Grandes decisões (1)



Dentro do grupo dos fumadores, faço parte de uma minoria que vai ser especialmente oprimida a partir do dia 1 de Janeiro. Acontece que gosto de fumar mas não sou viciado em tabaco: fumo apenas enquanto leio ou escrevo, no final de uma refeição mais forte ou demorada, em alturas sociais como jantares de amigos, aniversários, casamentos ou funerais. Além disso, pergunto sempre se incomodo antes de acender o cigarro, a cigarrilha ou um ocasional charuto, e jamais o faço em reuniões ou salas-de-espera, ou perto de crianças e de idosos não-fumadores. Depois não «travo o fumo», não o engulo, saboreio-o simplesmente, expelindo-o devagar e, por vezes, limpando com as mãos a nuvem que se forma. Um maço dá-me assim, à vontade, para três ou quatro dias. Na verdade fumo «culturalmente», levado, como acontece com todos os que fazem parte desta minoria, apenas pelo gosto genuíno de fumar e pela memória preservada do gesto. Parece-me assim injusto – além da nada razoável – que um hábito educado e pacífico passe a ser tomado como novo «pecado do vício solitário», execrado pelos moralistas de turno. Mas não me espantarei se estes vierem dizer-nos que provoca a cegueira, causa a impotência e conduz ao inferno.
No grande ecrã de plasma da superfície comercial, o cenário era azul, as luzes azuis, os rostos azulados pela refracção. A voz azul era a do fado pirotécnico de Dulce Pontes. Os fatos pareciam também eles azuis, embora o efeito luminoso pudesse contribuir para matizar o cinza-escuro. Enquanto os líderes europeus assinavam o Tratado Reformador da União, os liderados circulavam distraídos, alheios às imagens da refundação de uma Europa sem chama. Em tonalidades apagadas de um azul de aquário.

Em Ecce Bombo, de Nanni Moretti (de 1978, mas editado agora em DVD nacional), uma sequência tão divertida quanto comovedora funciona como metáfora, talvez simples mas esplêndida, das expectativas, certezas e desilusões que invariavelmente se encontram na perseguição da felicidade. O grupo de jovens amigos que percorre o filme conversa madrugada afora e todos decidem ir até uma praia ver o sol nascer. Horas depois, surpreendidos, reparam que afinal já é dia. Tinham-se deixado adormecer e, além disso, encontravam-se do lado errado da praia.
Tenho muito respeito pelo trajecto pessoal e pelo trabalho do teólogo dominicano e colunista Frei Bento Domingues. Ele é desde há muito, e começou a sê-lo numa época em que geralmente se pagava caro pela ousadia, uma das raras figuras da Igreja católica portuguesa que tem procurado levar o cidadão comum, crente ou laico, a pensar Deus e as religiões. A pensá-los, sublinho. E foi também um daqueles que, desde muito cedo, procurou mostrar-nos que a atitude religiosa apenas faz sentido como prática libertadora, não dogmática e eminentemente social. Principalmente quando a fé de quem a pratica se mantém numa dimensão necessariamente individual.
É por isso que tenho lido com certa mágoa algumas das suas crónicas recentes. Nas quais, de uma forma cada vez mais incisiva, procura explicar certas posições da Igreja romana e do actual papa, ou se dedica a demonstrar a fragilidade das razões daqueles que recusam Deus e a própria religião. Os que, segundo ele, «têm medo que Deus exista» e, na afirmação de um cepticismo extremo, «comeram a razão toda». Uma atitude como esta, mesmo quando envolta em belas palavras e, admito, em excelentes sentimentos, tende sempre a solicitar uma rejeição da liberdade do outro. Dessa liberdade total, sem condições, fundada numa convicção tão forte e tão legítima quanto aquela que alguns, como Frei Bento, bebem principalmente na fé.
