Acabo de assinar uma «petição» online com a qual não concordo inteiramente. Neste como noutros casos, porém, parece-me que uma certa noção de consenso, imprescindível para o impacto público de determinada posição, nos dispensa de transformar em questão de princípio aquilo que em dado momento é acessório. E por isso assinei esta «petição» destinada a exprimir a solidariedade dos signatários para com a greve geral de protesto do próximo dia 24 de Novembro. É muito mais importante o gesto colectivo de apoio do que questionar agora o significado de petição (a «petição» pede, solicita, e o texto proposto declara, manifesta). É também muito mais importante assinar do que colocar em causa que se proponha como forma de luta «fechar os livros no dia 24». Isso eu não faço, porque a noção de trabalho associada à leitura e ao estudo só em parte tem a ver com a gestão capitalista da actividade intelectual. E ler, estudar, é também uma forma de luta pela apropriação social do quotidiano. Prioritária até, na minha opinião. Sem horários, férias, feriados ou greves de braços caídos. Sem esquecer este aspecto, se quiserem assinar – em princípio, só se forem ou tiverem sido bolseiros, investigadores, professores e estudantes – podem ir aqui.
Não sou leitor habitual do Avante! Salvo quando o meu trabalho o requer, leio apenas artigos do jornal para os quais me chamam a atenção. Isto nada tem a ver com a concordância ou a discordância em relação à linha política partidária que veiculam. Todos os dias oiço ou leio posições políticas muito diferentes, das quais me aproximo ou discordo, por vezes radicalmente, e não é por isso que me recuso a lê-las ou a dar-lhes a atenção crítica que merecem. Quanto muito, se não me interessam desligo e passo ao lado. Democracia é acima de tudo combate e diálogo, falar e saber ouvir, argumentar e respeitar, ser arrojado mas procurar consensos. É escolha. Mas é também expor razões sem debitar juízos de valor de natureza casuística sobre as pessoas das quais discordamos, é não insinuar frases retiradas do contexto mas procurar compreendê-las de forma integrada, é mostrar paixão sem destilar constantemente o ódio. A negação de tudo isto, está nos livros, é própria do pensamento único, que aduba o terreno para a vertigem totalitária, começando por desqualificar toda a diferença que a sua lógica cheia de certezas seja incapaz de integrar. E é esta a atitude que o Avante! constantemente propaga.
Mas não é apenas por isso que não leio o jornal. Nem é sequer porque não tenho tempo para tudo ler, o que, infelizmente, até é verdade. É também porque gosto de textos arrebatadores que ali é impossível encontrar, é porque me aborrece mortalmente a linguagem previsível e repetitiva que o percorre de uma ponta à outra, é porque rejeito a inaptidão que demonstra para debater com a verdadeira diferença, é porque não gosto de omissões escolhidas a dedo, é porque me incomoda o tom agressivo, crispado e repetidamente insultuoso de quase todos os articulistas. Um tique leninista que tem o seu livro sagrado no opúsculo miserável sobre A Revolução Proletária e o Renegado Kaustky, uma autêntica cartilha sobre a arte de bem caluniar.
Um bom exemplo no qual todas estas características se encontram juntas pode ser dado pelo artigo «Duas sílabas apenas», de Jorge Cordeiro, no qual se retoma a tendência relativamente nova do PCP para elogiar a China contra aqueles que criticam a forma como ali o direito à expressão do pensamento livre e ao pluralismo político é brutalmente espezinhado. Para além da lengalenga sobre o «preconceito anticomunista» – equiparado na verborreia a qualquer forma de combate pelos direitos humanos, o que é logo bastante significativo –, veja-se a forma ali tomada pelo ataque pessoal (pessoal, sublinho, pois nada tem de crítica de ideias) a Ana Gomes e a Francisco Louçã. A defesa abstracta da política nacionalista – que a par do obreirismo é um dos actuais esteios ideológicos e orgânicos do partido –, conduz à afirmação do mais completo desdém pelo «federalismo» de Ana Gomes, «para quem o valor da soberania nacional é como água em deserto». Uma vende-pátrias, pois. Ao mesmo tempo, remói-se o suposto passado de Francisco Louçã, «para quem só o soletrar do par de sílabas daquele país lhe aviva irresolúveis problemas de consciência que acompanham o seu percurso político», seguindo-se uma tentativa de desqualificação pessoal. Isto tão-só e apenasa propósito da crítica que a eurodeputada socialista e o dirigente bloquista fizeram às escolhas políticas da China e à intervenção das suas opções económicas no contexto da actual crise mundial. Repare-se bem que o articulista, um importante membro de penúltima geração da Comissão Política do Comité Central, se refere precisamente a dois responsáveis dos únicos sectores (a mítica «Esquerda do PS» e o famigerado Bloco de Esquerda) com os quais o PCP poderia, por um passe que desta forma só poderá mesmo ser de mágica, ensaiar a construção de uma alternativa política para o país. A não ser que conte fazê-lo com os «amigos» do Partido Ecologista Os Verdes, os veneráveis e semiclandestinos senhores da «Intervenção Democrática» e uns quanto distraídos que aparecem sempre no horário de expediente.
Claro que o facto de eu não gostar de ler o Avante!, e de não recomendar a outros que o leiam, não significa que aquilo que escrevo neste blogue e que refira de algum modo o PCP não seja imediatamente objecto de escrutínio e, como não poderia deixar de ser pois essa é «a escola», de pequenas campanhas difamatórias por parte de alguns dos seus leitores mais fiéis e mais nervosos. O mesmo acontecerá eventualmente com este post. A verdade é que até posso escrever 324 que falem do tempo que tem feito na ilha de Páscoa, do campeonato de críquete no Paquistão, da descoberta de um filme inédito com o Buster Keaton e dos chilreios dos passarinhos, mas se ao tricentésimo vigésimo quinto escrever a palavra PCP toca algures uma sirene de aviso e os bombeiros-incendiários de serviço descem pelo varão para se meterem no carro e saírem a alta velocidade pelas ruas mal iluminadas da blogosfera. Vida difícil a deles. Mas foram eles quem a escolheu.
