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Panóptico

Um paradoxo desdobra-se à nossa frente. De um lado, o progresso muito rápido das técnicas de vigilância que o digital possibilita faz do Estado um Big Brother real. Do outro, o progresso não menos rápido das técnicas de comunicação produz um certo ambiente de transparência. De um lado, as câmaras de vídeo, os instrumentos de geolocalização, as pegadas digitais, genéticas e oculares, os ficheiros bancários, os dossiês médicos, o histórico das nossas chamadas telefónicas, as mensagens na Internet e o rasto das nossas peregrinações pela rede, compõem uma panóplia de instrumentos que permitem às autoridades o estabelecimento de um cerco quase completo da vida pessoal ou mesmo íntima. Do outro, através do Google, do Facebook, do Twitter, entregamo-nos com entusiasmo e sem pudor ao olhar dos outros, confiantes ou não, sem motivo especial ou ávidos de informação.

As duas dinâmicas poderosas apontam na mesma direção: a construção de uma sociedade da transparência na qual deixámos de saber com precisão onde se situa o limite entre a vida privada e a vida, senão pública, pelo menos disponível aos olhares dos outros. Duvidamos a todo o momento se se trata de uma coisa boa ou maléfica, mas sabemos que em qualquer dos casos está a ocorrer uma transformação enorme. Provavelmente uma mudança de paradigma civilizacional. Assistimos assim à materialização, diante de todos, de três fantasmas projetados respetivamente por Orwell, Kafka e Huxley: a vigilância de todos por um Estado potencialmente omnisciente, a submissão de cada a uma espécie de Olho soberano, do qual não sabemos aquilo que ele sabe de nós, e a alegria, a felicidade, de contribuirmos por iniciativa própria para um avanço até ao que imaginamos, otimistas, como o melhor dos mundos. (mais…)

    Democracia, Olhares, Opinião

    Anarquia no século 21

    O fim da ordem bipolar introduzida pela Guerra Fria e o estado de desgraça ao qual na atualidade chegou o capitalismo têm trazido de volta a hipótese da demolição da ordem pública tal qual a conhecemos. Fala-se da «anarquia das ruas», com o pavio acendido em Atenas, causada pela revolta incontida contra o recuo abrupto do Estado social e a falta de horizontes de sobrevivência, mas fala-se também da «anarquia dos mercados», determinada pela incapacidade de alguém prever ou moderar o seu comportamento errático. Todavia, a teoria política e a experiência dos movimentos sociais, não têm promovido o retorno do ideário anarquista ou anarcossindicalista que, desde os meados do século XIX, orientou os primeiros passos da reivindicação operária e ajudou a construir a perceção do futuro de um grande número de filósofos, escritores, artistas e outros atores sociais. Existe de facto um peso, determinado pela domesticação dos partidos da esquerda e dos sindicatos, que esvaziou o velho filão do anarquismo militante, da escola de Bakunine, confinado à cultura antiquada dos militantes saudosos de outros tempos, com bandeiras desbotadas que já não mobilizam, ou, longe deles, a setores de jovens automarginados, que encontram na atitude libertária o arsenal da sua barricada identitária. E, no entanto, como sugere Octavio Alberola, porque não associar o anticapitalismo que a crise fez reemergir a um antiautoritarismo renascido, capaz dar perigosamente voz a quem já não acredita nas burocracias partidárias e sindicais? Eis uma questão levantada, com uma reflexão convincente e propostas à vista, num pequeno livro de M. Ricardo de Sousa (Os Caminhos da Anarquia, da Letra Livre) que anda aí, algo escondido, pelas estantes das livrarias. Apresentado como uma reflexão pessoal «sobre alternativas libertárias em tempos sombrios», levanta uma possibilidade de ressurgimento na luta social que, no contexto presente de gestão crítica das expectativas e das sobrevivências, é de ter em atenção.

