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Al Berto e a outra Coimbra

«Vocês são mesmo ordinários, foda-se!». Foram as palavras de um Al Berto em «fúria controlada», quando, em 1992, foi vaiado por um grupo de estudantes universitários, soi-disant irreverentes e mais ou menos etilizados, durante uma sessão de leitura de poesia que decorria em Coimbra. A mesma Coimbra onde o poeta, morto há dez anos, nascera em 1948, e cuja Câmara Municipal proclama agora o «Museu da Irmã Lúcia» e o concurso local de Misses como parte integrante do seu roteiro cultural. A minha cidade tem também destas tonterias, mas o problema não é com ela, garanto. É (tem sido) apenas com alguns dos seus habitantes (verdadeiros ou putativos).

O lamentável episódio foi gravado e pode ouvir-se aqui (16m08s):

A recordação do momento e esta gravação chegaram-me através d’A Origem das Espécies, de Francisco José Viegas, e foram inicialmente colocadas em linha, no blogue Frenesi – Livros, por Paulo da Costa Domingos.

    Atualidade, Coimbra, História, Olhares

    Sobre os monumentos (5)

    Bratislava

    Nos países sob regimes democráticos, onde se verifica algum respeito pela diferença de opiniões e pela transitoriedade dos valores, o mobiliário monumental tem começado a atenuar a expressividade simbólica que sempre incorpora. Os edifícios construídos são mais funcionais e voltados para um diálogo com as populações envolventes, a agressividade figurativa das estátuas é reduzida, ocorre uma maior preocupação com o reconhecimento social e com o confronto com a paisagem. Isto atenua o carácter demasiado afirmativo e panfletário, acentuadamente polémico, que estas construções assumem noutras circunstâncias. Porém, a suavização da mensagem dilui ao mesmo tempo o impacto do objecto, convocando um mais rápido esquecimento.

      História, Olhares

      Os meus «Seis Dias»

      Dayan

      Com catorze anos de idade eu não podia ter uma posição política que se esforçasse por parecer coerente. Talvez por isso, ou graças às «leituras para rapazes» que ocupavam a maior parte do meu tempo, em Junho de 1967 ainda sentia um grande entusiasmo pela guerra e pelos guerreiros que imaginava a povoá-la. Não aquela guerra que sabia travar-se no «nosso Ultramar» e que já então me parecia soturna, sem vislumbre de finalidade ou de grandeza, mas as guerras que se assemelhavam às dos livros. Partilhei pois – na altura, com muitos outros portugueses comuns – uma certa atracção pela dimensão heróica da Guerra dos Seis Dias. Passei aquela semana agarrado à rádio, combinando a escassa informação que chegava através da Emissora Nacional e do Diário de Notícias com as proclamações indecifráveis e contínuas, acompanhadas de música marcial, que, através da onda curta, provinham, presumo, do Cairo ou de Tel-Aviv. Entrevi dias depois, em escassas imagens da televisão, o júbilo dos soldados israelitas. Mais ao longe, uma nuvem de poeira que o locutor de serviço dizia ser a infantaria egípcia em retirada. Lamentei que tudo tivesse acabado tão depressa. E rejubilei com a vitória militar daquele que era então – alguns dos que conservam alguma memória da época já o terão esquecido – um pequeno povo perseguido de «judeus imundos», confinado a uma língua de terra árida e demasiado ensolarada.

      O rosto visível daquele delírio juvenil, que só depois soube tratar-se do prelúdio de um outro drama que nada teria de romanesco, era o do misterioso general Moshe Dayan. Com a sua inconfundível pala de pirata (substituindo o olho vazado no Líbano durante a luta contra os francesas colaboracionistas), um permanente mono-olhar de gozo e sobranceria, a mesma postura descontraída e operacional que vislumbrei depois nos muitos oficiais-generais do exército israelita que ganharam as suas estrelas dividindo o tempo entre o ar condicionado dos comandos e um quotidiano vivido em ininterrupto estado de guerra. Dois anos depois, já via a Guerra dos Seis Dias de uma forma crítica, percebendo como ela tinha incubado o ovo da serpente – e como o «espírito de aventura» preludiara afinal uma proeza extremamente perigosa – mas ficou-me, para sempre, sob o retrato daquele herói que não saía dos livros e do passado mas de uma realidade imediata que os imitava, a percepção vivida, da dimensão estética, inebriante e tremendamente perigosa da guerra. Da forma como ela pode catalisar tomadas de posição bruscas, irracionais e irreversíveis. Tal como, actualmente, o reconhece aquela parte da oposição política israelita que ainda é capaz de conceber uma paz que mais ninguém parece desejar.