Aproxima-se o dia 24 de Novembro e com ele virá a Greve Geral destinada a protestar, em primeiro lugar nos locais de trabalho mas também nas ruas, contra as pesadas medidas de austeridade que para centenas de milhares de pessoas serão também de penúria. É impossível deixar de acompanhar a CGTP e a UGT nesta jornada de combate para retirar do silêncio o protesto daqueles que de uma forma ou de outra irão certamente sofrer. E não se pense que estes serão apenas os sectores sociais que já vivem na pobreza ou para ela caminham. Muitas pessoas que até agora mantinham uma vida digna, que não precisavam de cortar a direito na alimentação, na saúde, na educação, no vestuário, na habitação, vão ter de o fazer. Pior: vão ter de o fazer na perspectiva deste não ser ainda o fim da linha e sem uma previsão de melhoria para a próxima década. Protestar é por isso importante. Não porque o protesto ou «a luta» – esse conceito abstracto que algum tentam manter invocando a utopia do governo perfeito «dos trabalhadores» que sucederá à «queda do capitalismo» – leve os actuais governantes a mudarem de posição, mas para que, quem decide colocando os outros apenas como figurantes e não como protagonistas, entenda que é preciso pensar, procurar e promover uma alternativa.
Só que existe um problema que limita sempre o alcance deste combate. É verdade que as dificuldades são reais e não melhoram, antes pelo contrário, fazendo um apelo a que se conservem sem reequilíbrios, dentro do actual sistema, todos os direitos e regalias dos trabalhadores. Não se pode voltar ao velho slogan do final da década de 1970 bradando apenas «os ricos que paguem a crise». O Estado social não vive do ar e as coisas chegaram a um ponto tal que nem todo o dinheiro dos nossos ricos dará para fazer com que a economia passe a rolar de maneira equilibrada e sem problemas. Não se pode viver do dinheiro que não há e os sacrifícios serão, sem dúvida, inevitáveis. Mas é preciso evitar que eles penalizem sobretudo o elo mais fraco. A alternativa passaria necessariamente por uma política económica e social radicalmente diferente, capaz de alterar as suas prioridades em função de um conceito não meramente gestionário do serviço público. Capaz de combinar a dinâmica internacional do mercado com uma gestão segura mas corajosa e imaginativa dos recursos. Que não se aplique a nivelar por baixo mas aproveite as capacidades humanas e materiais do país para o tornar mais competitivo e próspero. Não sendo economista ou político profissional, não posso passar, como o cidadão, desta declaração de princípios utópicos que apontam para a compatibilização do desenvolvimento com uma política social justa.
Só que nada disto se pode fazer sem vontade política e o drama, o nosso drama, consiste em ser necessária uma política alternativa, solidária, democrática e de esquerda que não tem quem a prepare, debata, demonstre e aplique. Há cerca de duas semanas, num curto texto de opinião saído no Público, o politólogo André Freire queixava-se de que, em Portugal «a direita (PSD vs CDS) é capaz de cooperar; a esquerda (PS vs BE e PCP) não, nunca o foi, excepto em questões marginais de luta política», deixando implícita a necessidade desta cooperação «à esquerda». A verdade, porém, é que ela não é possível, uma vez que a linha dominante do PS apoia uma versão light das políticas neoliberais que subjugam o país e o mundo desde os anos oitenta, o PCP não sai da sua posição obreirista, mostrando-se incapaz de se comprometer com soluções democráticas de governo e limitando-se a uma posição de natureza protestativa, e o BE não tem ainda dimensão, maturidade política e apoio público para se apresentar como alternativa de poder. Diante desta situação, só resta a quem trabalha uma posição de protesto e defensiva. Preparando a resistência aos golpes ainda mais brutais que esse governo de direita que se anuncia inevitavelmente trará. A Greve Geral do dia 24 será um passo nesta direcção. Quem sabe se ela servirá para abalar consciências e lançar os fundamentos «subjectivos e objectivos» que permitam avançar gradualmente, com metas, numa outra direcção. Imaginar não custa dinheiro. Por enquanto.
Uma nota no Facebook chamou-me a atenção para um artigo de Viriato Soromenho Marques publicado no Diário de Notícias da última Terça-Feira. Este retomou ali a conhecida opinião de Thomas Hobbes acerca do papel do medo como factor capital para a instauração da ordem pública e do bom governo. De caminho, distanciou-se de uma opinião do filósofo José Gil a propósito do lugar do mesmo medo no actual alastramento, pelas ruas, moradias e locais de trabalho, de um clima de intimidação imposto pela fragmentação do social. No essencial, Soromenho Marques pretende dizer que esta situação não é um mal em si, podendo até, muito pelo contrário, funcionar como instrumento para a construção de um bem maior. Usando as suas próprias palavras: «O medo combate a desmesura, estimula a inteligência, promove o raciocínio estratégico, incentiva a disciplina, ajuda-nos a conhecer os nossos limites, e a respeitar os limites dos outros.» Sob diferentes rostos, esta posição tem fundamentado todas as formas de exercício discricionário da autoridade, justificando-as em nome de um arbítrio imposto por «o homem ser o lobo do homem» e necessitar de trela para não despedaçar o seu semelhante.
