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O historiador e o justiceiro

Originalmente em Caminhos da Memória. O post continua em página interior.

Em artigo publicado ontem no caderno P2 do Público, Jorge Almeida Fernandes aborda um problema que tem tanto de actual quanto de complexo. A partir da notícia da abertura do primeiro processo «da História contra o franquismo», tornado possível pela intervenção do juiz Baltasar Garzón, refere um manifesto público lançado por importantes historiadores que se erguem contra a multiplicação das leis de criminalização do passado afirmando que «a História não pode ser escrava da actualidade nem ser escrita sob o ditame de memórias concorrentes». A ideia não é consensual, naturalmente. Nem sequer o é entre os historiadores. É entretanto a partir dela que anoto três perguntas, cuja intenção é apenas ajudar a reflectir sobre algumas das possíveis implicações da manipulação do passado na penalização ou no julgamento público de certas pessoas. As perguntas são: Deve o historiador tomar posição sobre o passado? Deve, em consequência, tomar posição sobre iniciativas de natureza penal que sobre ele incidam? E deve aceitar a manipulação mediática da história e da memória?

Não tenho resposta unívoca para as duas últimas perguntas – que retomarei mais adiante – mas creio que tenho para a primeira: não só deve tomar posição, como é inevitável que o faça. O tipo de «posição» que possa tomar deve, porém, sempre ser informado pelo conhecimento e pela capacidade analítica. Não existindo uma história absolutamente «objectiva», existem fenómenos históricos objectiváveis, e todo o exercício de crítica, de interpretação e de narração, mesmo quando se apresenta como «asséptico», resulta sempre de escolhas subjectivas e datadas. Neste sentido, o historiador exprime obrigatoriamente um ponto de vista, uma «posição», mas esta não é, não pode ser, a mesma do político, do jornalista ou, por maioria de razão, do cidadão comum. Será mais completa, eventualmente mais racional, mas nunca inequívoca e definitiva.

Naturalmente, quando a proximidade em relação à época ou aos problemas observados é maior, essa subjectividade aparece exponenciada. Mas no cumprimento do seu papel social, o historiador, principalmente aquele que aborda um passado mais ou menos recente, sobre o qual os reflexos da memória individual e colectiva incidem de uma forma mais poderosa, deve fazer um esforço suplementar para procurar a objectividade possível, apurando os processos de análise documental e confrontando o máximo volume de informação disponível. Torna-se inevitável, porém, pelo facto simples de se reportar a episódios cujo «calor» ainda se mantém, que se envolva um pouco mais com as suas escolhas do que os colegas seus que abordam tempos mais recuados. Negá-lo será enganar-se a si próprio e induzir os seus leitores num logro. Escolher como tema do trabalho de investigação a Revolução de Outubro, a Guerra Civil de Espanha, o Salazarismo, o Holocausto, o Gulag ou a Primeira Guerra do Iraque, implica remexer em destroços ainda fumegantes. E implica por isso sujar um pouco as mãos. Mas essa é a sua opção e será com ela que terá de conviver.

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    Atualidade, História

    Delação (2)

    Ainda sobre aquilo a que chama «o episódio Kundera», F. Guerra contesta, em O Vermelho e o Negro, as posições de alguns bloggers. Uma delas a minha. No essencial, parece começar por defender uma bússola moral absoluta, relativa a traços do carácter individual, que seria inerente à condição do escritor, ou do artista, e deveria orientá-lo em todas as situações. O essencial do seu argumento centra-se, porém, na tentativa de aproximar aquilo que, sinceramente, não me parece aproximável se não forçarmos um pouco a nota. Para o efeito confronta o caso Kundera com o vivido por Elia Kazan, procurando mostrar como o pulha de um delator o é sob quaisquer circunstâncias, e como nos Estados Unidos da pior fase da Guerra Fria não ocorreram, «em nome da América», canalhices menores e menos justificáveis que sob os ambientes de denúncia «ao serviço da classe operária e de todo o povo» presentes no universo do socialismo real.

    Não posso deixar de ver com algumas reservas esta comparação. Claro que o ambiente da «caça às bruxas» em Hollywood foi terrível, opressivo, levando inúmeras pessoas a delatar o nome de colegas, conduzindo outras à ruína ou ao suicídio. Provavelmente fizeram-no pensando que tal lhes favoreceria (ou pelo menos não lhes prejudicaria) a carreira, o que por vezes aconteceu. É sobre isto The Front (O Testa de Ferro), o filme-documento de Woody Allen estreado em 1976. Mas também deram a cara, na mesma altura, figuras com a maior visibilidade pública como Humphrey Bogart, Lauren Bacall, Danny Kaye ou John Huston, que foram capazes de empenhar o seu nome e a sua segurança para limparem a América da paranóia mccarthista, dando um exemplo de coragem e rectidão. Além de que não falamos, neste caso, de um sistema repressivo construído como tal, mas sim de uma situação de coerção psíquica e económica, que já então se mostrava, aos olhos de muitas pessoas honestas, como uma arbitrariedade.