      Apontamentos, Atualidade, Olhares

      Meter os pés ao caminho

      Não fazendo parte do seu núcleo impulsionador e redator, fui dos primeiros signatários do «Manifesto para uma Esquerda mais livre». Neste momento, o número de pessoas que assinaram o documento, muitas delas de trajeto e méritos publicamente reconhecidos, já vai em cerca de duas mil e continua a aumentar. A sua localização política é muito plural e a leitura que cada uma delas faz do documento será, por isso, com toda a certeza muito diferenciada. É natural que assim aconteça, dado não se tratar de um programa partidário, de uma plataforma eleitoral ou de um plano para a tomada do poder, mas antes de um conjunto de princípios maleáveis, razoavelmente consensuais para diversas áreas da esquerda não dogmática, destinados – é essa a minha leitura, e foi nessa perspetiva que assinei – a colaborar na procura de estratégias de aproximação e de renovação para uma esquerda dividida. Uma esquerda demasiadas vezes entrincheirada nas suas diferenças e absolutas certezas, como tal sem hipóteses de enfrentar com êxito uma direita que sabe unir-se e incapaz de aplicar a estratégia de mudança que a atual situação do país e da Europa requer. É o princípio de algo, não se saberá ainda bem do quê. Mas em relação a uma coisa podemos desde já ficar com alguma segurança: não servirá para dividir, mas sim para unir, como não servirá para enquadrar, mas para pensar. E não é «contra os partidos», embora admita que estes por si só não bastem para abrir os caminhos da mudança. (mais…)

        Atualidade, Olhares, Opinião

        Na rota de Kolyma

        Como Auschwitz na rede de campos instalados pelos nazis, Kolyma é sinónimo de morte e sofrimento extremo no interior do universo concentracionário da antiga URSS. O complexo, instalado no glacial extremo-nordeste siberiano, detinha e conserva uma particularidade que marcou o seu destino: o de principal território de mineração do ouro da Rússia. Daí o interesse de Estaline em enviar prisioneiros para as suas minas. Estima-se que entre 1932 e 1956 foram mais de 2 milhões os deportados para o complexo instalado na região. E muito poucos regressaram. Varlam Shalamov foi um dos que sobreviveu e nos intensamente autobiográficos Contos de Kolyma, escritos entre 1953 e 1963 mas reportando-se a uma experiência que vinha dos anos 30, deixou-nos reflexos desse lugar terrível. Décadas depois, relatos e reportagens fotográficas testemunham de uma forma perturbante o silêncio e a desolação desse espaço imenso, um dos mais hostis da Terra, no qual tantas vidas foram rapidamente consumidas, deixando um rastro de dor e sombra que ainda se não extinguiu. Foi por isso que o escritor e jornalista polaco Jacek Hugo-Bader resolveu percorrer de mota os 2 025 quilómetros da rota de Kolyma, que vai de Moscovo a Vladivostok. Ao longo do trajeto, relatado no seu Dziennik Kolymski (Diário de Kolyma), editado na Polónia no ano passado e recenseado na revista francesa Books, todas as pessoas com quem falou conservam uma qualquer ligação familiar ou emocional com aquelas minas que continuam malditas. Quem já leu na íntegra diz que o relato do longo e gélido périplo de Hugo-Bader é espantoso. E principalmente uma reflexão sobre a humanidade num lugar que já foi o da mais impiedosa desumanidade.

        um outro post relacionado com o tema

          História, Memória, Olhares

          Média

          Outra das entradas escritas para o Dicionário das Crises e das Alternativas lançado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, de parceria com as Edições Almedina, a revista Visão e o Jornal de Letras. Ainda em alguns quiosques.