Este género de opinião deriva de uma filosofia social, de uma consideração do humano e até de uma uma concepção de vida na cidade que contém uma dimensão particularmente deprimente e perigosa. Ela implica a aceitação absoluta da desigualdade, já que o medo se apoia sempre numa relação de poder que subordina, sem remissão, o amedrontado a quem o amedronta. Supõe uma maldade intrínseca à essência do humano que bloqueia a construção de uma ideia de justiça que não seja a justiça do carcereiro. E ataca uma das bases fundamentais da democracia que é a expressão de uma opinião informada, fundamentalmente livre e não sujeita a coacções de toda a ordem. Regresso, para usar idênticas armas, às palavras de Jean-Jacques Rousseau, a velha bête noire de Hobbes no campo da filosofia política, retiradas do seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, escrito em 1754 para a Academia de Dijon:
«Eu teria escolhido aquela [República] na qual os particulares, contentando-se em dar sanção às leis e em decidir pessoalmente, com o testemunho dos chefes, os mais importantes negócios públicos, estabelecessem tribunais respeitados, distinguissem cuidadosamente os seus diversos departamentos, elegessem todos os anos os mais capazes e os mais íntegros dentre os seus concidadãos para administrar a justiça e governar o Estado, e na qual, sendo a virtude dos magistrados testemunho da sabedoria do povo, uns e outros se honrassem mutuamente. De sorte que, se jamais funestos mal entendidos viessem perturbar a concórdia pública, até tempos de cegueira e de erros fossem marcados por testemunhos de moderação, de estima recíproca e de comum respeito às leis, presságios e garantias de reconciliação sincera e perpétua.»
Eis a essência desejável da democracia, seja ela representativa ou participativa, que o artigo sinistro de Soromenho Marques revela desprezar em absoluto, ao propor uma harmonia assente não no justo consenso e na dádiva mas sim na pura coerção. Talvez este exprima uma tendência que emerge do lado mais sombrio da História e que de vez em quando sai do caixão e regressa para nos atormentar, criando a ficção de que a paz dos escravos alicerça o melhor dos mundos, uma vez que nos afasta do território tumultuoso, «decaído», onde se constrói com dor a emancipação, a liberdade e o bem-estar. Talvez este seja um sinal de perigo ao qual devamos prestar atenção.
O último número, o de Novembro, da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique, globalmente excelente como sempre – destaca-se desta vez um dossiê sobre a recusa da «ordem insustentável» na qual somos forçados a sobreviver –, contém um artigo lamentável assinado por Ignacio Ramonet. Não se trata de uma raridade na intervenção do autor, pois desde há muito que Ramonet vem, repetidamente, mesclando posições justas de crítica e de combate no campo da esquerda com profissões de fé contra ideias e experiências que perturbam o núcleo idiossincrático no qual fixou a sua concepção do que é ou não é esquerda. Ou, mais abrangentemente, do que é ou não é democrático, de acordo com a noção de democracia que o seu conceito de esquerda recolhe. Não esqueço, por exemplo, a série de conferências que proferiu (estive pelo menos em duas), de artigos e livros que escreveu (alguns deles foram editados em Portugal), dedicados, há cerca de uma década atrás, ao combate contra alguns dos inúmeros «malefícios da Internet» que depois foram instrumentais no levantamento de novas formas de sociabilidade e de determinados movimentos sociais.
Desta vez Ramonet atira-se, em «Os dois Mario Vargas Llosa», ao mais recente «escrevedor» laureado com o Nobel da Literatura. Começa por confirmar enfaticamente a sua valia como escritor, reconhecendo-o como «extraordinário na capacidade de misturar as técnicas de romance social, histórico e realista, ou mesmo do romance policial», tendo-o, aliás, mostrado «brilhantemente». Mas logo de seguida, e é esse o objectivo central do artigo, volta-se contra o que considera ser a deriva de direita do escritor. Está, naturalmente, no uso do seu mais do que legítimo direito à crítica. Aliás, partilho de algumas das suas perplexidades em relação a determinadas posições tomadas no passado, no plano político, por Vargas Llosa. Mas o jornalista vai muito para além da discordância, insinuando mesmo questões de carácter cuja invocação, para além de incorrecta, é até profundamente injusta. Ouçamo-lo: (mais…)
A visita de Hun Jintao a Portugal é como a visita de Hun Jintao a qualquer lugar do mundo. Segundo os jornais, são mais de trinta as entidades e empresas chinesas que acompanham o Presidente chinês e uma das cartas na manga e na mesa consiste na compra do BCP – não confundir, por favor, com o PCP (camaradas, sim, ma non troppo!) – pelo ICBC, o poderoso Industrial and Commercial Bank of China. Jintao vem pois, basicamente, tratar de negócios. Em algum momento, porém, dirá umas quantas palavras de circunstância sobre uma certa «fraternidade entre os povos», materializável na caritativa generosidade de Pequim para com os países-pobrezinhos da Europa. Esses que bem precisam do investimento chinês para desatascarem a carroça da estrada esburacada para a qual inadvertidamente se deixaram empurrar. E para continuarem a assegurar o seu papel de compradores.
Neste contexto, pouco importarão princípios reclamados por uns quantos extravagantes que não sabem permanecer sabiamente calados. Princípios vagos, traduzíveis em palavras como «democracia», «liberdade de expressão», «direitos humanos», «direitos dos trabalhadores» ou «sindicatos livres». Temas incómodos que apenas servem de embaraço à imposição, nos convénios laboriosamente preparados, de umas rápidas rubricas capazes de satisfazer os mercados e «estimular as respectivas economias». Ou, mais propriamente, que enriquecerão uns quantos, concedendo-lhes, ao mesmo tempo, a boa consciência de prestarem um serviço público, uma vez que «riqueza atrai riqueza». Por isso nada há a esperar para além da deferência dos partidos do poder, traduzida num silêncio cobarde perante o imperador chinês e as iniquidades em vigor no Estado «dos dois sistemas». Aquele no qual combinam harmoniosamente o capitalismo mais selvagem e a repressão «socialista» dos direitos e da voz de quem dá o corpo ao manifesto. Tudo se compra, tudo se vende no mercado chinês. Mas quem manda é o mercador, não o cliente.