    No caso checo, como em outros casos do «socialismo real», ou mesmo dos diferentes fascismos, falamos da crença generalizada num destino histórico, concebido como salvífico e imortal, apresentado como capaz de revelar definitivamente aquilo que separa o bem do mal. E este destino conheceu, na época de afirmação dos sistemas de coacção totalitária, uma fase de simpatia que mobilizou muitíssimas pessoas. A Kundera também? Talvez. Dizem que sim, parece que sim. Provavelmente mais uma folha para a história universal de ignomínia.

      História, Memória, Opinião

      Delação

      A notícia que a revista praguense Respekt pôs a circular sobre o possível papel de Milan Kundera como denunciante, em 1950, do estudante checo Miroslav Dvořáček, por este haver desertado do serviço militar – conduzindo-o a uma condenação a 22 anos de prisão que incluiu trabalhos forçados numa mina de urânio -, não pesará apenas sobre os ombros de Kundera, abalando muitas das pessoas, e conto-me entre elas, que a par do escritor nele viram uma voz autorizada da resistência ao regime absoluto de Gustáv Husák. A ter acontecido, ela é apenas um sintoma mais da dimensão amoral do marxismo-leninismo aplicada à vida social – não digo do comunismo, pois esse é um dos grandes ideais igualitários da humanidade, que sobreviverá à ideologia perversa que dele se apoderou – , a qual relativiza os conceitos de verdade, de amizade, de honradez, de decência, de compaixão, sempre em função do conteúdo «de classe» que cada um desses valores adquira. Bom ou mau, benigno ou nefasto, excelso ou descartável, verdadeiro ou falso, de acordo com o papel desempenhado no andamento do «processo histórico». É esse conteúdo que traça a ténue linha demarcando o herói do canalha.

      E o pior é que essa atitude foi e continua a ser apresentada como modelar. Se Kundera fez aquilo que dizem agora ter feito, é provável que, naquele tempo – e um desertor era um desertor –, entendesse que estava a realizar o que, enquanto cidadão de uma «sociedade nova», enquanto candidato a «homem novo», esperavam dele. Não se presumiria um pulha. O delator não era um delator, mas sim um cidadão-modelo, ainda que o delatado, transformado em «inimigo de classe», fosse um amigo, a amante ou até um familiar chegado: tal aconteceu, de facto, muitos milhares de vezes. Foi essa ductilidade ética que esteve na origem de alguns dos piores dramas humanos vividos, ao longo de décadas, no universo do «socialismo real». A ser verdade o que se diz agora dele, Kundera apenas seguiu o modelo dominante. Reproduziu uma atitude, detestável hoje, sem dúvida, para a maioria de nós. Inevitavelmente horrível para quem lhe sofreu as consequências. Mas que naquele tempo e naquele ambiente – estávamos, recordo, em 1950 – nada tinha de singular ou de publicamente condenável.

      P.S. – Se nada do que foi descrito e documentado sobre o papel de Kundera se confirmar, ainda assim o modelo aqui mencionado adequar-se-á a todos os outros delatores que partilharam da mesma explicação para conviverem, mais ou menos de boa consciência, com o resultado dos seus actos.

      Adenda aqui

        História, Memória

        Vida bela, ainda assim

        Charles Najman, escritor e cineasta, é um dos filhos de deportados judeus franceses que foi entrevistado por Nadine Vasseur para Eu não lhe disse que estava a escrever este livro. Solange, a mãe, sobreviveu a Auschwitz e foi a partir da sua história que Najman realizou em 1995 o documentário La mémoire est-elle soluble dans l’eau? Nele, Solange, uma mulher com um profundo sentido da vida enquanto acto de júbilo, propõe uma abordagem da sua condição de deportada pelo lado da ironia, contando por vezes histórias cómicas, sem cultivar a vitimização, trocando a exposição do sofrimento – que obviamente viveu de uma forma profundíssima – pelo testemunho de um quotidiano no campo marcado também pela vitalidade e pela esperança. Na noite da estreia, Najman estava à entrada do cinema à espera que os espectadores saíssem quando viu duas pessoas afastarem-se, completamente indignadas, dizendo uma para a outra: «É um escândalo! E para mais ela nem sequer se parece com uma deportada!».

        Algo de semelhante ocorreu com A Vida é Bela, o filme de Roberto Begnini: a exaltação ficcional do riso como acto de resistência e de apego à vida foi mal recebida por muitos daqueles que fazem da memória histórica uma espécie de disciplina religiosa, grave e sacralizada, na qual apenas existe lugar para o estereótipo do mártir, onde a dissemelhança é recusada, a derrisão inteiramente depreciada. Mas parte da resistência à opressão totalitária nas suas diversas variantes fez-se também na construção de trajectos pessoais como actos de júbilo, de amor pela vida, recorrendo ao riso e à cor, e não apenas na assunção do sofrimento físico ou da brutalização imposta pelos canalhas. Teremos uma melhor relação com esse passado, senti-lo-emos mais próximo, se o recolhermos múltiplo, e não apenas com lugar de sentido único, baço e miserável.