          Até à década de 1960, média designava um campo integrador dos «meios de comunicação de massas» enquanto instrumentos de propaganda destinados a impor uma mensagem de natureza política ou publicitária. Nos anos 70 essa perspetiva foi alargada, percebendo-se que a dimensão instrumental não indicava apenas aos públicos o modo como estes deveriam pensar, mas incorporava também a aptidão para impor aquilo em que eles deveriam ou não pensar. Neste sentido, os média têm funcionado como aparelhos de subordinação dos cidadãos a formas de perceção do real social e do curso da História que escapam à intervenção da crítica, não sendo acidental que as piores formas de opressão, instaladas nos regimes de pendor totalitário mas também nas fissuras das democracias, recorram a eles para impor o seu domínio e eliminar a divergência. A ideia de «indústria cultural», proposta por Adorno e por Horkheimer, referia já o modo como a instauração de um dado fluxo de informação servia de instrumento de propagação da ideologia dominante, dando lugar a uma uniformização dos quadros de pensamento e dos comportamentos, no sentido da aceitação ordeira do capitalismo. Para Baudrillard, o peso do signo na «sociedade de consumo» irá, por sua vez, suscitar uma vertigem de natureza opressiva. A vulgarização da televisão, e depois a disseminação da Internet, crescentemente dependentes da intervenção dos grupos financeiros e também dos governos, irão reforçar este papel de manipulação e controlo, impondo, perante o recuo do jornalismo de combate, um ruído que ao mesmo tempo silencia. No presente contexto de crise, este tende a difundir a convicção de que não existe escolha perante os desmandos do sistema, o qual poderá quanto muito ser reabilitado. A capacidade da rede mundial de computadores integra, porém, uma forte dimensão democrática e libertária que tem servido a circulação de informação (veja-se o caso Wikileaks), o debate político, a mobilização do protesto e a perceção da possibilidade de uma mudança mais profunda, contornando os média tradicionais, eles próprios forçados a repensar-se.

            Atualidade, Cibercultura, Olhares

            Mulheres com M

            Tem sido boa a repercussão pública do ensaio Humilhação e Glória, de Helena Vasconcelos. Sendo inteiramente merecido, esse eco deve, no entanto, ser confrontado com algumas dúvidas que a leitura da obra levanta. É desde logo evidente a intenção da autora de conceber o livro como uma introdução à história das mulheres, concebida de forma atraente e vocacionada principalmente para o leitor comum. Ele vem preencher, aliás, na linha do que fez em Espanha Rosa Montero com o seu Histórias de Mulheres, uma lacuna na edição nacional. Ao mesmo tempo, a autora propõe um importante trabalho de resgate efetuado sobre os feitos e os trajetos públicos de um conjunto de mulheres, principalmente portuguesas, com papéis na literatura, nas artes, nas ciências ou na intervenção cívica que têm permanecido injustamente esquecidos ou na sombra. Se a Marquesa de Alorna é, pelo menos nos meios académicos, razoavelmente conhecida, poucos terão ouvido falar, por exemplo, de Teresa Margarida da Silva Orta, apesar de esta ter sido a primeira portuguesa a escrever um romance (As Aventuras de Diófenes, de 1752). Atravessa também o livro uma brisa de otimismo que contribui, sem dúvida, para ampliar o seu papel de instrumento destinado a sublinhar a importância de um trajeto histórico de combate pela emancipação e de afirmação positiva da voz das mulheres.

            Uma leitura crítica levanta, porém, algumas perplexidades. Anoto três. Em primeiro lugar, a consideração de eventos e práticas originários de distintos tempos e lugares como se inscritos num percurso único, visando uma espécie destino trans-histórico comum. Em segundo lugar, a falta das propostas, dos problemas e dos combates que se levantaram, a partir da década de 1980, no contexto do chamado feminismo de terceira vaga, ficando as alusões canónicas pelas pelas autoras de segunda vaga (Simone de Beauvoir, Elaine Showalter, Betty Friedman e outras). E em terceiro o tom quase celebratório, em relação à situação atual de uma «tendência para a igualdade» que estudos no campo da sociologia e da ciência política têm vindo a desmontar, revelando, ao invés, que este padrão de discurso pode validar subordinações reais, aparentemente invisíveis. Pode ainda, entretanto, levantar-se uma última objeção que parecendo apenas formal, de facto o não é. A designação de um enquadramento do ensaio, enquanto género, no campo dos estudos «femininos» – e não «sobre as mulheres», ou «feministas», como são catalogados dentro de um universo hoje já bastante alargado, inclusivamente em Portugal, que se dedica ao seu estudo nos domínios da investigação de ponta e do debate teórico – advém de uma escolha da autora que sendo inteiramente legítima, respeitável, pode também ser questionada por dar a impressão de advir de uma noção essencialista sobre o «belo sexo» derivada de um modelo cultural dominantemente masculino. Um livro bastante útil e recomendável que convirá ler com alguma vigilância crítica.