      Adenda: o homem «humanizado»

        Apontamentos, História

        Um livro contra a fé

        Sam Harris

        Não é fácil defender a importância de uma obra como esta. Quando se multiplicam os livros, discursos, colóquios, debates e números de revistas que pretendem colocar em diálogo islamismo e cristianismo, ou que intentam provar «cientificamente» que se completam, e quando a defesa da laicidade parece confinar-se à teimosia de uns quantos excêntricos fora do tempo, não é fácil declarar, e tentar demonstrar, que ambos são males transportando consigo, em quaisquer das suas múltiplas formas, a opressão e a guerra. Mas é isso que procura fazer o filósofo americano Sam Harris em O Fim da Fé. Religião, Terrorismo e o Futuro da Razão, recém-editado pela Tinta da China.

        Um dos argumentos centrais deste livro aponta para o carácter negativo de um novo dogma, do qual são portadores os «crentes moderados» e também aqueles que, não sendo pessoas de fé, entendem a religião como uma área intocável e essencialmente positiva da experiência humana: uns e outros «imaginam que o caminho para a paz só será desbravado quando cada um de nós tiver aprendido a respeitar as crenças injustificadas dos outros». O que leva Harris a declarar, e a propor-se mostrar, que, ao invés, «o próprio ideal de tolerância religiosa (…) é uma das principais forças que nos arrasta para o abismo».

        Numa recente entrevista ao suplemento Babelia, Fernando Savater afirma, reciclando o velho aforismo de Marx, que «mais do que ópio, a religião é cocaína». Isto é, ela não se limita a anestesiar, a entorpecer, mas é capaz de produzir estados psicóticos produtores de uma suspensão do tempo e de ilusões com um elevado potencial de violência. O livro de Harris parte também, de alguma forma, do entendimento da religião como uma doença, e como uma doença perigosa, cujo alastramento é favorecido por dois mitos que procura desarmadilhar: o primeiro associado ao facto da maioria de nós acreditar «que é possível retirar coisas boas da fé», o segundo vinculado à crença de que as coisas terríveis que por vezes se cometem em nome da religião «são produto, não da fé em si mesma, mas da nossa natureza mais ignóbil (…) em relação à qual as crenças religiosas constituiriam o melhor (senão mesmo o único) remédio».

        Todo o volume se constitui então como um tentativa de destruição do mito da «moderação» religiosa e, ao mesmo tempo, como um enunciado do grau de inadequação ao mundo contemporâneo de todas as religiões do «Único Deus Verdadeiro», as quais, aliás, pressupõem sempre «uma ignorância enciclopédia da história, da mitologia e até da própria arte» e impelem o outro, a todo o instante, para um lugar, tolerado ou combatido, de menoridade política e de inferioridade cultural. Se ele se afirmar como apóstata, então a solução será a exclusão ou a morte.

        Particularmente examinados são, para além dos traços essenciais da matriz judaica, os fundamentos e as práticas, passados e presentes, do islamismo e do cristianismo. E aqui a crítica é impiedosa, procurando provar o seu carácter arcaico, o potencial de violência que integram, e a periculosidade das posições daqueles que buscam compreender, quando não aceitar, os seus mais terríveis excessos. A argumentação, que recorre constantemente aos textos sagrados, bem como aos discursos e às práticas dos líderes políticos que procuram na religião os fundamentos das suas opções, é verdadeiramente esmagadora, embora, frequentes vezes, bastante perturbante para aqueles que foram educados num universo laico mas tolerante em matéria de religião. Ao mesmo tempo, o recurso constante a factos do passado recente integra o debate em volta dos antigos mitos na discussão sobre os acontecimentos contemporâneos que os invocam e com os quais nos temos visto, e continuamos a ver, constantemente confrontados. Afinal, pergunta o autor, «quando será que nos iremos aperceber de que a indulgência do nosso discurso político em relação às crenças religiosas nos impede de mencionar, quanto mais de erradicar, a fonte de violência mais prolífica da história?»