Em entrevista ao suplemento Ípsilon, Ricardo Araújo Pereira fala dos insultos que recebe de cada vez que o assunto das suas crónicas tem a ver com religião. «Nem preciso ser acintoso, basta tocar no tema.» À limitadíssima escala de quem não é uma estrela pop, passa-se o mesmo comigo: de cada vez que abordo o tema recebo mensagens e alguns comentários com a nítida intenção de me atirarem, em corpo e alma, para o quinto dos infernos. Tratando-se de matéria de uma natureza tão intensamente espiritual, tal não deixa de ser curioso. Mas os seus autores não estão para grandes subtilezas. Eles correspondem sempre aqueles leitores «pela metade» – para quem toda a leitura tem apenas uma camada – e que olham os profetas Cristo, Maomé ou Karl Marx como intérpretes de uma crença determinada por um Bem superior, infinito e completamente inquestionável. Diante do qual a indiferença, a falta de fé, e acima de tudo a apostasia, se revelam insuportáveis.

Estive muitos meses sem passar pela Baixa da cidade. Revi-a hoje mais triste, com mais velhos ainda mas sem vendedores de castanhas, com os mesmos barbeiros e os mesmos clientes de barba e cabelo, Harry Potter e as Lições de Direito Fiscal a preencherem as montras das livrarias, chinelos de pano pendurados ao lado das vassouras e piaçabas que sobreviveram ao fim dos Armazéns Amizade, as paragens de autocarro sem passageiros à espera do 24T, cafés que insistem em vender sandes mistas, sumóis e croquetes marados, a Pastelaria Central substituída por uma loja de meias e collants sempre vazia. No ar, um rumor surdo parece antecipar a morte.

É muitas coisas a solidão. É o estado de quem se encontra ou sente desacompanhado. É o próprio isolamento. É também, anuncia secamente o Houaiss, essa «sensação ou situação de quem vive afastado do mundo ou isolado no meio de um grupo social». A solidão é tudo isto é, e é muito mais. Mas sempre uma condição que se define por um estatuto complexo e contraditório. É boa e é má, é inevitável ou impossível, é admirável ou indigna, mas raramente somos capazes de a situar no meio-termo ou de lhe sermos indiferentes. O mundo contemporâneo teme-a quando a associa ao isolamento imposto pela vida nas cidades, pelo exílio, pelo cativeiro. Mas nega-a quando considera que «todo o homem é uma ilha» e, ao mesmo tempo, o integra num imenso arquipélago. Na era da comunicação de massas e do triunfo da sociedade em rede, a solidão radical tende até a ser considerada doentia, subversiva, quase incompreensível, devendo por isso ser proscrita. Ao ponto de, nas escolas básicas, as equipagens de psicólogos perseguirem as crianças «diferentes» que, não sendo autistas, se isolam apenas porque gostam de construir o seu próprio mundo, ou, mais simplesmente, porque lhes desagrada aquele universo hipersociável e ruidoso que lhes pretendem impor.
O último número especial do Magazine Littéraire inclui um extenso dossier sobre A Solidão (La Solitude), tomada ali, de forma dúplice, como «mal de vivre ou quête de soi». Nele se abordam, em quase três dezenas de artigos desiguais mas sempre propedêuticos, instantes ou experiências dessa condição que oscila entre «a punição divina ou a fatalidade sociológica» sempre que é imposta, e «a estranha doçura», elemento da busca da felicidade e da plenitude, que pode adquirir quando é procurada. A filosofia, a religião, a arte e a literatura são os inevitáveis territórios de aproximação propostos neste conjunto de textos, através dos quais se fala da solidão do trabalho do filósofo e do escritor, da pintura de Goya, Van Gogh ou Magritte, da decisão pessoal de Aquiles, do exílio de Ovídio, da vida e das buscas dos ermitas, das reflexões de Montaigne, Pascal e Rousseau, do individualismo romântico que enaltece o solitário, de Emerson e Flaubert, de Nietzsche e Rilke, de Kierkegaard, Heidegger e Blanchot, de Peter Handke e de Paul Auster. No final, dois artigos expõem perspectivas alternativas: um aborda o «complexo de Robinson», mostrando a obra de Daniel Defoe como tentativa para enunciar definitivamente a condição social, não-solitária, do humano; o outro trata as «novas solidões» impostas agora ao ser humano comum e determinadas pela precariedade e pela mobilidade do emprego, pela brutal expansão da vida urbana, pela dissolução das solidariedades familiares, pela crescente insularização das gerações. Recomenda-se, naturalmente, que a leitura deste número do ML se faça em modo solitário.

