Só pode dizer que não sente a liberdade quem jamais viveu sem ela. Ou quem não sabe dos lugares do mundo e dos tempos sombrios em que ela foi – em alguns deles continua sendo, convém lembrar – calcada como um bem supérfluo, do qual se pode prescindir em nome de valores supostamente maiores: uma ideologia ou uma religião, uma pátria, o desenvolvimento material, a igualdade formal, o bem-estar pessoal ou coletivo. «A paz, o pão, habitação, saúde, educação», cantados no refrão do Sérgio Godinho, não bastam. De nada servem sem liberdade para os viver e, se necessário, para contestar também o modo como são geridos. Ou para pensar e fazer, até ao limite do possível, o que se escolher pensar e fazer.
Intervenho publicamente no campo da opinião desde há muito, com uns quantos textos ainda objeto de cortes sérios ou liminarmente proibidos por uma censura nada compreensiva, e por isso também há muitos anos aprendi que é de todo impossível controlar a forma irregular como, quem saia do seu recanto pessoal e decida escrever para os outros, pode ver lidas e interpretadas as palavras que utiliza. Não me refiro a meras opiniões – essas, sempre legítimas, quanto mais plurais e propagadas, tanto melhor – mas sim, insisto, às leituras e interpretações. Em muitos casos, trata-se de frases retiradas do contexto, ou mesmo deturpadas, que proclamam termos dito aquilo que jamais dissemos. Ainda pior, palavras abusivas que bastantes vezes colocam na nossa boca justamente o contrário do que pretendemos dizer. Ou então que resultam de uma leitura apenas parcial do que foi escrito. É um risco que corre quem escreve, mesmo quando se esforça na clareza, vinculado ao velho princípio segundo o qual quem anda à chuva acaba molhado. Não sendo por isso, todavia, que no inverno se tranca em casa. (mais…)
Em entrevista concedida ao Le Monde a propósito das eleições francesas, Jürgen Habermas considerou que a esquerda «deve deixar de ser um espaço para o ressentimento», sendo essa viragem que poderá torná-la «política e humanamente maioritária.» A palavra «ressentimento» toma aqui o seu sentido mais amplo, incorporando pesar, ofensa ou infortúnio. Tal ideia pode ligar-se a uma outra, proposta por Enzo Traverso a propósito daquilo a que chama «melancolia de esquerda». Esta traduziria uma imersão em projeções utópicas vinculadas ao passado, usando-as como alimento da dose de esperança de que precisa para continuar a viver.
Tanto o filósofo alemão como o historiador italiano são homens da esquerda e ambos abordam a dificuldade que esta tantas vezes sente em arquitetar futuros credíveis. Sobretudo futuros imediatos, que mobilizem para a ação e permitam sustentar projetos que não se frustrem logo no primeiro embate com a realidade, como aconteceu recentemente na Grécia com o Syriza. Na paisagem política portuguesa essa dificuldade pode associar-se à atitude geral dos dois partidos parlamentares que, sendo pedra essencial no atual equilíbrio de poder, mas não estando representados no governo, experimentam alguma dificuldade em articular este papel com a sua identidade política, com aquilo que deles espera o seu eleitorado mais fiel e com aquele que é o seu natural desejo de ampliar a influência política. (mais…)
Voltam a assolar a Europa os demónios do nacionalismo, que instigaram as principais ditaduras, as carnificinas das duas guerras mundiais e as grandes deportações do século XX. Pareciam condenados a um gradual desaparecimento com a política de colaboração entre os Estados que no território europeu foi gradualmente construída a partir dos meados dos anos cinquenta, mas começaram há algum tempo a sair do estado de hibernação em que se haviam mantido nos anos da Guerra Fria e passeiam-se de novo pela realidade.