        A presença dos cristãos fundamentalistas na administração americana é mostrada em muitos dos seus assustadores detalhes, mas a crítica do Islão é, sem dúvida, a mais agreste. Tendo em linha de conta a tese proposta, afinal, de que outro modo poderia ser, se, como se sabe, é neste campo que as coisas têm agora ido mais longe? As palavras são duras: «Ao reflectirmos sobre o Islão e sobre o risco que ele representa para o Ocidente, deveríamos imaginar o que seria preciso para vivermos pacificamente com os cristãos do século XVI. Com homens ainda desejosos de perseguir as pessoas por crimes como a profanação da hóstia ou a bruxaria. Estamos hoje na presença do passado. Conseguir estabelecer um diálogo construtivo com estas pessoas, convencê-las dos nossos interesses comuns, incentivá-las a seguir o caminho da democracia e a celebrara diversidade mútua de ambas as nossas culturas, é tudo menos uma tarefa simples.» Tarefa esta que o autor não enjeita, ainda que não se mostre muito optimista em relação aos seus possíveis resultados.

        O argumento de Harris faz também cair por terra a ideia de acordo com a qual, resolvidas as desigualdades ao nível da distribuição da riqueza e do desenvolvimento económico, as contradições religiosas desapareceriam, ou, pelo menos, os extremismos que actuam neste campo ver-se-iam isolados e reduzidos a uma expressão residual. O autor mostra como estes aspectos pouco interessam às massas ignorantes de crentes e como os líderes religiosos que lhes alimentam a credulidade e a ferocidade frequentam um universo quase invariavelmente protegido, informado e próspero.

        No final do livro, dois capítulos mais densos mas não menos polémicos debruçam-se sobre a essência do fenómeno religioso e sobre o valor positivo de uma espiritualidade liberta da religião. Outro tenta enunciar uma posição positiva no sentido da definição e alargamento de um grande campo de combate cultural à presença e à influência das religiões. Um interessante posfácio procura ainda rebater algumas das principais e previsíveis críticas, muitas delas com um recorte de grande violência, que foram feitas após a saída da primeira edição deste livro, vencedor do Pen Award para a não-ficção de 2005 e grande êxito de vendas. No mundo onde é possível editar livros destes e debater estes temas, evidentemente.

          História, Opinião

          Sobre os monumentos (4)

          Salazar
          Salazar em Santa Comba nos idos de 70, decapitado e florido

          Se a valorização positiva de determinados sinais é transitória, é-o também a sua negação. Muitas das vezes, a destruição dos velhos símbolos é posta em causa por sectores da sociedade a quem um determinado passado suscita um efeito de sedução. Pode então acontecer que determinados grupos – menos conformados com a ordem vigente, mais identificados com algumas causas – evidenciem uma vontade de recuperação dos monumentos destruídos. São formas de pensamento nostálgico que suscitam esse tipo de retorno, e a nostalgia pode afectar tanto as pessoas que viveram um dado passado como aquelas que o não viveram mas que aceitam, muitas das vezes sem qualquer intervenção da crítica, as imagens que dele lhes são oferecidas. O combate pela afirmação identitária – política, cultural, religiosa, étnica, geracional – determina então a vontade, mediada pela intervenção do simbólico, de um «regresso ao passado».

            História, Olhares

            Sobre os monumentos (3)

            Lenine caido

            Tal como todas as formas de poder são transitórias também o são o sistema de valores e o conjunto de códigos estéticos que as suportam. A prevista «imortalidade» das estátuas – talvez menos a dos edifícios, sempre recuperáveis com outras funcionalidades – acabará por defrontar um futuro que a irá contestar. O seu derrube consagra então, simbolicamente, os tempos da mudança. A Alemanha e a Itália do pós-guerra, o Portugal revolucionário, a Angola e o Moçambique da descolonização, os países do Leste europeu do período pós-queda do Muro, o Iraque after-Saddam, constituem, com as suas construções descaracterizadas pelos novos regimes e as suas estátuas apeadas e atiradas para lixeiras ou para museus privados, exemplos desse processo que permanecem razoavelmente nítidos na nossa memória. Aspecto igualmente acessório destes momentos de inversão são as mudanças bruscas, por vezes espectaculares, na toponímia local ou nas designações de países, cidades e regiões.