De cada vez que me chega um repto para participar numa sequência de respostas em cadeia – e, se não me engano, n’A Terceira Noite este é já o quarto –, declaro sempre para mim mesmo que aquele será o último ao qual darei sequência. Não, não é por snobismo ou mania da diferença. Acontece apenas que a estratégia se tornou um tanto repetitiva, que são muitos os desafios do estilo, que todos eles exigem uma disponibilidade (e uma dose de vontade) por vezes ausente. Mas acabo por me contradizer sempre que chegam desafios singulares e estimulantes, vindos, além disso, de pessoas que prezo. É o caso deste, que chegou através do João Ventura e sugere o seguinte: que escolha o livro mais próximo, literalmente; que o abra na página 161; que procure e transcreva a 5ª frase completa; que tenha o cuidado de não escolher a melhor frase nem o melhor livro; e que o passe a outros cinco bloggers. Vamos então a ele. Ao repto.
Tentei seguir exactamente o prescrito, mas não o consegui à primeira. O livro mais próximo dos meus dedos, com o curioso título Como falar dos livros que não lemos?, de Pierre Bayard (ed. Verso da Kapa), e que ando a sublinhar com extremo proveito, tem apenas 158 páginas. E no seguinte, a edição do Pantagruel. Rei dos Dípsodos, da Frenesi, que me preparo para reler (garanto que não fiz batota e fui à procura dele), a referida página é toda ela ocupada por uma gravura na qual se representa «a derrota dos trezentos gigantes armados com pedras de cantaria». À terceira tentativa, porém, fui melhor sucedido. D’O Deserto dos Tártaros, do Dino Buzzati, saiu-me então qualquer coisa como: «O general era velhote e olhou o tenente Drogo com ar bondoso através do monóculo». O que me obrigou a um complexo exercício de abstracção, uma vez que sempre associei o uso do referido acessório a atitudes de autoridade ou de afectação, presumivelmente incompatíveis com a ostentação de um rosto capaz de exprimir aquela dose de brandura que habitualmente aliamos à bondade.
Segundos depois, porém, apercebi-me de que tinha acabado de receber de Buzzati uma lição sobre os atalhos da complexidade humana e a falibilidade de todas, de rigorosamente todas, as aparências. Simples e eficaz como o são sempre as melhores lições. Procurarei pois não esquecer as duas linhas desta pág. 161. E, se ainda for possível encontrar algum por aí, sorrirei para o próximo general de monóculo com o qual me venha a cruzar. Ou mesmo para a minha mal-encarada vizinha do andar de cima.
A sugestão segue para o Lutz Brückelmann (que não respondeu à última chamada pois estava noutro lugar), para as-duas-elas-que-se-entendam, para o António Godinho Gil, para o Eduardo e para o GAF.
[31-10-2007] Três dias depois chegou-me uma proposta idêntica vinda da Carla Quevedo. E entretanto outra da Lídia Aparício. Agradeço o interesse, mas a verdade é que a única circunstância em que alguma coisa me saiu melhor à segunda vez foi no exame para tirar a carta de condução de veículos motorizados ligeiros de passageiros e turismo.