No filme A Vida dos Outros, de Florian Henckel von Donnersmarck, a frase é de Bruno Hempf, o ficcionado ministro da Cultura da RDA, e destina-se a servir o elogio público de Georg Dreyman, um escritor que ele crê, apesar das suspeitas da Stasi, ser fiel ao regime: «Como disse um grande filósofo marxista cujo nome neste momento me escapa, os escritores são os engenheiros das almas.» O «esquecimento» pretendia ser irónico, uma vez que essa frase foi repetidamente atribuída a José Estaline, que aliás a teria aplicado para se referir aos intelectuais no seu conjunto. Nela, a perversão encontra-se num entendimento puramente instrumental do papel do escritor ou do artista, apenas toleráveis enquanto intelectuais se aplicados sem hesitações numa «causa do socialismo» orientada por quem se arrogava dirigi-la num sentido unívoco e historicamente irrevogável. Materializado na União Soviética de forma crescentemente inflexível a partir de Junho de 1925, quando se adoptou uma resolução «Sobre a política do Partido no domínio da literatura artística» assinada por Nikolai Bukharine, o princípio passou posteriormente a ser aplicado na generalidade dos Estados do chamado «socialismo real». Aí determinando privilégios e exclusões, o direito à voz ou a obrigação do silêncio, por vezes a linha entre a vida e a morte.
Pela terceira vez em apenas oito anos, o Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento foi para alguém que nasceu em Cuba. Não vou fazer aqui de ingénuo e dizer que a atribuição do galardão não depende de uma agenda política. Claro que depende. Mas isso não será em si um mal, sobretudo quando as razões invocadas para as escolhas não se prendem com as convicções pessoais dos premiados mas sim com a sua luta pelo direito de todos a poderem proclamá-las, sejam elas quais forem. Como anuncia o site do Prémio, este recompensa, tão-somente, «personalidades excepcionais que lutam contra a intolerância, o fanatismo e a opressão».
Em 2002 foi Oswaldo Payá Sardiñas, fundador e organizador do Projecto Varela, destinado a reunir, baseado na própria constituição cubana, as assinaturas necessárias para sugerir ao governo algumas mudanças legislativas. Em 2005 foram as Damas de Blanco, o grupo de mulheres que luta diariamente pela libertação dos seus familiares presos por motivos estritamente políticos. Agora foi a vez de Guillermo Fariñas, o activista, psicólogo e jornalista independente que se tornou um dos mais conhecidos dissidentes cubanos, quando, com apenas 23 anos, iniciou greves de fome para protestar contra os excessos do sistema monopartidário. Aquilo que impressiona nestes casos é o facto de nenhuma das figuras premiadas se constituírem como opositores declarados do regime, nenhuma delas exigir o fim do «socialismo» cubano, limitando-se a pedir que ninguém seja punido por proclamar aquilo que pensa.
Tão simples quanto isto. E, no entanto, tão difícil de aceitar por um regime violento mas inseguro, que só pode ter medo do seu próprio povo para o manter assim amordaçado. Arruinando por isso os vestígios de prestígio e de simpatia – no passado recolhidos nos mais diversos quadrantes de opinião dispersos pelo planeta, e não associados apenas, como hoje, a grupos bem identificados de indefectíveis – vindos ainda daquele tempo em que representava um sinal de esperança na construção de uma ordem mais justa, mais solidária e mais democrática. Outro tempo.
Bem pior do que o dualismo em filosofia, que apenas toca quem a ele mais ou menos racionalmente adere, é o dualismo em matéria de política, uma vez que afecta, ou pode vir a afectar, comunidades inteiras, países completos ou regiões tomadas de uma ponta até à outra. Traçar linhas rectas a meio do mapa da realidade é possível, ou pode ser útil, em situações extremas e num tempo curto – no momento da batalha, por exemplo, é muito difícil tentar convencer as partes de que o mundo é belo e não vale uma salva de morteiros –, mas jamais será, na maioria dos casos e no longo prazo, uma solução boa, justa ou inteligente.
Uma vez em Zolkiew
Clara Kramer era uma menina judia que vivia com a família na cidade polaca de Zolkiew, situada hoje no distrito ucraniano de Lviv, ou Lvov. Como milhões de polacos, ela e a família sentiram na pele o impacto do Pacto Molotov-Ribbentrop de 1939, do qual resultou, quase de imediato, a ocupação da cidade pelos soviéticos. No seu livro de memórias (*) recorda as humilhações impostas aos polacos e a rápida «sovietização» da região, logo acompanhada da prisão e da deportação daqueles considerados indesejáveis pelas novas autoridades. Desde as minorias étnicas e religiosas às pessoas com algum destaque social que não fossem declaradamente comunistas. Só que em 21 de Julho de 1942 os nazis conquistaram a cidade e desencadearam o massacre e a deportação sistemática dos milhares de judeus que tinham continuado, apesar de tudo, a habitar a cidade. Quase todos irão perecer mas a família de Clara conseguiu esconder-se num bunker que escavara à mão sob a casa do Senhor Beck, um alemão, declaradamente anti-semita, que afinal os irá proteger permitindo a sua sobrevivência. A partir do bunker seguirão o horror que se espalhou então pela cidade, lutando todos os dias para lhe escapar. Em 24 de Julho de 1944, a fuga das tropas de Hitler e a entrada na cidade dos soldados do Exército Vermelho, do qual existia antes uma tão má experiência, foi naquela situação olhada com imensa alegria e como uma libertação salvadora. Clara podia agora «olhar para as nuvens que flutuavam no céu azul, uma visão que julgara nunca mais voltar a ter». Afinal, existia um mal ainda maior, mais cruel e definitivo, do que aquele que, um dia, julgara ser o pior dos males.