              História, Olhares

              Sobre os monumentos (2)

              Stalin

              Dotadas de traços figurativos mais explícitos, as estátuas são monumentos que possuem uma dimensão simbólica vigorosa, podendo facilmente funcionar como «lição». Aí, é o grande vulto (o rei, o chefe militar, o político, o intelectual), ou então o operário em luta, o soldado desconhecido, a mulher heróica, a agregar um conjunto de sentidos propostos sob a forma de mensagens a reter.

              Os imperadores romanos e os monarcas absolutos utilizaram o processo, mas foi o romantismo, ao valorizar o papel histórico da nação e do indivíduo, a criar as condições para um recurso sistemático a essa estratégia. Estimulando a criação dos museus e dos memoriais urbanos, tornou igualmente possível a recuperação da dimensão exemplar de determinados momentos do passado, colocando a nostalgia ao serviço da política.

              Os regimes totalitários do século passado levaram muito longe esse esforço, utilizando o monumento na tentativa de propagar as metas e as imaginárias conquistas dos seus programas políticos, de traçar o perfil físico e comportamental do «homem novo», de reescrever de cima para baixo a própria história. As artes monumentais fascista e socialista definiram a sua centralidade pedagógica, tornando-a uma prioridade da iniciativa política.

                História, Olhares

                Sobre os monumentos (1)

                O historiador da arte austríaco Alois Riegl considerava o monumento uma obra criada pela mão humana com a finalidade de conservar presente, na consciência das gerações atuais e futuras, a lembrança de determinada acção ou de uma existência passada que se deseja conservar como modelo. Este objectivo enfrentou sempre condicionalismos vários. Desde logo, sendo obra de arte pública, o monumento é construído necessariamente por quem detém a autoridade política ou por um grupo que, mesmo não se encontrando no centro do poder, tem capacidade para impor determinadas formas de reconhecimento do passado. Afinal são quase sempre os vencedores e os fortes os responsáveis pelos monumentos que conhecemos, pois são eles quem detém capacidade para os erguer, para os preservar e, acima de tudo, para fazer repercutir um significado que lhes é colado. Os chamados «anti-monumentos», destinados a contrariar os que possuem uma origem oficial, e por este motivo dotados de uma intenção subversiva, assumem um papel não-consensual e geralmente efémero. Porém, nem por isso menos importante.

                  História, Olhares

                  Ainda a «terceira via»

                  Visao de Stalin

                  Acabei de ler Álvaro Cunhal e a dissidência da terceira via, de Raimundo Narciso, editado pela Ambar. O livro apresenta-se como narrativa pormenorizada de um episódio da trajectória pós-Abril do Partido Comunista Português. Começo por aquilo que nele me parece menos positivo. Retive, logo desde as primeiras páginas, a sensação de que este relato talvez merecesse ter sido publicado há mais tempo, contribuindo dessa forma para ampliar o combate político do qual o seu autor foi um dos protagonistas. Cerca de vinte anos depois dos acontecimentos aqui referidos, poderia também ser agora a altura para propor uma leitura interpretativa e historicamente contextualizada dos acontecimentos, o que aqui não foi feito. Além disso, perpassam por todo o volume vestígios de uma certa «língua de madeira», que nos fala ainda a partir de dentro do léxico comunista. E, como se sabe, o distanciamento crítico passa sempre pelo uso de uma linguagem diversa daquela utilizada no universo do objecto estudado. De qualquer forma, Raimundo Narciso incorpora no seu discurso um forte sentido da ironia, o qual tempera bastante a aridez.

                  O livro, sublinhe-se, é um testemunho notável, que permite reconhecer alguns dos meandros de um período importante da história interna dos comunistas portugueses. Uma história que, como sempre aconteceu, o aparelho do PCP se continua a esforçar por tornar opaca, repleta de silêncios e de silenciamentos, e de meias-verdades das quais será sempre prudente desconfiar um pouco e que a ninguém beneficiam. Ao longo destas duas centenas de páginas, que se lêem muito rapidamente, como quem lê uma boa reportagem, o leitor penetra num ambiente reconhecidamente «pesado», por vezes de cortar à faca, repleto de instantes de tensão e de desconfiança, vindos do interior de uma organização política que experimentava uma visível dificuldade em aceitar as regras de funcionamento dos partidos democráticos, e na qual a figura de Álvaro Cunhal se destacava ainda como árbitro e tutor, a um tempo inteligente e inflexível. A baixa intensidade de um efectivo debate político interno, essa apenas surpreenderá quem não conhecer a história dos partidos comunistas e a pesada herança leninista-estalinista do «centralismo democrático».