            Helena Vasconcelos, Humilhação e Glória. O acidentado percurso de algumas mulheres singulares. Quetzal. 328 págs.Versão revista de nota saída na LER de Abril.

              Apontamentos, Democracia, Olhares

              A bela palavra

              Mantenho uma relação difícil com a palavra «camarada». Houve um tempo no qual a pronunciei vezes sem conta. Para mim significava então um destino, uma missão, uma certeza. Uma vontade de partilhar a redenção dos que a história havia empurrado para baixo. Com a certeza de que esse resgate chegaria um dia. E por isso um sinal de futuro. Era essa a palavra bonita, «c’est un joli nom, tu sais», que Jean Ferrat, comunista combatente e artista de variedades, proclamava no distante ano de 1968. Aquela que combinava o sabor da cereja e o da romã com os perfumes do Maio. Mas na mesma canção Ferrat rompia com o PCF e acusava os tanques russos: «Ce fut à cinq heures dans Prague/ Que le mois d’août s’obscurcit/ Camarade Camarade». Porque a palavra serviu também, no dobrar das décadas, para perseguir e delatar, para demarcar um grau de pureza («amigo, companheiro, camarada»), para torturar e abater («porque desejas, canalha, matar o Camarada Estaline?»), manchando o brilho matinal da sua natureza. E, no entanto, sobreviveu. Porque nenhum mal conseguiu expulsar a centelha que contém. A fraternidade que invoca, espera, procura. «Camarada» permanece uma palavra linda e necessária.

                Apontamentos, Música, Olhares

                Simetria semiológica

                Reparará quem segue este blogue que em seis anos quase não se publicaram fotografias de políticos portugueses no ativo. Chegou o momento de proclamar urbi et orbi os três motivos pelos quais isso sucede. O primeiro prende-se com o mais genuíno snobismo: este blogue vive da e para a polis, mas não é um blogue de politiquinha, daqueles que se ocupam quase a full-time (e fazem bem, cumprem a sua função) dos rodriguinhos de São Bento, das fífias de Belém e atividades afins. Por isso, quando fala deles, gosta de relativizar o seu papel nas preocupações do leitor. O segundo é de natureza meramente estética: A Terceira Noite pode ter alguns posts fraquinhos (ou até o podem ser praticamente todos), mas esforça-se por ser um prazer para os olhos, um lugar visualmente incitante, ou então tão relaxante quanto uma massagem ayurvédica acompanhada pelo som de vagas marítimas. A maioria das imagens pessoais disponíveis destruiria esse equilíbrio, como um par de peúgas brancas usadas com um fato escuro. O terceiro motivo é o mais fácil de expor: o blogue preparava-se para este breve momento de simetria semiológica, esgotando de uma vez a quota para os próximos seis anos.

                [fotografia extorquida à página facebook de maquinistas.org]

                  Apontamentos, Devaneios, Fotografia, Olhares

                  Günter, Israel e os outros

                  Günter

                  «O que deve ser dito», o «poema» na origem da polémica é, de facto, confrangedoramente mau para alguém com a sua responsabilidade literária. Desqualificado como decrépito e apodado de insensível antissemita, Günther Grass declarou entretanto à Associated Press que se pudesse reescrevê-lo teria evitado usar o termo «Israel» e referido expressamente o atual governo de Benjamin Netanyahou. O episódio conta-se em poucas palavras: revoltado com o facto de a Alemanha vender a Israel um submarino com capacidade para lançar mísseis armados com ogivas nucleares, Grass publicou o referido «poema», no qual, num arremedo estético da cartilha do velho realismo (socialista ou não), acusa o governo israelita de «ameaçar a já frágil paz mundial». A peça vai mais longe, condenando «o suposto direito de um ataque preventivo» contra as «supostas» ameaças de um Irão empenhado, também ele, reconhecidamente, em desenvolver armamento nuclear. Em consequência, o governo militarista de Israel declarou o escritor persona non grata, impedindo-o de regressar a um país que, como convidado, visitou já por diversas vezes.

