. Ou que não, que não ande. Que possa até ser natural que os responsáveis angolanos se indignem, considerando as palavras do irlandês «um exercício puramente gratuito». Mas o que já não se pode aceitar é que o oficioso Jornal de Angola critique agora o Banco Espírito Santo pelo simples facto de ter convidado o músico, e trate este último como um criminoso e um vulgar beberrão, invocando a possibilidade de se tomarem «medidas legais apropriadas» contra ele. Deveriam saber que em democracia toda a gente tem o direito de dizer disparates. Ainda que estes possam conter algum fundo de verdade. Angola tem pela frente um longo caminho a percorrer, até remeter à irrelevância atitudes persecutórias como esta.
Uma casa portuguesa com certeza
Manuel António Pina escreve hoje assim no JN: « Os partidos de direita preocupam-se muito com a insegurança nas ruas, mas é dentro de casa e da família que se praticam diariamente em Portugal os crimes mais cobardes, sobre as mulheres, sobre as crianças, sobre os idosos, sobre, em geral, os mais fracos e vulneráveis». Nem mais. E mais.
O fundo e a questão
Apontamentos do Maio – 7
Para que estes não se sintam desprotegidos no meio de tanta informação e de um debate que os possa deixar sem argumentos, o PP espanhol, avisado e muito organizadinho, trata de explicar aos seus militantes o que foi e para que serviu o Maio do qual se fala. Terá sido muito nocivo porque «socavou o princípio da autoridade e incitou a população a depreciar os valores morais partilhados». Ora eis a questão.
Maísmos
Apontamentos do Maio – 6
Tropeço no fio que liga o computador à corrente e faço um gesto brusco, procurando equilibrar-me. Acabo por dar uma cotovelada no amontoado de papéis que atulha um dos lados da mesa de trabalho e caem-me ao chão, pesadamente, todos os suplementos, recortes, webpages impressas, livros e revistas sobre o Maio de 68 que tenho vindo a acumular. Alguns deles há anos, mas a maior parte deste material que me entretenho agora a apanhar do chão entrou cá em casa nas últimas semanas. Percebo assim, de repente, como esse pedaço do passado ao qual eles se referem regressou à minha vida, às nossas vidas, e como tem funcionado como um apelo da memória. Nada que me seja particularmente estranho nestes últimos tempos, pois tenho andado a falar destas coisas em aulas e seminários, tenho escrito um pouco sobre elas, e o mínimo que devo fazer é documentar-me sobre aquilo de que falo ou sobre o qual escrevo. Subitamente, porém, tomo consciência de que o que mais me interessa em toda esta overdose de informação e de opinião – grande parte dela com marcas geracionais diferentes mas bem nítidas – não é tanto o lembrar, o evocar, ou o descobrir «que reste-t-il» do Maio francês e para que nos serviu ele afinal. É antes, e será sobretudo, entender o modo como, enquanto representações das quais nos apropriamos, as suas múltiplas e discordantes leituras – mesmo aquelas que se esforçam por parecerem desprendidas, ou condescendentes – intersectam com estrondo a melodia do mundo. Aqui e agora, como dizia o outro.
Grandes decisões (8)
Sem chave de casa
¡Qué ganas tengo de crecer… de hacerme adulta y que me dejen salir y entrar de casa sin permiso! (Yoani Sánchez em terra firme)
Coisas que se sabem
Decorreu há poucos dias, em Aveiro, uma reunião de alunos chineses a estudarem em diversas universidades portuguesas, destinada a «esclarecê-los» sobre o carácter inalienável dos «direitos históricos» da China sobre o Tibete, e a instruí-los sobre que argumentos deveriam utilizar quando confrontados com o tema por colegas e professores. Coordenação a cargo de um controleiro gentilmente cedido pela embaixada da RPC. Coisas que se sabem quando se contacta regularmente com estudantes universitários de muitas proveniências.
Do verbo queimar
Apontamentos do Maio – 5
Como se percebe pelas referências regulares que tenho feito a posts seus na barra da direita deste blogue, simpatizo com muitas das posições de Pedro Sales, de quem sou habitualmente leitor. Mas divirjo da forma como, no Zero de Conduta, comenta uma frase escrita por José Pacheco Pereira em 1973, referindo-se a Maio e a Crise da Civilização Burguesa, de António José Saraiva, como livro «para ler atentamente e queimar». Comento-a como pretexto para falar de uma prática, utilizada por vezes no combate político, que recuso de todo.
Não conheço ao pormenor, nem penso que tal interesse para o caso, aquilo que Pacheco Pereira possa ter dito agora, perante uma opinião pública sem memória, para minimizar os estragos que aquela frase possa provocar na sua imagem. O que sei, e aquilo que me importa, é que a sua posição na época se conformava com a atitude expressa pelos grupos maoístas – área na qual, como se sabe, então militava – a respeito da perspectiva estritamente lúdica, «idealista» e «pequeno-burguesa» de Saraiva sobre o Maio de 68. Um livro no qual se depreciava a função revolucionária da classe operária e da sua «ideologia de classe», insistindo-se, algo deslumbradamente, no papel criador que o Maio e as suas circunstâncias pareciam então destinar à juventude e à imaginação. Não se esqueça, a propósito, que se viviam então os ecos da Revolução Cultural Chinesa, durante a qual o libricídio – como a destruição de estátuas, retratos ou monumentos – era utilizado para promover o eclipse do conhecimento antigo e dos vestígios da cultura burguesa que o socialismo não tinha podido erradicar.
Não me parece bem que se pegue agora num passado com 35 ou 40 anos e se faça deste bandeira para diminuir as posições de alguém. Sobretudo quando tal passado correspondeu a uma fase da vida sobre a qual assumidamente esse alguém virou uma página. Por outro lado, a esquerda está igualmente cheia de gente de quem será relativamente fácil encontrar frases, juízos e actos «comprometedores», associados a atitudes de intolerância ou mesmo de violência como esta que José Pacheco Pereira, metaforicamente ou não, alvitrou. Mas nem a discordância política nem a perseguição ad hominem justificam o recurso a argumentos que em circunstâncias normais descartamos. E que, muito justamente, condenamos nos outros.
Serenidade
A chama olímpica passou por Pyongyang, a capital da Coreia do Norte. Sem registo de incidentes, naturalmente. E sem a necessidade da presença de agentes de Pequim com bandeiras impecavelmente engomadas a fazerem de «manifestantes pró-chineses». Por ali o povo permanece sereno.
O que a gente lê
Se aquilo que António Cunha Vaz diz hoje em entrevista saída no Público com chamada de primeiríssima página, o padrão ético que transpira, as atitudes que insinua, a pesporrência que exibe, as rasteirinhas que passa, são coisas para levar a sério, chamar-lhe-ia um exercício público de abjecção. Se está a brincar connosco, chamar-lhe-ia um excelente momento de parvoíce.