Primeiro surgiram, logo após 1989, nos territórios saídos das experiências frustrantes do «socialismo real». Depois emergiram mais a ocidente, alimentando-se da crise económica, do desemprego, do afluxo de imigrantes e refugiados, e depois do terrorismo. Sempre em associação com a expansão de um padrão peculiar de populismo. De facto, a mitificação do ideal de «povo», identificado no caso com o destino histórico da «nação», sempre foi o ovo da serpente do nacionalismo e da direita mais extrema. Aí estão eles, pois, com os seus programas agressivos e o seu cortejo de ameaças e de apelos à exclusão de quem se encontre do lado que consideram errado, o que ainda há uma vintena de anos se supunha já só uma memória. Servem-se da «raça», da cor da pele, da origem, da língua, da religião, como rígida linha de fronteira. (mais…)
Muito se escreveu já sobre a frase do holandês que é presidente do Eurogrupo, pronunciada há dias, quando em entrevista concedida ao Frankfurter Allgemeine Zeitung recorreu a uma inaceitável analogia para se referir ao que julga ser a conduta dos países europeus do Sul: «Não posso gastar o meu dinheiro todo em vinho e mulheres e de seguida pedir a sua ajuda.» Faço um esforço para relevar aqui o caráter xenófobo e sexista destas palavras, centrando-me num outro aspeto, que transforma o episódio em algo bastante mais grave do que o seria uma frase infeliz, mas fortuita. Aliás, Jeroen Dijsselbloem, constrangido pelo escândalo a pedir desculpa, justificou-se com aquilo a que chamou a sua «habitual frontalidade», o que confirma ter dito algo que pensa. (mais…)
Tbilisi, Georgia. Fot. David Mdzinarishvili/ Reuters
Um dos inimigos da democracia é o kitsch. O conceito designa a categoria de objetos ou práticas vulgares, de mau gosto, sem substância para além da sua forma híbrida, que reproduz sem critério referências de uma cultura mais sólida. Para Umberto Eco, é um «meio de afirmação cultural fácil, adotado por um público que se ilude, julgando consumir uma representação original do mundo quando, na verdade, goza apenas de uma imitação secundária da força primária das imagens». Encontra-se associado ao consumo de massas, pois é neste domínio que a propaganda e a manipulação da informação mais facilmente se impõem, reduzindo as possibilidades de escolha do cidadão comum. (mais…)
Na década de 1980 costumava passar três ou quatro aulas em cada ano a estudar com os alunos o pensamento político de Nicolau Maquiavel. Parte do meu esforço consistia em contradizer o sentido então vulgarmente atribuído ao adjetivo «maquiavélico» – nessa época ele ainda era de uso corrente –, demonstrando que não fazia justiça aos ideais mais sinceros e fundamentados do diplomata florentino. Na verdade, como modelo do regime perfeito, Maquiavel apontava o exemplo «democrático» da República Romana, e não o poder tirânico centrado na figura do Príncipe, sugerido na obra homónima, escrita em 1513 num contexto particular. No entanto, foi a justificação do segundo aquela que prevaleceu como seu principal legado. (mais…)
Completei ontem, 6 de Janeiro, 35 anos como professor da Universidade de Coimbra. Como é natural, quando comecei sabia menos que hoje, era mais rígido na abordagem dos programas e inexperiente no relacionamento com os alunos. No entanto, considero que a maioria das aulas desses anos iniciais foram mais «aulas universitárias» que algumas das atuais. Pelo menos como sempre entendi que as aulas universitárias devem ser: espaços de abertura ao conhecimento avançado, à troca de ideias e à cultura crítica, e lugares de preparação para a vida pessoal e profissional. Os motivos dessa involuntária degradação, manifesta ao longo da última década, são vários e complexos. Limito-me a seis.
