Arquivo de Categorias: Olhares

Quase chuva

No ar a espiral empurra a brisa, leva-a
quarenta léguas adentro do Mar Oceano.
Perto, o silêncio simula a tranquilidade,
o céu esconde-se, as árvores inquietam-se.
Um vulto passa vadio, quase a adivinhar
a chuva que vem como vapor de lavandaria.
O Oldsmobile de 57 parece nascido ali
e não ao longe, num subúrbio de Detroit.
Na marginal deserta os rostos vacilam
certos da presença ameaçadora dos cães.
O horizonte ignora a tempestade, inábil,
tão próxima quanto a sombra que a veste.

    Olhares, Poesia

    Subindo, temos

    Paul Celan aos 18

    Estacas com bandeiras
    recrutadas para dar as boas-
    -noites à esquerda
    do leme.

    cardumes de olhos, oceânicos
    por dentro, para sempre
    por sobre
    as baleias
    que nadam até ficar cegas,
    lançam para cima
    os seus últimos males,
    para o que, subindo, temos
    de sondar.

    Paul Celan – De A morte é uma flor. Poemas do espólio
    (Trad. de João Barrento)

      Olhares, Poesia

      As escolhas do Bloco

      Fotografia de Márta Szabó

      Há cerca de 14 meses, logo após o desastre eleitoral que o BE produziu e viveu nas legislativas de 2011, e em consonância com um debate público, alargado a não-militantes, que então parecia ir ter lugar, escrevi aqui quatro posts sob o título comum «O Bloco no seu labirinto». O tempo passou, a discussão parece ter-se escondido, e um conjunto de práticas então criticadas manteve-se aparentemente inalterável. Este texto retoma, resume e atualiza alguns dos argumentos ali avançados. Mas procura, pois agora só isso é urgente, olhar principalmente para o futuro.

      Não me parece, ao contrário do que por aí se diz e escreve, que as dificuldades do Bloco de Esquerda, a clarificação das dúvidas sobre os caminhos que pisa, o esclarecimento público dos seus objetivos, passem necessariamente por mudanças profundas no núcleo dirigente. As escolhas, claro, são feitas por pessoas: elas têm rosto, traduzem percursos, sugerem as expectativas e as qualidades de quem as toma. Mas não parece existirem clivagens que imponham a troca de dirigentes com rodagem e com energia para cumprirem o seu trabalho político, por outros que, numa mera operação de cosmética, apenas poderão oferecer, como numa mudança de logótipo, uma imagem pública diferente. O alargamento e a renovação dos organismos de direção, a expansão da sua representatividade e colegialidade, o combate ao sectarismo que ainda se deteta, a ampliação dos militantes com formação qualificada, integram uma solução; já deitar fora ideias, experiência, dedicação, não tem necessariamente de fazer parte dela. A solução deve encontrar-se noutro lado. (mais…)

        Atualidade, Olhares, Opinião

        Les feuilles mortes


        | Yves Montand em Parigi è sempre Parigi (1951), de Luciano Emmer

        Elegia e Recordação da Canção Francesa
        por Jaime Gil de Biedma

        C’est une chanson
        que nous ressemble.
        J. Kosma e J. Prévert: Les feuilles mortes

        Lembrai-vos: a Europa estava em ruínas.
        Todo um mundo de imagens me resta desse tempo
        descoloridas, a ferir-me os olhos
        com os escombros dos bombardeamentos.
        Em Espanha, a gente apertava-se nos cinemas
        e não existia aquecimento.

        Era a paz – depois de tanto sangue –
        que chegava andrajosa, como a conhecemos
        os espanhóis durante cinco anos.
        E todo um continente empobrecido,
        carcomido de história e de mercado negro,
        de repente foi-nos mais familiar. (mais…)

          Olhares, Poesia

          A espionagem que veio do frio

          Berlim
          Berlim. Fotografia de brain d. bug

          Uma das formas de desrespeito pelos direitos dos outros – e também de aviltamento da condição humana – passa pelo uso seletivo, contra alguém ou contra grupos, de insinuações, meias-verdades ou completas mentiras. Pode ser que quem o faça consiga os seus intentos imediatos, mas não ganha com isso, com toda a certeza, a consideração de quem se apercebe de tais estratagemas. Eis uma «lei universal» que a todos se aplica: não é possível respeitar quem, para obter vitórias fáceis e rápidas, ou para depreciar publicamente alguém, recorra à mentira ou à manipulação das palavras. Fazê-lo é, entre outras coisas, sinónimo de falta de transparência e de caráter. As duas ou três pessoas com quem nesta vida me incompatibilizei, justificaram a minha atitude justamente pelo uso reprovável da manipulação, da mentira, da depreciação de outros. Distorcendo as suas palavras ou fazendo eco, sabendo o que faziam, de calúnias produzidas por terceiros. Produzindo pravda, «verdade revolucionária», em vez de verdade. (mais…)