Acabava de rever em DVD, muitos anos depois da primeira vez, La Chinoise, de Jean-Luc Godard. E, de repente, na pacatez da minha noite suburbana e burguesa, um monólogo que chega do passado:
«Sabemos que a revolução social não está ao virar da esquina e que as lutas a travar em cada momento são aquelas que o estado de consciência das massas permite. É através da luta pelos seus interesses imediatos e objectivos parciais que os explorados se unirão e organizarão para lutas superiores. Exige-se-nos um trabalho paciente, que não se compadece com radicalismos verbais. Porém, ao empenharmo-nos nessas lutas diárias, por reivindicações muitas vezes modestas, não perdemos de vista que a sua utilidade é incutir gradualmente nos trabalhadores a confiança nas próprias forças, o repúdio pela ordem capitalista, a consciência e determinação revolucionárias. São positivas as lutas que contribuem para pôr explorados e exploradores em confronto, não as que semeiam ilusões na colaboração de classes. Alertamos os trabalhadores contra a miragem de que uma espiral infinita de reformas transformaria gradualmente o inferno capitalista num paraíso socialista. Dizemos que conquistas verdadeiras só com lutas superiores podem ser alcançadas e que tudo depende de se criar um campo resolutamente anticapitalista.»
1. Fátima ressurge. Mas o que me preocupa no seu ressurgimento não é a intrusão, na paisagem caótica daquela incaracterística cidade de oito mil habitantes e de não sei quantos milhares de forasteiros, de mais uns quantos edifícios e de uma igreja gigantesca. É a forma acrítica como a comunicação social se extasia – tal como aconteceu com os estádios do Euro – com o seu luxo e dimensão. É a forma passiva como faz reverberar o significado dos acontecimentos de 1917 e da sua leitura pelos poderes instalados após o 28 de Maio. É o modo como a transmissão da «mensagem divina» nos é mostrada como acontecimento e não enquanto construção. A maneira como a ignorância, a superstição e o desespero surgem nas reportagens e nos ecrãs envolvidos numa atitude farisaica de benévola aceitação, de quase cumplicidade. A meu ver, também de crueldade.
2. Os templos católicos são hoje, quase sempre, museus do kitsch. Juntam à sua arquitectura original, imagens toscas, peças avulsas, decorativas, onde predominam rendas e brocados, sedas e tafetás, acessórios electrónicos obsoletos, lâmpadas fluorescentes, alcatifas carmesim, anexos atípicos mandados erguer por um qualquer pároco ou benemérito. Num certo sentido, essa deprimente profusão de objectos sem norte cumpre a sua função sacralizadora, dado o padrão de gosto e a capacidade de elaboração simbólica da maioria esmagadora dos crentes. Por isso, a nova Cruz Alta de Fátima, concebida pelo alemão Robert Shad – e que, sempre optimista, Frei Bento Domingues tanto elogia numa crónica hoje publicada – é de facto, na sua concepção ousada, moderna, um objecto espúrio. Enquanto deambulam pelo terreiro grande da Cova da Iria, dele dizem quase todos os entrevistados que «é uma decepção», «não me diz nada», «não percebo». Poderia ser de outra forma?
Ao falar do comportamento dos dois senhores agentes da PSP que entraram armados em bufos dentro da sede sindical na Covilhã, Ângelo Correia, na televisão, colocou, em forma de boutade, o dedo na ferida: «No tempo do Dr. Mário Soares como primeiro-ministro isto nunca aconteceria.» Quando a cultura da liberdade passa a ser apenas uma florzinha rubra na lapela no dia vinte e cinco do quatro, e todos os atropelos se desculpam em nome da eficácia ou da autoridade do Estado, coisas destas acontecem. E eu até nem sou soarista. Nem ele, o Dr. Ângelo.
Adenda: «O ministro da Administração Interna considera que, com base no relatório preliminar divulgado hoje pelo inspector-geral da Administração Interna sobre a visita da PSP às instalações do Sindicato dos Professores da Região Centro (SPRC) na Covilhã, segundo o qual a polícia não cometeu qualquer infracção, que ‘não há lugar à instrução de processo de inquérito ou processo disciplinar’.» [Público online]
Tudo bem, portanto. E assim fica aquela gente a saber que pode agir impunemente. Que o poder político a protege e compreende. Afinal, atemorizar cidadãos não é, só por isso, crime previsto no código penal. Como o bicho-papão, o polícia mau faz parte do nosso imaginário colectivo e é conveniente que nele permaneça.