Em primeiro lugar, as consequências do «processo de Bolonha», que às vantagens juntou escolhas a meu ver negativas, como a redução do tempo letivo e a transferência do foco pedagógico dos conteúdos para as competências. Ou, como disse há dias Richard Zimler, a passagem da educação para o treino. Em segundo lugar, o alargamento exponencial das tarefas administrativas atribuídas aos professores, reduzindo em muito o seu tempo e a energia para se dedicarem às suas aulas, aos alunos e à investigação. Em terceiro, a afirmação de um ambiente cultural e de um pensamento dominante favorecedores de «saberes práticos», associados ao mercado e ao lucro, e menos ao conhecimento como fator de enriquecimento pessoal. Em quarto, a substituição do paradigma da cultura vinculada à leitura imersiva, pausada e refletida, por um outro, essencialmente visual, efémero e processado em zapping. (mais…)
«A ascensão da nova ignorância», a crónica de José Pacheco Pereira saída hoje no Público é – como nem sempre, mas quase sempre acontece – uma crónica que merece a pena ler. É sobre a ignorância que nos cerca, oprime e condiciona. Sobre uma nova forma de saber e de dar a saber que privilegia o simples (quando não o simplicíssimo ou o simplório), o efémero, o imediato, o saber condensado e assumidamente soft. É sobre ela que se instala a mentira e a manipulação: para o ignorante, tudo é novo e possível. E, como não possui referências para deter e aplicar um aparato crítico, tudo é verdadeiro, aceitável. Se não é verdade, bem poderá sê-lo, diz o novo ignorante, que nem mesmo sabe que o é. De facto, é este o princípio motor da «era da pós-verdade». (mais…)
Passada a fase de relativa acalmia que se seguiu à queda do Muro de Berlim e à derrocada das experiências do «socialismo realmente existente», quando o equilíbrio internacional assente num mundo bipolar pareceu dar lugar a uma ordem de sentido único, é hoje percetível que estamos de regresso a um clima de Guerra Fria. Este não repete o anterior, mas replica alguns dos seus mecanismos caraterísticos. Destaco três: a divisão entre duas áreas de influência política, polarizadas nas potências com maior capacidade político-militar; o papel da propaganda e da contrapropaganda neste processo de separação, em particular nos conflitos que envolve; e a presença de séquitos de sectários que propagam os pontos de vista de cada um dos lados, servindo os seus interesses estratégicos.
É bem visível nova divisão do mundo em áreas de influência. A presença global dos Estados Unidos e da Rússia, da sua ativa diplomacia e da sua elevada capacidade de intervenção, é claramente percetível, não sendo modulada por forças de natureza democrática com capacidade para erguer áreas libertas da sua interferência. A União Europeia tem sido, aliás, um catavento em posição de subalternidade face a Washington. A China tenta interferir em algumas políticas regionais e funciona, no atual mapa, como um fiel da balança que tenta conquistar o máximo neste papel. Já os setores irredentistas do Islão intervêm como fator desregulador, funcionando, nas áreas nucleares, como justificação para o reforço do Estado, a corrida ao armamento e o crescimento dos sistemas securitários. Entretanto a democracia definha, presa numa tenaz cujos braços são o medo e a desinformação. (mais…)
Fidel, Jean-Paul e Simone em 1960 Fotografia de A. Korda (cor de M. Athanasiadis)
Passados os dias que se seguiram ao desaparecimento mais ou menos esperado de Fidel Castro, em que foram propostas interpretações do seu papel histórico muitas vezes opostas e quase sempre pouco racionais, regresso ao assunto para olhar justamente alguns dos rostos que tomou esta irracionalidade. Para o fazer, recorro a três conceitos que, na sua relação com diferentes modos de observar a vida e a intervenção pública do líder cubano, refiro aqui de uma forma inevitavelmente concisa e parcial. A cada um associo uma diferente proposta de leitura, que vivamente recomendo a quem se interesse por estes temas.
