O historiador e o justiceiro
Originalmente em Caminhos da Memória. O post continua em página interior.
Em artigo publicado ontem no caderno P2 do Público, Jorge Almeida Fernandes aborda um problema que tem tanto de actual quanto de complexo. A partir da notícia da abertura do primeiro processo «da História contra o franquismo», tornado possível pela intervenção do juiz Baltasar Garzón, refere um manifesto público lançado por importantes historiadores que se erguem contra a multiplicação das leis de criminalização do passado afirmando que «a História não pode ser escrava da actualidade nem ser escrita sob o ditame de memórias concorrentes». A ideia não é consensual, naturalmente. Nem sequer o é entre os historiadores. É entretanto a partir dela que anoto três perguntas, cuja intenção é apenas ajudar a reflectir sobre algumas das possíveis implicações da manipulação do passado na penalização ou no julgamento público de certas pessoas. As perguntas são: Deve o historiador tomar posição sobre o passado? Deve, em consequência, tomar posição sobre iniciativas de natureza penal que sobre ele incidam? E deve aceitar a manipulação mediática da história e da memória?
Não tenho resposta unívoca para as duas últimas perguntas – que retomarei mais adiante – mas creio que tenho para a primeira: não só deve tomar posição, como é inevitável que o faça. O tipo de «posição» que possa tomar deve, porém, sempre ser informado pelo conhecimento e pela capacidade analítica. Não existindo uma história absolutamente «objectiva», existem fenómenos históricos objectiváveis, e todo o exercício de crítica, de interpretação e de narração, mesmo quando se apresenta como «asséptico», resulta sempre de escolhas subjectivas e datadas. Neste sentido, o historiador exprime obrigatoriamente um ponto de vista, uma «posição», mas esta não é, não pode ser, a mesma do político, do jornalista ou, por maioria de razão, do cidadão comum. Será mais completa, eventualmente mais racional, mas nunca inequívoca e definitiva.
Naturalmente, quando a proximidade em relação à época ou aos problemas observados é maior, essa subjectividade aparece exponenciada. Mas no cumprimento do seu papel social, o historiador, principalmente aquele que aborda um passado mais ou menos recente, sobre o qual os reflexos da memória individual e colectiva incidem de uma forma mais poderosa, deve fazer um esforço suplementar para procurar a objectividade possível, apurando os processos de análise documental e confrontando o máximo volume de informação disponível. Torna-se inevitável, porém, pelo facto simples de se reportar a episódios cujo «calor» ainda se mantém, que se envolva um pouco mais com as suas escolhas do que os colegas seus que abordam tempos mais recuados. Negá-lo será enganar-se a si próprio e induzir os seus leitores num logro. Escolher como tema do trabalho de investigação a Revolução de Outubro, a Guerra Civil de Espanha, o Salazarismo, o Holocausto, o Gulag ou a Primeira Guerra do Iraque, implica remexer em destroços ainda fumegantes. E implica por isso sujar um pouco as mãos. Mas essa é a sua opção e será com ela que terá de conviver.