                  Dirão alguns que esta é apenas uma versão da história e que o seu autor, apesar da profusão de dados e de documentos que revela, estará, afinal, a contar as coisas à sua maneira. É verdade que todos os relatos de acontecimentos vividos pronunciados na primeira pessoa contêm algo de subjectivo e de parcial. Mas, neste caso, os críticos têm bom remédio: que contem então a sua própria versão e confrontem aquela que agora é tornada pública. Todos nós ganharíamos, pois ficaríamos assim a conhecer, de modo mais completo e mais complexo, um momento importante para a história da esquerda em Portugal. Nada acontecerá, muito provavelmente: o PCP já ultrapassou há muito a batalha da qual nos fala agora Raimundo Narciso e limitar-se-á a depreciá-la, enquanto parte dos seus actores vivem hoje outras vidas ou já cá não estão para contarem também como foi.

                  Adenda: Algumas úteis notas sobre este livro e as suas circunstâncias, escritas por João Tunes, podem ser encontradas aqui.

                    História, Memória

                    Da memória dos anos do fim

                    Cracovia

                    Os períodos de declínio oferecem-nos sempre um rastro de obsolescência. As sombras de quando já nada era como foi, ou se esperou que fosse, e nada é ainda aquilo em que talvez algum dia possa tornar-se. Fica-nos uma sombra de tristeza e de inércia, de teimosia inútil que alguns dos seus sobreviventes continuam a tomar como um resto de grandeza. Vestígios daquela vida-que-o-não-era de Kathrin Sass, a mãe de Alex que recuperava do coma em Good Bye Lenin!, o filme de Wolfgang Becker. Ao mesmo tempo, um sentimento de perda, como quando se reencontra, coberto de pó e das marcas do nosso próprio desleixo, o brinquedo da infância que afinal não havíamos esquecido.

                    Assim podem percorrer-se, em Windows through the Curtain, as fotografias de David Hlynsky. Ruas sóbrias mas desoladas, a estética pobre das montras das lojas e dos armazéns do povo, as enfadonhas entradas dos nichos da burocracia ou de restaurantes que jamais recomendaríamos a um amigo em viagem, pessoas anónimas e que nos parecem errar por cidades como Moscovo, Sófia, Praga, Budapeste ou Cracóvia. Emergindo, longe dos desfiles nas praças centrais, de uma outra era, daqueles anos de fronteira que preencheram a leste a longa década de 1980. A do fim da utopia que já o não era.

                      Apontamentos, História

                      Ainda Talin

                      Aquilo que posso responder ao texto de João Tunes, a propósito das conjecturas sobre os acontecimentos de Talin que deixei um pouco mais abaixo, é que concordo inteiramente com ele sem negar aquilo que afirmei. Mas admito que possa não ter sido suficientemente claro. Ou que tenha parecido demasiado ligeiro.

                      Concordo com o facto de, se isolarmos o que se passou em Talin e aquilo que aconteceu em Santa Comba, depararemos com dois casos historicamente bastante distintos. Seria absurdo negá-lo. Por outro lado, também me parece irrecusável, no que se refere à essência dos dois momentos referidos, o facto de não existir, nem poder existir, «um corte entre a reprodução desejada e a recriação celebrada». Em um e outro dos casos, o passado não foi meramente inventado ou manipulado por quem desceu à rua. Ele existiu, deixou um rastro na memória, e, ademais, vive ainda na condição actual de parte significativa das gerações que dele receberam determinados legados.

                      Aquilo que pretendi dizer foi que, para grande parte dos que não viveram aquele tempo, ele é em larga medida idealizado e, de alguma forma, reproduzido de acordo com fórmulas simplistas, as quais não integram toda a informação e reagem a estímulos dos media, sobrevalorizando aquilo que parece momentaneamente «útil» em termos políticos. No caso estoniano, os descendentes dos russos são convidados a subvalorizar o horror estalinista, ao qual muitos dos seus antepassados de modo algum permaneceram imunes, em detrimento de um revanchismo nacionalista que a imagem da resistência antinazi ajuda a definir e a legitimar no plano simbólico. No caso português, aqueles que nem os filmes a preto e branco sobre o Estado Novo viram, descem à rua, na sua rejeição da democracia, utilizando o rosto do ditador basicamente para concitar vontades e expectativas que são de agora.