O primeiro conceito é o de «mentira». Falei em crónica recente da «pós-verdade», sobre a qual Ralph Keyes publicou em 2004 o livro The Post-Truth Era. Para Keyes, vivemos um tempo de manipulação da verdade, no qual aquilo que se diz tem mais valor do que a realidade à qual supostamente se refere. Isto leva a uma constante deturpação ou mesmo à invenção de factos, fazendo passar a mentira por verdade. Foi em parte o que aconteceu com a identificação liminar, por estes dias repetida como um mantra, de Fidel como ditador. Se observarmos a forma autocrática como por mais de quatro décadas exerceu o poder, o regime de partido único sem eleições realmente livres, a censura e a informação controlada, a polícia política, as prisões e execuções por oposição ou dissidência, o qualificativo será adequado. Mas a direita serve-se indevidamente dele, usando-o para demonizar uma experiência histórica que, em anos de constante apoio da política externa norte-americana a ditaduras sanguinárias espalhadas por toda a América Latina, funcionou para milhões como fator de esperança e um importante exemplo emancipatório. Por isso essa «verdade», vinda, ademais, de uma área política na qual a luta pela liberdade sempre esteve longe de ser uma prioridade, se funda na ocultação, produzindo, de facto, uma mentira. (mais…)
A esquerda, e em particular aquela que não separa os princípios da solidariedade e da igualdade dos direitos, centrais na definição da sua matriz política, da defesa da liberdade individual e das diferenças de opinião como expressão indiscutível de uma democracia sem adjetivos, vive hoje tempos bem difíceis. Por todo o lado, encontramos um regresso à naturalização da desigualdade, uma revisitação dos nacionalismos mais ferozes, um retorno da xenofobia e do racismo, bem como o recuo das conquistas sociais obtidas em dois séculos de luta operária e popular e de combate por uma cidadania plena.
A direita alimenta estas tendências negativas de uma forma eficaz, servindo-se da crise económica, da instabilidade que esta traz, do desemprego, do terrorismo, do medo, da ignorância, do controlo da informação, para se apropriar do poder por via democrática e instaurar políticas autoritárias, sob a promessa de tudo resolver a partir de uma posição de força. Diante deste cenário, a esquerda, envolvida nas suas contradições e inapta para projetos capazes e mobilizadores, tem-se remetido a uma posição defensiva, de resistência, que só aqui e acolá vai passando pelos caminhos de aproximação que durante largas décadas quase sempre rejeitou. As lições sobre as consequências do divisionismo, oferecidas nos anos 30 pela ascensão do nacional-socialismo na Alemanha e pelo triunfo do golpismo franquista em Espanha, vão sendo invocadas pelos que pretendem evitar que a história se repita. (mais…)
«Pós-verdade». O termo terá sido cunhado em 1992 pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich e em 2004 Ralph Keyes usava-o já para identificar uma certa «era da desonestidade e do engano», mas foi ao longo deste ano que surgiu por todo o lado, em artigos de jornal, programas de televisão, posts das redes sociais e até debates académicos. «Vivemos um tempo de pós-verdade», diz-se a propósito da dinâmica que tem feito com que os factos objetivos – aquilo a que geralmente se chama «verdade» – tenham menor influência na formação da opinião pública e nos resultados das eleições que os apelos emotivos, as opiniões subjetivas, os boatos ou mesmo as mais despudoradas mentiras. Refere-se também a um sistema de comunicação no qual a «notícia» vale por si, pelo impacto que gera, pelo número de leitores que atrai, pelo volume de publicidade que gera, e não pelo caráter isento, completo e autêntico da informação que oferece. (mais…)
O uso da força como instrumento da autoridade política é uma das experiências mais antigas das sociedades humanas. Porém, terá sido apenas em 1879, ao rebater em livro algumas ideias do filósofo alemão Eugen Dühring – defensor de uma variante de socialismo de pendor moral, concorrente com a marxista –, que Friedrich Engels considerou a violência a «parteira da História». Por si tomada como fator decisivamente dinâmico da origem e do desenvolvimento das sociedades. Porém, o amigo e correligionário de Marx não se referia apenas à guerra, invocando também os outros processos de afirmação da ordem política impostos pela coação e pela ameaça, projetadas sobre os poderes menores e sobre os povos subjugados, ou então por estes invocados. Um processo necessário, aos seus olhos, para substituir o velho pelo novo, sempre no quadro da luta de classes. (mais…)
Longe de ser consensual ou de causar indiferença, a escolha do Nobel da Literatura deste ano tem suscitado reações extremadas, algumas um tanto irracionais. Ainda bem que assim acontece, pois não é todos os dias que tantas pessoas, incluindo-se nestas algumas que pouco ou nada se interessam realmente por literatura, e mais em particular por poesia, exercem o seu direito a pronunciar-se sobre a justeza ou a desrazão de um prémio desta natureza. Nas redes sociais, onde o repentismo e a facilidade da escrita são um microfone aberto, essas opiniões têm sido particularmente ferozes.