Vale a pena seguir a interessante série «Eles adoram queimar», publicada por Francisco José Viegas n’A Origem das Espécies. A propósito do episódio da incineração de uns quantos exemplares da revista Veja por esta incluir um artigo muito crítico da personalidade e da acção de Che Guevara. A série é, no mínimo, bastante educativa.
Já depois de publicado este post chegou-me o número da Veja. O artigo em causa, do qual, aliás, em boa parte discordo – mais pela leitura parcial que propõe do que pelos factos que invoca – é um texto opinativo completamente banal, igual a milhares de outros que todos os dias nos chegam. O problema residirá na proposta de questionamento de uma certa dimensão do sagrado. E desta vez não se trata de Maomé…
A jornalista insiste com António Lobo Antunes. Trata-o quase como se tratam os velhinhos. «Comoveu-se» com a recepção que teve em Berlim? E «comoveu-se» com o Prémio Camões? Acontece que, por estes dias, comover-se – ou seja, chorar em público – passou a ser notícia. Uma patologia simpática, que se procura em certos rostos. As câmaras da televisão buscam sedentas as lágrimas nos olhos de Rui Costa, de Cristiano Ronaldo, de Nelson Évora, de Luís Filipe Menezes. Mesmo quando elas custam a sair. Sampaio foi durante algum tempo o nosso chorão de estimação e as câmaras procuravam-no: levou o lenço aos olhos? estava a fungar? a voz embargou-se-lhe? E se sim, que admirável! E que belas, que belas, as lágrimas amargas de Eusébio ou as ardentes dos jogadores da selecção de râguebi! E os duros, não se comovem? Gostamos de imaginar que sim, embora precisemos esperar para obter a prova. Câmaras prontas na direcção de Filipe Scolari, de Vasco Pulido Valente, de Manuela Ferreira Leite, de Valentim Loureiro, de Paulo Portas! E José Sócrates, chorará? Não importa se chora sozinho e com a cabeça entre as pernas, mas sim se o mostra em público. Será apanhado, um dia, e então rejubilaremos. E a Kate McCann, porque não chora baba e ranho, como Elton John quando soube da morte da Diana, que chorava todos os dias?
Neste tempo seduzido pelo divertimento ininterrupto, pelo efémero que já era, pelo sorriso fácil, rápido e fotogénico, comover-se, chorar, torna-se notícia, um luxo, que irrompe no quotidiano previsível daqueles que vendem uma imagem de felicidade. Procura-se nos famosos o instante de abandono, a morte do familiar, a carreira em queda. E fotografam-se-lhes então as lágrimas. As daqueles que as vertem todos os dias, essas nada têm de particularmente interessante. São banais, por vezes um tanto sórdidas, e não importa perder tempo com elas. As de António Lobo Antunes, que todos reconhecemos, essas sim. Queremos vê-las, ou, pelo menos, que ele nos fale um pouco delas. Mas só mesmo um pouco.
Tamara Galkina era a mulher de K., um oficial de alta patente do Exército Vermelho. Envolveu-se com Y., um dos jovens subordinados do marido, e acabou por partir com ele para outra cidade. Y. ocupava então um posto de alta patente no NKVD. Certa noite, no ano de 37, eles chegaram e arrombaram a porta. Não se preocuparam com Y., mas a ela levaram-na. K., o seu ex-marido, vira o seu nome envolvido no caso do Marechal Tukhachevsky, um dos principais alvos das grandes purgas dos anos 30, e ela foi acusada de qualquer coisa, embora jamais tenha percebido muito bem do quê. Acabou condenada a dez anos num «campo de trabalho correctivo», por um crime que o homem do qual se separara havia supostamente cometido. O tempo foi passando e Y., entretanto promovido a general, foi destacado como administrador de uma região importante do Gulag, sendo nessa condição que acabou por reencontrá-la. Y. contou então a Tamara que ele mesmo tinha forjado algumas provas contra ela, de forma a ver-se livre de qualquer suspeita, mas propôs-lhe que esquecessem o passado e voltassem a ser amantes. Ela recusou. Alguns anos depois, após a reabilitação de Tamara, acabaram porém por tornar-se amigos. Passaram então a telefonar regularmente um ao outro e, ocasionalmente, encontram-se para tomarem chá e falarem dos velhos tempos.