                  A posição do governo israelita é, obviamente, escusada e bastante condenável, apenas possível porque este se encontra nas mãos de alguns dos setores mais conservadores e agressivos do país. É contraproducente, do ponto de vista da imagem global de Israel, e incompreensível até para quem gosta, sem estar de todo desprovido de razão, de se gabar de ser «o único Estado democrático da região». Bernard-Henri Lévy, que também não é um anjo, aproveitou para desancar nos esquecimentos do escritor alemão, lembrando-lhe que, já agora, podia falar do que ao mesmo tempo se passa na Coreia do Norte, na Rússia de Putin, na Síria e no Irão ali mesmo ao lado. Mas aquilo que realmente impressiona é o facto de a esquerda antissemita ocidental – a mesma que ainda há pouco tempo apontava o dedo a Grass pelo seu longínquo e por longo tempo escondido passado filo-nazi – passar a incensá-lo como se de um herói se tratasse. Vale tudo para ser «contra Israel», independentemente das circunstâncias históricas e políticas do seu trajeto, seja o que for que possa desenhar-se no horizonte da região. Uma atitude que indicia a ausência de uma «política de princípios», justa e democrática, que é, afinal, cada vez mais necessária. Entre outras coisas para obter para aquelas paragens uma paz duradoura, sem vencidos e vencedores.

                    Atualidade, Olhares, Opinião

                    Coimbra: a cidade e a luta estudantil

                    coimbra_c

                    Disponível em formato pdf um texto que escrevi em 2007 sobre «Coimbra: a luta estudantil e o património identitário da cidade». Poderá servir de munição, ou de contrapeso, no debate atualmente em curso sobre os usos e os abusos da praxe estudantil. E também para uma apreensão mais completa do papel dos estudantes na vida e na história deste lugar diferente. Uma apreensão menos passadista sem por isso promover o esquecimento. Pode baixá-lo aqui.

                      Apontamentos, Coimbra, História, Olhares

                      Vida noturna

                      Robert Doisneau

                      O publicista e escritor irlandês Richard Steele escrevia em 1710, na revista satírica The Tatler, que tinha ido visitar um amigo chegado do campo para viver em Londres. Mas este encontrava-se já deitado quando, às 8 da tarde, Steele se apresentara em sua casa. Voltou na manhã seguinte, pelas 11 horas, para lhe dizerem que o amigo ia começar a jantar: «Rapidamente descobri que o meu amigo seguia religiosamente os seus antepassados e respeitava os horários usados na sua família desde a época da conquista normanda.» Dei algumas vezes exemplos análogos enquanto falava a turmas de alunos sonolentos sobre o imaginário aldeão dos tempos que antecederam a abertura das estradas e a chegada da eletricidade. Ali, como todos trabalhavam desde a alvorada, e o trabalho doía, todos se deitavam «com as galinhas», ficando os ruídos e as sombras da noite a cargo dos espetros e das bruxas, dos quais aliás ninguém duvidava. Mesmo nas nas cidades, as coisas não se passaram de forma substancialmente diferente até ao surgimento das festas aristocráticas e à abertura dos cafés por volta do século XVII, começando então a noite a ter uma animação inteiramente nova. Com o aparecimento da iluminação urbana e a multiplicação dos teatros o processo foi completado, alterando-se profundamente o uso social e as representações simbólicas da vida noturna. A noite fugaz mas persistente «das paixões recusadas, das paixões descabidas», gravadas a canivete nas mesas dos bares, Lins dixit, chegou bastante tarde mas para ficar.

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                        Ainda e ainda as praxes académicas

                        Em Coimbra

                        versão revista de um post publicado há cerca de um ano

                        De novo às voltas com as praxes académicas. Não que representem um problema para quem, nos ambientes universitários, delas faz – até há pouco tempo, durante algumas semanas, agora o ano letivo inteiro – o eixo das suas vidas. Pelo contrário, aparentemente essas pessoas até se divertem, daquela forma muito própria e bastante pobre e falha de imaginação de se divertirem. Mas porque para a maioria dos cidadãos, que as observam de fora como vestígios exóticos de uma época e de um mundo que não entendem bem, são um fator de perturbação. As razões que as impõem não se prendem, no entanto, com o lado mais ou menos folclórico da «festa permanente» que lhes está associada. Na raiz implicam um espaço de recreio muitas vezes legítimo, e afinal nem todos temos o dever de achar divertidas as mesmas coisas. Mas relacionam-se com três circunstâncias sobre os quais podemos alinhar umas ideias. (mais…)