Em boa medida por razões geracionais, fiquei feliz com a escolha. Bob Dylan – ou melhor, os diversos Dylan de um trajeto obstinado e sinuoso – tem, sem dúvida, um lugar fulcral na banda sonora e na educação poética da minha vida. Além disso, sempre fui dos que valorizam tanto o texto quanto a música das canções nas quais reparam e de que gostam. Mas tal não significa que tenha julgado a opção do Comité Nobel necessariamente a melhor. Se me pedissem antes para escolher vinte candidatos ao prémio, talvez não colocasse lá Mr. Zimmerman, mas isso aconteceria também com a muitos dos autores premiados pela academia sueca. O que me interessa aqui é outra coisa: qual o motivo que levou a decisão a paroxismos de análise e à exaltação dos ânimos? Respondo centrado em dois aspetos. (mais…)
Nunca fui de usar a torto e a direito a palavra de baixo calão, vulgarmente conhecida por palavrão. E não é por qualquer vestígio de moralismo puritano, que não possuo de todo, ou com medo de pecar por palavras e me ver inexoravelmente destinado ao Purgatório das almas. Faço-o apenas ocasionalmente, quando me zango mesmo com alguma coisa ou quando entalo algum dedo numa porta ou gaveta. Por vezes, também, quando estando sozinho posso dar largas, sem incomodar os outros, à impaciência ou ao desespero. No entanto, como vivo neste mundo e não entre anjos, é claro que passei por períodos em que tive de abrir mão dessa ginástica de contenção, e me vi a «falar como um carroceiro» (já quase não existem carroceiros por estes lados e por isso não estarei a ofender alguém). (mais…)
Há séculos que a existência do Império Otomano, e mais tarde da Turquia, representa uma fonte de temores e de problemas para a Europa. A expansão do seu território no final da Idade Média, traduzindo um avanço do Islão e de um modelo de sociedade totalmente diverso do instalado nos reinos e Estados cristãos, assustou milhões de europeus ao longo de gerações, e convém lembrar que, não fora a derrota do Grão-Vizir Kara Mustafá em 1683, na decisiva batalha de Viena, com todas as probabilidades a história do nosso continente teria sido radicalmente outra. Foi, aliás, a continuação deste risco que determinou o empenho de D. João V quando, em 1717, enviou uma esquadra de seis poderosos navios a ajudar Veneza na batalha naval de Matapan. Mas apesar do avanço militar ter sido estancado, o recuo decisivo apenas foi consumado em 1923, com a retirada turca de quase toda a Península Balcânica e a proclamação da República, sob a liderança secular, modernizadora (leia-se «ocidentalizante») e formalmente democrática de Kemal Atatürk. (mais…)
Nas Aventuras de Tom Sawyer, Mark Twain disse ser «fácil justificar uma tradição, mas muito difícil vermo-nos livres dela», dada a força que pode tomar. O historiador Eric Hobsbawm mostrou em 1983 que as tradições são sempre invenções, mais próximas de um certo imaginário cultural que da realidade da vida. Simplificando a interpretação: aquilo que produz uma tradição e lhe confere essa força não é a reprodução das mesmas práticas, supostamente antigas, através do tempo, mas antes a tendência para repetir uma interpretação conservadora enquanto os factos e os contextos se vão transformando. Por isso, tantas vezes é anacrónica e imobilista.
Isto não significa, porém, que funcione apenas como uma prisão, forçando o presente a reproduzir o passado, e que não tenha qualquer valor dentro da vida social. Longe disso. Muitas vezes a tradição pode, no seu sentido verdadeiro – isto é, como a imaginação de uma continuidade cultural forte – cimentar as identidades das nações, dos coletivos, das regiões ou das cidades. Em Coimbra, onde a palavra «tradição» tem um peso muito grande no discurso público, em particular naquele que é veiculado por algumas instituições e por certos setores sociais, bem como pela generalidade da imprensa local, ela desempenha um papel importante, embora complexo e nem sempre consensual, na construção interna e na projeção exterior de uma imagem da cidade. (mais…)