                      Sobram os mais velhos, que possuem leituras mais complexas e transportam vivências de um passado que não podem esquecer. Mas não são estes quem, ressalvando certos casos que roçam a patologia e o mais profundo ressabiamento, vem para a praça gritar «vivas ao António». Em Talin, pelas imagens que me chegaram, também não são os octogenários que combateram Hitler a vir para a rua atirar pedras às novas autoridades democráticas, embora muitos dos antigos combatentes se possam também sentir indignados pela remoção simbólica de uma parte das suas vidas.

                      Não me parece que aquilo que defendo tenda a desvalorizar o impacto presente da memória do estalinismo ou do fascismo. Apenas tem em consideração a forma como as imagens do passado são decifradas na actualidade. As lunetas através das quais uma grande parte das pessoas que têm hoje menos de 30 ou 35 anos o observam. E, nestas «coisas da rua», agora são elas que contam.

                        Apontamentos, História

                        E agora Talin

                        Tallinn

                        Muitos dos participantes dos movimentos colectivos que vêm para a rua em nome do passado estão menos empenhados em compreendê-lo do que em manipulá-lo. Ainda que de tal possam não ter perfeita consciência. Parece-me razoavelmente claro que algumas das tomadas de posição mais radicais à volta da retirada do monumento ao soldado do Exército Vermelho em Talin, na Estónia (ou da construção do museu do Estado Novo no Vimieiro, a dois quilómetros de Santa Comba Dão), nada têm a ver, para a maioria dos que se manifestam, com um conhecimento efectivo do que significou a ocupação soviética (ou, no segundo dos casos, o salazarismo), ou sequer com uma memória vivida da sua experiência. Se exceptuarmos uns quantos sobreviventes, já quase sem voz activa, para a maioria dos manifestantes o passado (aquele passado) interessará, acima de tudo, para alimentar a sua imaginação e as causas do presente que resolveram tomar como suas. Ou então porque se encontra em condições de agregar diversas formas de descontentamento. Não para expressar, como por vezes tem sido insinuado, um desejo objectivo de meter o presente em marcha-à-ré na máquina do tempo.

                        Adenda: ler a continuação deste texto mais acima ou aqui.

                          Apontamentos, História

                          Auxiliar de memória

                          Por teu livre pensamento

                          Editado pela Assírio & Alvim, Por Teu Livre Pensamento é um livro que evoca os rostos e as memórias de prisão de 25 ex-presos políticos portugueses e que acompanha a exposição patente no Centro Português de Fotografia, no Porto, até ao próximo dia 24 de Junho. As fotografias a preto e branco, imagens recentes sobrepostas aquelas que a PIDE originalmente tirou, são de João Pina. Os textos, da autoria de Rui Daniel Galiza, são essencialmente curtos relatos dos trajectos prisionais dos fotografados, construídos a partir de conversas que se pressente terem sido mais longas e densas.

                          Todos os fotobiografados são resistentes, oriundos de diversos quadrantes, embora maioritariamente do PCP, como seria de esperar e é justo que assim seja. Homens e mulheres de rostos endurecidos por anos de luta e de trabalho político, marcados pela prisão, pela tortura, por vidas em fuga que lhes foram gravando algumas das rugas que se lhes podem agora notar. Todos, sem excepção, a merecerem a admiração dos que chegaram depois e deles herdaram o sacrifício da liberdade. Os trajectos mais extraordinários são, porém, o de Emídio Guerreiro (que jamais foi comunista e cuja vida, para utilizar um lugar-comum, dava de facto um filme) e o de Edmundo Pedro (que declara ter sido afastado do partido contra sua vontade). Ambos contêm uma dimensão de imprevisibilidade, por vezes de capacidade para integrar a aventura, que nos permite adivinhar vidas particularmente únicas e complexas. Edmundo Pedro começou, aliás, a publicar entretanto a sua própria autobiografia, a qual prolonga as Memórias do seu pai, Gabriel Pedro, deixadas num documento único que o PCP, contra o desejo expresso do autor, terá sonegado ao conhecimento público.

                          No conjunto, o volume funciona como um precioso auxiliar da memória, destacando o rosto e a experiência daquelas pessoas, apenas 25 entre muitos milhares possíveis, de modo a que elas jamais possam ser olhadas como um simples sample do imaginário contemporâneo.