Parece o plot de um velho romance russo de terceira categoria, mas não é. Trata-se do resumo de um depoimento recolhido pela jornalista moscovita Irina Sherbakova no âmbito de um projecto destinado a preservar a memória dos sobreviventes do Gulag.

Quando vivemos sentimentos aparentemente incompreensíveis de atracção ou de rejeição em relação ao rosto de determinada pessoa, costumamos dizer que é «a química» a funcionar. Essa «química», ou lá o que seja essa coisa que chamamos de «química», actua em profundidade na nossa consciência, dando-nos instruções imperativas como «ama agora!» ou «odeia já!». Concentramo-nos então num rosto, num olhar, numa voz, por vezes associados a um odor, a um gesto ou a uma forma de andar, que nos perturbam ao ponto de não lhes ficarmos indiferentes. Mesmo quando a maioria dos outros não vê o que nós vemos e não acha nada daquilo que nós achamos.
Posso dizer que, desde que vi Jules et Jim, rejeitei o rosto provocador, e sobretudo o sorriso que me pareceu então demasiado largo e um pouco obsceno (comissuras dos lábios vincadas, dentes grandes e expostos), de Jeanne Moreau. E não foi por, na minha adolescência de pacato rapaz da província, ser um tanto impenetrável aquela história louca, contada por Truffaut, de um ménage à trois em início de século. Terá sido qualquer outra coisa, mais profunda. E tão profunda quanto impossível de descrever, provavelmente, sem uma aproximação a alguns dos meus fantasmas mais antigos. Talvez sejam eles também que possam explicar porque razão o actual rosto da Moreau, agora com quase oitenta anos, mais velho, mais pacificado embora não menos revolto, que entrevi ontem num documentário, me seja finalmente simpático. Ou então será dos ácidos e dos sais alterados dessa inexprimível «química».
| [YouTube=http://www.youtube.com/watch?v=IDKlAOiU93c] |
The Dining Rooms – Catania City Blues
Não gosto de hinos porque não gosto de guerras. Nem mesmo daquelas muito pequenas, travadas nos estádios à custa de petardos, palavrões e pontapés nas canelas. Os hinos são cânticos guerreiros, ou marchas militares, que lembram sempre o fogo cerrado e a morte em combate, falam de pátrias e de heróis, de glórias passadas ou previstas, e se destinam a motivar como um urro antes do mergulho num rio de água gelada. Mais prosaicamente, são também instrumentos de submissão do indivíduo ao colectivo, como a ordem unida que os exércitos ensinam aos recrutas desde o primeiro dia no quartel. E servem para exaltar o ânimo e a coragem. Não são cantilenas, lengalengas, como aquelas palavras entarameladas que balbuciam os jogadores-milionários da nossa selecção de futebol. São brados e estados de alma, como o cantam, vibrantes e únicos, os nossos rapazes da selecção de râguebi, neste momento a disputar em França o mundial da modalidade. Se não me entendem, vejam e oiçam como se canta um hino a sério, no próximo dia 15, cinco minutos antes dos corajosos Lobos defrontarem os esplêndidos All Blacks e a vozearia maori da sua haka. E depois cantem-no assim. Ou então façam como eu e calem-se para sempre.
Duas notas posteriores:
1. Para o L’Equipe, «enquanto se ouvia A Portuguesa eles cantavam com tanta força que até dava para desfazer os maxilares». O Guardian comenta que o hino foi cantado com «um orgulho fora do normal», e que «não houve o ‘estou a perder a compostura porque estou a cantar’ que tantos profissionais mostram hoje».
2. Bem procurei uma fotografia totalmente apropriada para ilustrar este post, mas quem a encontrou, magnífica, foi o Carlos Freitas, publicando-a no seu blogue Prosas Vadias. Pode vê-la também aqui, em todo o seu esplendor. E aqui o vídeo.