            Apontamentos, Atualidade, Olhares, Opinião

            Revolução

            Para Antonio Muñoz Molina algumas das maiores revoluções da sua vida aconteceram aos outros. Em lugares onde não estava, como Lisboa, Berlim ou o Cairo. Uma experiência frustrante que pode ser partilhada. Não estar ali, naquele momento, no lugar onde tudo aconteceu. Quando a História toma o freio nos dentes e por instantes as grandes expectativas, outrora adiadas para futuros incertos, ganham forma em vidas que não são as nossas, em cidades que jamais habitámos, em línguas que não nos pertencem. Delas chegam-nos então as imagens rápidas, televisionadas, das correrias pelas ruas, dos cartazes que se agitam, dos gases irrespiráveis, das mots d’ordre na ordem do dia. Nessas alturas reconhecemos na ira dos outros, no rasgo que dela chispa, um impulso simpático que partilhamos, necessário para que as nossas vidas possa, também elas, incluir uma dimensão de esperança. Se é verdade, como escreveu Ralph Waldo Emerson, o filósofo e poeta americano de Oitocentos, que cada revolução começa por ser uma ideia na nossa própria cabeça, então vislumbrá-la nesses horizontes distantes ecoa em nós, através dos outros, noutras vozes e noutras praças, a consciência da sua possibilidade. Tudo acontece rapidamente e a festa acaba demasiado depressa, mas ficam as marcas, os despojos, insinuando que um dia pode voltar a acontecer. Algures, talvez aqui, talvez connosco.

              Atualidade, Devaneios, Olhares

              Os artistas, nós todos

              Talking. Fotografia de Sébastien Tabuteaud

              O cerco imposto pela «política do real», aquela que apenas atende aos dados objetivos, ao deve e ao haver, às necessidades materiais mais elementares, a metas quantitativas, é, entre os partidos da democracia, protagonizado agora pela quase totalidade do espetro político. À direita porque essa é a atitude natural, esquecidos que foram, levados pelo tempo, os impulsos do velho personalismo a propósito da «comunidade de pessoas», depois adotados pela defunta democracia cristã. À esquerda porque se desistiu de pensar uma política do impossível – indispensável para projetar a mudança – em favor do pragmatismo que apenas olha para o ritmo das refeições. Passo pelas palavras do Padre Manuel Antunes, publicadas em 1979 no seu notável Repensar Portugal, e revejo a premente necessidade de voltarmos a procurar naqueles que pensam de forma imprevisível – em confronto com as necessidades humanas, mesmo as mais íntimas e imateriais – o caminho da esperança e do futuro.

              Que espécie de sociedade desejamos? Que espécie de sociedade deseja o povo português? Ouso interpretar. De resto é essa uma das funções, se não a principal função do intelectual na cidade. Para além, claro, da missão de defender o seu próprio ideal e as suas pró­prias opiniões, mesmo quando esse ideal e essas opi­niões não vão ao sabor dos senhores da hora. O intelectual não deve ter medo de ser ou parecer diferente dos outros, de querer escapar ao nivelamento univer­sal em que, por via de regra, esses mesmos senhores pretendem rasoirar os que, de uma certa forma, lhes estão sujeitos. Por isso, como avança Oskar Morgenstern, os governos fazem mal em só prestarem atenção aos dados sociais, económicos e técnicos dos mundos que administram. Deviam também consultar os artistas pela sua «extraordinária presciência» do que se passa ou vai passar na profundidade desses mesmos mundos.

                Apontamentos, Olhares, Opinião

                Bibliocrime

                Existe quem defenda que roubar livros não é crime, uma vez que os bens culturais devem dispor de trânsito livre, universal e gratuito. Ressalvando os casos em que o ladrão tem em vista a raridade bibliográfica que pode seguramente valer uma boa maquia, trata-se de um produto do qual realmente só se apropria sem passar pela caixa registadora quem é um real connaisseur ou dele precisa mesmo. Rouba-se então pelo gosto, para alguns pela necessidade, de ler. Ou então pela compulsão bibliófaga. Rimbaud roubava livros, e Genet, como não podia deixar de ser, também o fazia. Sei de cidadãos, alguns de perfil público, que em dado momento das suas vidas, por aperto financeiro ou gosto do risco, se dedicaram com tenacidade e bom proveito a essa pequena mas nobre arte. Que fiquem descansados em relação aos efeitos casualmente perniciosos da minha memória, pois não sou delator. Além disso, e para ser sincero, não estou em condições de poder garantir não ter eu próprio sucumbido no passado à cobiça, deixando-me envolver – devido provavelmente às más companhias – no emocionante submundo da transgressão associada ao consumo de produtos brochados ou encadernados. (mais…)

                  Apontamentos, Olhares

                  Futebol e desencontros

                  Como no amor, aconteceram, na história da literatura, das artes ou da filosofia, desencontros que poderiam ter sido belos encontros. Possíveis que se revelaram impossíveis. Karl Marx e Charles Darwin tiveram uma reunião prevista, marcada por um amigo comum, mas esta acabaria por não acontecer. Soljenitsine e Nabokov falharam por muito pouco uma prometida conversa. E nos anos quarenta Orwell marcou um encontro com Camus em Saint-Germain-des-Prés, mas como este se atrasou um pouco, aborreceu-se e foi-se embora. Conhecendo o percurso de ambos, as causas que partilharam, as marcas que deixaram, aquele poderia ter sido o princípio de um belo entendimento. (mais…)