                          Originalmente em Passado/Presente

                            Etc., História, Novidades

                            Vítimas e «mártires»

                            Franco

                            Em Espanha, a Igreja católica contra-ataca numa altura em que se discute a Lei da Memória Histórica, a qual propõe a reparação póstuma das vítimas do franquismo e da Guerra Civil. Prepara-se assim, para o próximo Outono, a beatificação em massa de 2 bispos, 24 padres, 462 religiosos, um diácono, um subdiácono, um seminarista e sete leigos, eufemisticamente designados pela hierarquia eclesiástica como «mártires da perseguição religiosa dos anos trinta». Os fantasmas do passado parece quererem retomar o seu lugar. Algumas das suas causas também.

                            Adenda: Vale a pena conhecer o edificante caso da beata Eusébia Palomino, patrona dos adivinhos.

                              Apontamentos, História

                              Que povo era esse?

                              Povo-MFA

                              O velho cartaz de um tempo raro, criador, agora antigo e quase proscrito, desperta uma incógnita. Que povo era esse que se nos apresentava na figura de um lavrador oitocentista arruinado pelo jogo, de um Zé do Telhado em dia de festa, de um jagunço sertanejo, de um Sandokan fora-de-horas viajando incógnito pela margem esquerda da Europa? O imaginário do 25 de Abril e do PREC tem ainda pistas por achar, expectativas por revelar, caminhos (se calhar, um dia talvez calhe) por retomar.

                                Devaneios, História

                                Retrovisor

                                Emigrantes

                                Não, não se trata de um grupo de romenos, moldavos ou ucranianos emigrados que confraternizam numa noite de sábado. São portugueses, homens apenas, à espera de um comboio para França durante os nossos anos 60. A imagem – de grande utilidade para aqueles que padecem de amnésia – é retirada de Portugal, Um Retrato Social. Todos os episódios já emitidos desta notável série televisiva de António Barreto e Joana Pontes podem ser vistos, na íntegra, aqui mesmo.

                                  Apontamentos, História

                                  Manhãs de nevoeiro

                                  Sebastiao

                                  Em 1581, Filipe II (I de Portugal, como se ensinava em tempos na Primária), fez transladar para o Mosteiro dos Jerónimos um corpo que alegava ser o de D. Sebastião. O objectivo parece ter sido o de acabar com os rumores a propósito da sobrevivência do rei em Alcácer-Quibir e do seu eventual regresso na tentativa de resgatar o trono e a independência do reino. A incerteza, porém, manteve-se, alimentado esse «mito sebástico» que desde o início se fundou na crença do retorno messiânico de um salvífico «desejado». Em 1879, na História de Portugal, Oliveira Martins explicava-o assim: «A alma lusitana, ingénua na sua candidez – tombado agora por terra o edifício imperial (…) – rebentava em soluços, buscando no seio da natureza, onde se acolhia, uma salvação que não podia esperar mais das ideias, dos sistemas, dos heróis, nem dos reis em quem tinha confiado por dois séculos. A obra temerária dos homens caía por terra; e o povo, abandonado e perdido, abraçava-se à natureza, fazendo do lendário D. Sebastião um génio, um espírito, e da sua história um mito». Alguém, portanto, que transportava um anseio colectivo e vivia para aquém do seu desaparecimento físico.

                                  Bastará uma consulta apressada de parte da imensa bibliografia que sobre o assunto se produziu ao longo dos últimos cento e vinte anos para se perceber que o sebastianismo não cresceu da dúvida sobre a identificação do corpo, mas de algo muito mais profundo que já as profecias do Bandarra (anteriores, aliás, à vida de Sebastião) enunciavam como a crença num herói providencial capaz de interpretar o colectivo destino dos portugueses. Sabe-se como o próprio Salazar não escapou a esta aproximação (tal como Sidónio Pais, Sá Carneiro, e até Cavaco, na sua versão hardcore dos anos 80). Parece, porém, que dois investigadores, um português e um espanhol, defendem agora a abertura do túmulo do rei e a realização de análises às ossadas ali depositadas, para «acabar de vez com o mito sebastiânico» (sic). Talvez valha a pena lembrar, a quem possa dar uma importância exagerada a este tipo de iniciativa, que o que importa aqui não é o corpo – muito provavelmente sem qualquer gene dos Áustrias, pois só o contrário seria surpreendente – mas sim a manhã de nevoeiro.

                                    História