Cabul now!
Podemos agora ensaiar uma comparação. A presença americana no Afeganistão contém em si um grande número de males para a esmagadora maioria da população do país. Não se trata apenas do uso regular da violência brutal sobre sectores da população ou da incompreensão das especificidades do país, traduzida, ela também, em atitudes típicas de um exército de ocupação. Trata-se igualmente do seu apoio a um regime intensamente corrupto, cujo objectivo mais claro é conservar o poder pelo poder, sem um programa de desenvolvimento real do país, desinteressado da vida real das populações, dos seus direitos mais elementares, e transigindo frequentemente com a repressão sistemática das pessoas comuns, sobretudo das mulheres. É natural, por isso, que exista descontentamento e, mais do que isso, que se desenvolva a ideia de mudança como um imperativo. Só que, neste preciso momento, a defesa pura e simples da retirada imediata das tropas americanas tem como corolário a automática tomada do poder pelos talibãs. Que já se encontram de novo, como é sabido, às portas das principais cidades. Será a opressão americana, associada ao poder discricionário, tantas vezes injusto, da Aliança do Norte, rigorosamente equivalente à tirania brutal e desapiedada do poder talibã? E será aceitável que o necessário fim da guerra tenha como moeda de troca a autoridade assassina dos papagueadores de versículos? Não é possível que para alguém com sentido da realidade e de justiça – e só por causa de um ódio visceral ao inimigo americano, ou só por causa dos direitos dos povos «a assumirem o seu próprio destino» – se torne aceitável o retorno imediato à mais profunda barbárie, a um poder instituído pela lei da chibata e da forca. Barak Obama não é o mullah Omar.
Nestes assuntos, manter uma visão estritamente dual, esquecendo que até na gestão do mal existe uma gradação, pode tornar-se uma forma de cegueira e de cumplicidade com o crime. Aliás, aplicando esta perspectiva a momentos decisivos da história contemporânea, episódios indispensáveis para a vida dos povos e o triunfo sobre a opressão teriam sido impossíveis. Como aconteceu, por exemplo, com o desembarque dos Aliados na Normandia e o bombardeamento sistemático das cidades alemãs controladas ainda pela Wehrmacht e pelos destacamentos das SS. Para não ir mais longe.
(*) Clara Kramer (2010). Clara. A menina que sobreviveu ao Holocausto. Alfragide: Asa. Trad. de Elsa T. S. Vieira. 336 págs.
Disponível online uma Petição pelo pluralismo de opinião no debate político-económico. Perante o silenciamento de opiniões divergentes e o tom monocórdico, nos órgãos de comunicação social, dos comentários a propósito do PEC III, da sua conjuntura e da sua «inevitabilidade», torna-se imperioso protestar contra uma censura praticada por omissão que apenas aceita, sem direito ao contraditório, pontos de vista distribuídos «entre os que concordam e os que concordam». Leia, assine e divulgue.
O PEC III é um pesado drama para a maioria dos portugueses. Por aquilo que tira directa ou indirectamente dos seus bolsos e das suas vidas, mas também pelas perspectivas de futuro que bloqueia. E não, não serão apenas os funcionários públicos a ver o filme a andar para trás, como podem pensar os mais distraídos: seremos quase todos nós, com pouquíssimas excepções. O pior de tudo, porém, é não se vislumbrar uma saída. Podemos dizer que não paga a crise quem a deveria pagar, que se atacou o elo mais fraco, que mais sofrerão as pessoas que não têm como fugir ao que lhes é exigido. Isso é verdade e com toda a certeza que um PS com S tinha o dever de, com audácia e imaginação, levar as coisas para um caminho mais equitativo, mais centrado nos culpados que nas vítimas. Mas quem está no poder, moldado no compromisso, não é já capaz de vislumbrar outras medidas que não as agora impostas. E a saída, para quem procure combater este plano com uma alternativa capaz, não pode ser a da «luta» pela luta, gaguejada num sonoro mantra por essa grande fatia da esquerda que sabe desmantelar e protestar mas não construir.
O seu problema é que não consegue gerar uma alternativa. Apesar de ainda precisar de crescer politicamente, o BE tem-se esforçado por denunciar e encontrar soluções, dentro do que é possível integrar no âmbito de uma intervenção essencialmente reivindicativa. Mas é necessário muito mais: é preciso romper, mudar, alterar o paradigma dominante de desenvolvimento e de gestão, e não se vê quem o possa fazer de maneira programática. O PS apenas gere medrosamente a «política do possível», o PCP continua a ser um partido meramente reivindicativo, sem um modelo atraente e mobilizador de sociedade, os «alegristas» só jogam à defesa. O drama é este: não existe uma opção forte capaz de agregar sinergias para descobrir uma saída governativa que não seja a da capitulação perante o universo da especulação financeira. É este o desgraçado, o dramático, ponto a que chegámos. «A luta» possível tem pois, necessariamente, que procurar reduzir os danos mais gravosos sobre a vida dos trabalhadores. Mas precisa acima de tudo, urgentemente, desesperadamente, de se associar a uma alternativa credível e agregadora. Um projecto que traduza uma mudança de prioridades e de políticas. «A luta» e a rua podem até ser um caminho, podem até dar um empurrão, mas jamais serão a solução. É preciso mais: pensar, falar, unir e propor para mobilizar as pessoas comuns. Uma tarefa que não pode ser para amanhã mas sim para já.