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                          Ler porque sim

                          «Ler por prazer é mal visto» diz Fernando Savater em entrevista concedida à Babelia deste sábado. Não parece exagero: a leitura é cada vez mais olhada, e apresentada até por quem tem o dever de promovê-la, como momento de integração no mercado de trabalho, fator de progressão profissional ou salvo-conduto para um certo padrão de prestígio. Em última análise, como arma de arremesso na corrida triste e insana de todos contra todos. O conhecimento pelo conhecimento, o devaneio sem explicação, a leitura pelo gozo pessoal e intransferível de desdobrar a nossa vida e dialogar com as dos outros, pretéritas ou presentes, tem vindo a ser desvalorizada pelo próprio sistema educativo, mais interessado em produzir trabalhadores eficazes, em «desbloquear riqueza», do que em fazer pessoas completas e felizes. Assimilando a felicidade ao desperdício, a poesia à preguiça, a criação ao desatino, a leitura improdutiva ao esbanjamento, tem gerado uma multidão de escravos que nem sabem que o são.

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                            Millôr Fernandes (1924-2012)

                            Millôr

                            Vi o milionário saltar da limusina, caminhar tranquilamente para dobrar a esquina e penetrar na mansão onde mora. Antes de dobrar, exatamente na dobra da esquina, e nas dobras da noite, lhe saiu um trintoitão na cara acompanhado da voz surda de um sujeito que ele mal viu por trás de galhos: «Passa tudo e não chia!»

                            Homem do mundo, acostumado aos azares e venturas da economia da vida, o rico banqueiro não se deixa assustar. Apenas aconselha: «Calma, amigo. Passo tudo e não chio, que não sou besta. E vou te dizer uma coisa, reconheço o teu valor – você faz o que pode para conseguir o que precisa. Como me assalta deve saber quem sou, um banqueiro, um capitalista. Mas, curiosamente, não sabe quem é, pois aceita o vergonhoso epíteto de assaltante. E, no entanto, você é um capitalista igualzinho a mim. Só que, até agora, conseguiu capital apenas pra se estabelecer com um trinta e oito. Boa noite. Posso ir?»

                            Apotegma XVIII (de «Apotegmas do Vil Metal»)

                            Millôr Online

                              Apontamentos, Memória, Olhares

                              Duas ou três coisas que eu sei sobre manifes

                              Fotografia: Patrícia de Melo Moreira/AFP

                              Depois de uma época na qual fui ativista profissional, a certa altura quase deixei de participar em manifestações de rua. As razões podem reduzir-se a três, sendo as duas iniciais com toda a certeza partilhadas. A primeira teve a ver com o recuo das causas durante os anos 80 e a forma como, falhas de imaginação e de um norte, as correntes que contestavam a ascensão neoliberal se limitavam a repetir até à náusea, receitas, motivações, bandeiras e palavras de ordem que tinham sido necessárias nos anos de resistência ao regime e durante o processo revolucionário mas já não se aplicavam a uma realidade em rápida mudança. A segunda razão ligou-se à apropriação das datas simbólicas por uma burocracia partidária, ou mesmo sindical, que procurou usar os movimentos de massas como ferramenta de estratégias sectárias, rejeitando uma corrente dinâmica, unitária e participada que pudesse exprimir-se também na rua. Banalizou-se assim o protesto, cada vez mais ritualizado, controlado, organizado para «marcar posição» e não para arquitetar futuros. A terceira razão, mais recente, não tem motivação política: justamente quando as circunstâncias mudaram e as manifestações de rua passaram a ter de novo um papel decisivo na mobilização cívica, algumas limitações de ordem física impedem-me de estar presente como queria e deveria. Por isso sou agora mais um apoiante do direito à manifestação do que um manifestante, o que, no entanto, não reduz o meu direito à crítica ou minimiza a minha condição de «homem da luta». (mais…)

                                Atualidade, Memória, Olhares, Opinião