                    Apontamentos, Olhares

                    Plano de fuga

                    Não define a ausência
                    o conhecimento da terra,
                    a proximidade dos lírios, das
                    estradas sem destino.
                    Não conhecem roteiros a
                    sabedoria do sol e o silvo
                    dos insectos sem asas e cegos
                    que procuram água.
                    Não existe poesia sem
                    conhecimento, saber sem sal,
                    na vida diária feita de passos e
                    de réstias e de perdas.
                    Não sabem os trilhos dos mapas
                    perdidos inventados
                    ou da existência de um norte
                    frio, férreo, inamovível.
                    Não produzem os passos linhas
                    e nós de navegação
                    para que possamos desenhar
                    um ótimo plano de fuga.

                      Olhares, Poesia

                      Girassol

                      Nem bancos de lama,
                      nem água negra e lodosa
                      cheia de pinhas de amieiro e folhas corroídas.

                      Nem salsa-brava no inverno
                      canelas e pulsos velhos e esbranquiçados,
                      com a sua sibilância, o seu tremor.

                      Nem mesmo o verde vivo de uma sombra veranil
                      densa com borboletas
                      e cogumelos bojudos como uma sela de couro.

                      Não. Mas antes, na quietude de um canto,
                      agarrado ao seu muro ponteado a seixos,
                      pesado, pendendo para a terra, todo boca e olhos,

                      O girassol, num sonho cor de umbra.

                      Seamus Heaney – fragmento de Trabalho de Campo
                      (Trad. de Rui Carvalho Homem)

                        Olhares, Poesia

                        Ecos

                        T. S. Eliot

                        O tempo presente e o tempo passado
                        Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,
                        E o tempo futuro contido no tempo passado.
                        Se todo o tempo é eternamente presente
                        Todo o tempo é irredimível.
                        O que podia ter sido é uma abstracção
                        Permanecendo possibilidade perpétua
                        Apenas num mundo de especulação.
                        O que podia ter sido e o que foi
                        Tendem para um só fim, que é sempre presente.
                        Ecoam passos na memória
                        Ao longo do corredor que não seguimos
                        Em direção à porta que nunca abrimos
                        Para o roseiral. As minhas palavras ecoam
                        Assim, no teu espírito.
                                                        Mas para quê
                        Perturbar a poeira numa taça de folhas de rosa
                        Não sei.
                                                 Outros ecos
                        Habitam o jardim. Vamos segui-los?

                        T. S. Eliot – Fragmento de Burnt Norton (Trad. Maria Amélia Neto)

                          Olhares, Poesia

                          Passado sem futuro

                          Os invernos poderiam ter sido menos rigorosos, menos tristes as viagens de comboio, menos previsíveis os desfiles do Maio. Teríamos crescido a cruzar pacificamente as cidades dos irmãos Vesnine, a viver com os quadros de Altman, os poemas de Tsvetaeva e de Akhmatova, os compassos menos previsíveis de Chostakovitch. Aragon não teria cantado o cavalo metálico sob as chaminés poluentes de Magnetogorsk. Barbusse teria permanecido um desconhecido para os nossos avós. Eisenstein teria filmado grandes planos de gargalhadas e de mãos usadas em carícias. Ter-se-ia fundido menos bronze para robustecer as estátuas. Não teriam ressoado gritos nocturnos pelos corredores da Lubianka. Teria corrido menos gelo pelas almas e ter-se-ia notado mais ruído pelas ruas. E provavelmente o socialismo seria hoje uma expressão de humanidade tão calorosa e natural quanto o amor, a felicidade ou a compaixão. A desigualdade e a opressão, essas seriam palavras raras, apenas reconhecíveis em velhos romances e compêndios de História antiga. De facto, o futuro atrasou-se um pouco. Mas prometeu que virá.

                            Heterodoxias, Memória, Olhares

                            Paraíso sobre os telhados

                            Cesare Pavese
                            Cesare Pavese

                            Será um dia tranquilo, de luz fria
                            como o sol que nasce ou que morre, e o vidro
                            fechará por fora o ar sórdido.

                            Acorda-se uma manhã, de uma vez para sempre,
                            na tepidez do último sono:
                            a sombra será como a tepidez. Encherá o quarto
                            pela grande janela um céu mais vasto.
                            Da escada subida um dia para sempre
                            não virão mais vozes nem rostos mortos.

                            Não será preciso deixar a cama.
                            Só a aurora entrará no quarto vazio.
                            Bastará a janela para vestir cada coisa
                            de uma claridade tranquila, quase uma luz.
                            Pousará uma sombra descarnada no rosto supino.
                            As recordações serão coágulos de sombra
                            calcados quais velhas brasas
                            na chaminé. A recordação será a chama
                            que ainda ontem picava nos olhos apagados.

                            Cesare Pavese – De Paternidade
                            (Trad. de Carlos Leite)

                              Olhares, Poesia