Encontro na edição em linha do Diário de Notícias um título em destaque: «Portugal vai ter de subir impostos e congelar salários». Para além da frase em si, daquilo que faz prever, do cenário negro para a maioria dos portugueses que ela desenha, incomoda o sentido impositivo da expressão «ter de». Ou talvez já não incomode tanto assim, uma vez que ela se tem banalizado. Os actos de gestão, as linhas de política, as metas que se configuram para a vida colectiva, não são consideradas escolhas, mas sim inevitabilidades. Uma opinião pública débil, tradicionalmente conformista ou indiferente – de certo modo um atavismo que carregamos, raramente interrompido –, cria as condições para que os «profissionais da eficácia» que gerem a política e a economia possam apresentar as suas propostas e os seus programas como vias de sentido único. Os sinais vêm de trás – veja-se como nas universidades o «Processo de Bolonha», assim com P maiúsculo, foi acelerado e imposto porque supostamente «tinha de» avançar rápido e não podia ser questionado, e veja-se como a generalidade dos seus responsáveis o aceitou ordeira e obedientemente – mas têm-se vindo a agravar. Muitas vezes, é preciso que se diga, com a complacência, com a desgraçada cumplicidade, dos meios de comunicação, desde o pequeno jornal regional à televisão do Estado. Proclama-se e faz-se ecoar a ideia peregrina de que tudo «tem de ser»: as coisas são como são, nada há a fazer, mudar é impossível. Manda quem pode e obedece quem deve. É o fado implacável, o destino que marca a hora. «É a vida». A intervenção da consciência crítica e a capacidade de pensar a alternativa, de relativizar as circunstâncias, de escolher com bravura a nova estrada a percorrer, ficam assim convenientemente adormecidas. Para sossego de quem mais ordena e prefere não ser contrariado, prefere que não lhe mexam nos papéis nem lhe mudem os chinelos do lugar habitual. Salva-nos apenas a consciência de que as viragens históricas são sempre feitas de impulsos e de imponderáveis. Mais cedo ou mais tarde elas formam-se e irrompem sem pedir licença. «Têm de» irromper. Não por estarem escritas nas estrelas ou obedecerem a uma narrativa que explica a sua certeza, mas porque se transformam numa necessidade. E por vezes nascem na rua, de maneira nómada e imprevisível.
De cada vez que os grupos que contestam a existência legal das touradas dão sinal de si, os seus opositores, de peito feito e jaqueta assertoada, ou unhas afiadas e mantilha a condizer, entram a matar. Está-lhes na índole e por isso se compreende o tique. Aquilo que já não se aceita é que a comunicação social que lhes dá eco não interpele essa evidência: contra um sector de opinião que não gosta de braveza e se limita a emitir um juízo, procurando apoios para os seus pontos de vista, saem para a rua aos berros, farpas na mão, acusando os outros, os anti-taurinos, de «talibãs», de «fundamentalistas», talvez mesmo de bolcheviques encapotados (que são de longe os piores, como todo o mundo sabe). E ameaçando, velada ou explicitamente, irem-lhes às ventas se a ocasião se proporcionar. Um caso óbvio de não ver o argueiro em olho próprio.
O último acto desta comédia foi da iniciativa do guionista e autarca ribatejano F. Moita Flores, que nos promete, contra a petição legislativa que vai propor à Assembleia da República medidas contra as corridas, e ao estilo a minha é maior do que a tua, «reunir 100.000 assinaturas em defesa da tourada». Na sua argumentação «progressista» – pois considera a tourada um factor castiço de «progresso» económico, societário, cultural e até gastronómico – refere a dado momento que os militantes anti-tourada, que tanto o estorvam e tanto o enervam, «fazem abaixo-assinados, procurando destruir sem compreender, protestar quando a verdadeira essência do seu protesto são as suas próprias consciências». Acaba no entanto por pôr o dedo na própria ferida, carregando até doer. De facto, trata-se aqui principalmente de uma questão de consciência. O resto, da tortura bárbara de animais à civilidade marialva, são efeitos desta, não causas.
Como aconteceu em outras 110 cidades do mundo inteiro – para ser mais exacto, em 111 cidades daquela parte do mundo na qual as pessoas comuns se podem auto-organizar e expressar publicamente os seus protestos, alegrias e opiniões – decorreu ontem em Lisboa a manifestação contra a morte por lapidação de Sakineh Ashtiani e a pena capital praticada no Irão por crimes de natureza moral e religiosa. O número de participantes presentes varia segundo as diferentes fontes, mas pessoas em quem confio coincidem ao apontar para cerca de meio milhar de pessoas. Não é um mau número para uma tarde tórrida de um sábado de Agosto. Sabendo-se além disso que as lutas pelos direitos humanos – especialmente os dos outros – raramente são muito participadas, independentemente da latitude na qual se travam. No entanto, no caso do protesto de Lisboa, é possível detectar algumas forças que por omissão ou esforço de contra-propaganda concorreram para que a mobilização não fosse um pouco maior. São particularmente visíveis na Internet, sobretudo nos blogues nacionais e no Facebook, não sendo despropositado o termo de comparação uma vez que foi aqui que a iniciativa arrancou e foi por estas duas vias que indignação das pessoas foi mobilizada.
Detectam-se razões que têm a sua origem no sectarismo mais ortorrômbico («ah, mas foram fulana e beltrano que são do partido xiz a organizar aquilo!»), numa confusão desajustada das prioridades («há lutas bem mais importantes, camaradas»), numa incurável cegueira política («trata-se de uma intromissão na autonomia de um Estado soberano») ou no desvairamento mais completo e a precisar de tratamento urgente («foram a CIA e a Mossad que financiaram e organizaram esta miserável campanha»). Para além, claro, do silêncio dos partidos políticos, para quem o conceito de solidariedade para com a injustiça, de denúncia da perseguição política e de defesa dos direitos humanos dependem dos programas e não das pessoas. De sublinhar, a este respeito, a ausência completa de uma palavra ou de um gesto de apoio, ainda que informal ou a título individual, por parte de responsáveis do PCP. Ou o «esquecimento» público do governo português perante este caso. São factos bem evidentes, que importa anotar para sabermos com quem podemos contar sempre quando se trata de situações que têm a ver com a defesa de vidas humanas sob pressão ou em risco imediato. Nesta situação concreta com a vida de uma mulher em vias de ser punida, – e em primeiro lugar justamente por ser mulher –, da forma mais bárbara e atroz que é possível conceber-se. Pode lá haver combate mais justo, valor mais importante, «opção táctica» mais legítima?
Adenda a 31/8: Entretanto o PS (não o governo da nação com voz perante as nações) lançou um apelo ao governo do Irão, e um bloguista militante e vigilante do PCP (não um seu actual responsável) chamou a atenção para este caso e recorda-o dramaticamente urbi et orbi. Fazem bem, uns e outro. Não fazem, organização e pessoa, senão o seu dever.
Não começou ontem o hábito de usar o qualificativo de «pseudo-intelectual» como maneira de desconsiderar alguém. Mas o costume vulgarizou-se nos últimos tempos, associado à depreciação pública do próprio conceito de intelectual. Numa sociedade na qual o nível de escolarização média e superior cresceu consideravelmente, mas onde o saber técnico é continuamente privilegiado em relação à cultura de base humanística, detecta-se um conflito entre aquilo que resta do antigo prestígio dos intelectuais – combatentes com voz por um saber engagé – e a atitude de um grande número de pessoas que ainda recolhe um eco desse prestígio mas é incapaz de o compreender. Por este motivo, tem alastrado um enorme equívoco capaz de levar a que alguém que ainda transporte consigo algumas das marcas desse antigo intelectual se transforme facilmente num «pseudo-intelectual», num ser caprichoso, especialista em pomposas futilidades. Ou seja, por definição, quem esgrime publicamente por ideias, quem cria e se esforça por fazer ecoar aquilo que criou, passou a ser para muitas pessoas de cultura mediana e standard um «falso intelectual». Com manias de sê-lo sem a percepção de que o será apenas para si e para uns quantos próximos. Se tanto.
Sem entrar no debate, já com décadas, sobre o hipotético fim dos intelectuais ou a indesmentível reformulação do seu lugar social, interessa aqui rememorar algumas banalidades fundadoras da sua condição resvaladiça. O Dicionário Houaiss destrata a palavra reduzindo-a à condição precária do adjectivo, aplicando-a apenas àquele «que vive predominantemente do intelecto» – e se opõe, portanto, a quem viva da actividade manual – ou então ao que demonstra «gosto e interesse pronunciados pelas coisas da cultura, da literatura, das artes». Exclui pois, ou pelo menos ignora, o sentido histórico e substantivo, que contribuiu para reforçar o prestígio original do intelectual, associando-o à experiência da cidadania, atribuindo-lhe um lugar central na agitação das ideias ou na legitimação das causas, assegurando um papel fulcral na vida cultural, não como simples espaço de devaneio e divertimento mas como território para a afirmação de um dever e de uma necessidade, fundamentais para a existência e o progresso das sociedades complexas.
Deste ponto de vista, André Malraux terá sido um protótipo do intelectual em estado bruto: escritor, resistente, aventureiro, teórico da arte, iniciador das «maisons de la culture» e inventor do primeiro Ministério da Cultura. Sartre foi-o também, como modelo do intelectual empenhado, defendendo que o escritor não é neutro frente à realidade histórica e social: «O escritor empenhado sabe que palavra é acção, sabe que desvendar é mudar e que não se pode desvendar senão fazendo por mudar». Para o filósofo existencialista, e durante algum tempo proto-marxista, no contexto da sociedade capitalista será aliás impossível manter o sonho da imparcialidade diante da condição humana. Na sua opinião, «a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele». O escritor pensa, fala, escreve então assumindo essa experiência como resultado de uma necessidade, de um impulso sem o qual não pode ser verdadeiramente escritor. E o intelectual é-o como expressão de um destino socialmente partilhado, indispensável para a mudança do mundo.
O uso indiscriminado da noção de «pseudo-intelectual» advém pois do recuo desta ideia. Não tanto de uma abordagem objectiva da relação justa ou injusta de alguém com uma criação projectada no social ou com o combate público por certas ideias. Nos últimos tempos, o abuso do qualificativo – e a blogosfera é particularmente rica neste particular – tem correspondido pois, quase sempre, mais a uma desvalorização do pensamento livre e livremente comunicado do que a uma crítica, que até poderia ser justa, aplicada directamente a quem, «pseudo», «falso», exponha ideias que são apenas um simulacro de reflexão, conhecimento, ousadia e convicção.
As medidas tomadas em França por Sarkozy para repatriar um grande número de ciganos, rapidamente aclamadas e consideradas até insuficientes pelo governo italiano de direita, colocam-nos perante um problema real, desde há muito à nossa frente mas que insistimos em empurrar para um lugar invisível. Para a maioria dos gadje, os não-ciganos para os roma, estes são figuras incómodas, arrumadas sempre em último lugar numa possível ordem da inclusão social. Por muitas razões, umas com fundamento histórico, outras circunstanciais, outras ainda resultado do mero preconceito de natureza racial: são nómadas numa sociedade estruturalmente sedentária, vivem em larga medida de uma economia paralela e à margem de qualquer planificação, resistem a aceitar formas de autoridade que não a familiar, não se conformam com direitos e deveres que lhes são impostos, têm muitas vezes atitudes problemáticas em relação aos direitos das mulheres, à civilidade do quotidiano, à propriedade, à educação e ao trabalho. São diferentes e não o são apenas por razões de natureza genética. Mas essa diferença paga-se e os roma têm-na pago de forma constante e muitíssimo pesada. Perseguidos, escorraçados, encarcerados, massacrados ou simplesmente ignorados, como cães, desde que há cerca de mil anos atravessaram o grande planalto iraniano e entraram na Europa.
No entanto estimam-se actualmente em perto de dez milhões apenas nos Estados da União Europeia – 40.000 em Portugal e cerca de vinte vezes mais em Espanha – e são cidadãos de pleno direito, pois código algum estipula que essa cidadania seja cerceada por motivos de natureza racial ou condicionada pela forma como cada um ocupa o seu tempo. Nasceram aqui, em solo europeu, como aqui nasceram também os seus pais, avós, bisavós, trisavós, até uma época para «eles» e para «nós» imemorial. Por isso não podem ser tratados como intrusos aos quais se recusa um visto e que se empurram para as margens da História, do desenvolvimento e mesmo da sobrevivência. Existem graves problemas de inclusão social dos ciganos, sem dúvida, e não vamos dizer que a culpa é toda e apenas dos gadje, pois muitos ciganos insistem ainda na auto-exclusão como forma de salvaguardar uma identidade que consideram ameaçada. Ou então por mera inércia. Mas a forma de resolver esses problemas será sempre pela via da comunicação intercultural, privilegiando a iniciativa de mediadores válidos e credíveis, que procurem encontrar soluções e não apenas resolver desagradáveis incómodos. Não é, jamais será, pela via de um paternalismo emanado de uma cultura sedentária que se crê superior e modelar. E muito menos pelo caminho da «guetização» repressiva, seja ela feita no recanto de um subúrbio, em bairros isolados ou em áreas remotas de países periféricos. Falar é, neste caso, quase sempre difícil. Leva o seu tempo e dá trabalho. Mas é o único percurso possível. O outro apenas conduz ao desentendimento e à opressão.
O movimento internacional contra a lapidação até à morte imposta em muitos Estados islâmicos para «crimes» de natureza ética e religiosa envolvendo principalmente mulheres tem vindo a aumentar e a mostrar-se cada vez mais activo. A campanha em curso contra a execução da iraniana Sakineh Ashtiani, condenada «por adultério» após confissão sob tortura, integra essa vaga, dando corpo a um combate humanitário particularmente dramático e urgente. A maior parte desta mobilização é feita, como seria de esperar, em países com regimes democráticos, pois só nestes a informação pode circular com razoável liberdade e só nestes também os cidadãos se podem bater por causas como esta sem se verem igualmente perseguidos. A movimentação tem agregado sempre pessoas de diferentes partidos, distintas convicções, cidadãos e cidadãs com ou sem bilhete de identidade política, com ou sem religião. Pessoas unidas apenas, e não é pouco, pela repulsa e a indignação contra uma punição injusta e monstruosa.
Em Portugal tem sido assim também. De assinalar, porém, o silêncio do jornal Avante!, que apenas surpreenderá quem ande um pouco distraído. Não se trata sequer de justificar a escusa em participar, ou o desinteresse por referir minimamente a situação, com o decrépito e repisado argumento de que existem causas mais próximas e mais urgentes. Ou de avançar, uma vez mais, o triste raciocínio de acordo com o qual erguer a voz em situações deste género só beneficia os mais inconfessáveis interesses americanos ou a vil propaganda sionista. Trata-se de ocultar, de evaporar, de riscar da agenda política uma causa como esta, mostrando um frouxo sentido de justiça e de solidariedade, espartilhado pelo sectarismo e pelo preconceito. Na prática – quem cala, consente –, enunciando antes um pacto com a injustiça. Nada que espante um grande número de cidadãos com memória das «causas selectivas» apropriadas ou ignoradas pelo PCP ao sabor da sua agenda imediata e da sua astigmática visão de um mundo mais justo e igualitário. Mas convém ir anotando estas situações.
Islão. Passado, presente e futuro, de Hans Küng, é um livro magnífico. Mas deixa no leitor uma certa sensação de ambivalência. O teólogo mal querido da Cúria Romana fala da forma como, no mundo ocidental, após o fim da Guerra Fria se procurou por vezes trocar o comunismo pelo islamismo como representação do mal. Neste âmbito, o desenvolvimento de processos de compreensão do Islão e de laços de entendimento deste com o cristianismo e com o judaísmo parece-lhe imprescindível para evitar um anunciado «choque de civilizações». Produz por isso uma síntese de dimensões históricas e sistemáticas que oferece uma perspectiva ampla e multidimensional do Islão, estimulando uma resposta perante o rastilho de incompreensão e violência que tem vindo a ser ateado. Fá-lo com sabedoria, em nome de um efectivo diálogo inter-religioso que defende desde há meio século. O seu esforço de aproximação acaba, no entanto, por cair numa armadilha, ao alimentar a quimera, comum entre muitos ocidentais, que se traduz em ver nos «intelectuais moderados» do Islão a chave para um compromisso. Na realidade, testemunhos constantes têm revelado a enorme debilidade do lugar desse tipo de pessoas no interior do universo islâmico.
Um excelente contributo para o esclarecimento deste enredo é-nos oferecido no número de Agosto da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique. O artigo «Os intelectuais árabes, entre Estados e fundamentalismo», da autoria de Hicham Ben Abdallah El Alaoui, incorpora um notável rastreio da situação e das expectativas de muitos dos intelectuais árabes na sua relação com o mundo actual e com a procura de um futuro mais justo e mais democrático para os Estados autoritários que têm o Islão como religião oficial. Ben Abdallah anota um conjunto de circunstâncias e de perspectivas para as quais vale a pena olhar.