          Cinema, História, Memória

          A natureza das coisas

          Pois é, um dos problemas do marxismo-leninismo consiste em mostrar-se simultaneamente «contrário à dogmatização e à revisão oportunista dos seus princípios e conceitos fundamentais». Situação que poderá transformar-se numa pesada contradictio in terminis e em factor de bloqueio. Mas graças a Deus e à sua infinita Misericórdia que existe sempre um grupo de pessoas, vanguarda da «vanguarda da classe operária e de todos os trabalhadores», que apetrechado desse «instrumento científico de análise da realidade», desse miraculoso e quintaessencial «guia para a acção», combate a «ideologia social-democrata» e determina a todo o instante, «em ligação com a vida», qual a exactíssima curva da estrada na qual é possível moldar o dogma e qual essoutra onde começa a infame e criminosa revisão oportunista. (Ainda a propósito das Teses moicanas do PCP, naturalmente, que agora já li todinhas da silva. Nem tudo são rosas nesta vida de leitor.)

            Apontamentos, História, Recortes

            E porque não um spa em Auschwitz?

            Só não é completamente inacreditável porque já todos estamos habituados à comercialização de tudo. Inclusive da vida privada, seja ela passada, presente ou futura. Mas o projecto que visa transformar o Forte-Prisão de Peniche em mais uma Pousada de Portugal, servindo-se do sofrimento de décadas de tantos antifascistas como factor de charme e de valorização comercial, ofende profundamente a nossa memória colectiva. Como ofensiva é a «naturalidade» com que o projecto se apresenta aos olhos dos responsáveis pelos organismos estatais e autárquicos que apadrinham ou facilitam esta iniciativa abjecta do Grupo Pestana. Ela será sempre, independentemente do formato que possa tomar, uma «suavização» do salazarismo e uma forma de apagamento da vida vivida e do combate daqueles que lhe resistiram.

            Leia a propósito o texto que Irene Pimentel publicou nos Caminhos da Memória. E depois passe a palavra.

              Atualidade, História, Memória

              Revisto e aumentado

              Versão de um texto publicado na revista LER de Setembro

              Designar como nova uma biografia de Lenine publicada em 1994 suscita alguns equívocos. É verdade que esta reformula ou completa biografias anteriores, muitas delas concebidas num registo apologético ou difamante, pois recorre a documentos apenas disponibilizados após a derrocada da União Soviética. Mas não só o faz de forma moderada – estudos posteriores foram mais longe com a mesma informação – como recorre as estratégias argumentativas de teor a-histórico, abusando de movimentos fast-forward para explicar decisões e episódios ocorridos muitos anos antes. Mais do que propriamente «nova», esta biografia será antes uma revisão, e um ajuste de contas, com o passado do autor e com a sua aceitação inicial da figura tutelar do líder revolucionário russo.

              Dmitri Volkogonov foi um general soviético que dirigiu durante anos o trabalho ideológico e político no Exército Vermelho, não tendo manifestado então grandes dúvidas em relação às orientações do regime ou ao papel axial do seu fundador. Terá sido apenas em 1991, quando, na sequência da frustrada tentativa de golpe que levou Ieltsin ao poder, passou a presidir à comissão nomeada para analisar os arquivos soviéticos, que encontrou no antigo edifício do Comité Central do PCUS perto de 4000 documentos não publicados de Lenine e começou a reconhecer, no rosto do homem que até então incondicionalmente admirara, traços bem diferentes daqueles que o regime apeado projectara.

              Tal como fez com as biografias de Estaline e de Trotski, Volkogonov serviu-se de documentação inédita para reler o mito e ajudar a derrubá-lo. Procurou, desde logo, pôr termo à vulgar distinção, ainda hoje corrente, entre a doutrina política «benigna» do leninismo e a irrefutável bestialidade do estalinismo, denunciada em 1956, por Krushchev, como uma corrupção da primeira. Tentou então provar que, afinal, a génese do estalinismo se encontrava já contida na intervenção e no cinismo político do pai-fundador: estavam lá a criação da Cheka e do Gulag, a perseguição da Igreja ortodoxa, o crescente cerco à imprensa, o esmagamento da maior parte da intelligentsia, a repressão sobre uma larga fatia do campesinato, o controlo férreo dos sindicatos, e sobretudo a instituição de um aparelho político-partidário que viria a funcionar como um poder autónomo dentro do próprio Estado. Documentou ainda os antecedentes familiares judaicos e alemães de Vladimir Ilitch, um assunto que havia permanecido tabu durante décadas.

              Uma escrita pobre e algumas afirmações tendenciosas atenuam um pouco o interesse desta biografia. Mas ela valerá sempre por ter sido uma das primeiras a divulgar o conteúdo de alguns dos muitos escritos que permaneceram na sombra e jamais integraram as Obras Completas de Lenine. As quais, por tal motivo, permanecem parciais.

              Dmitri Volkogonov, Lenine: Uma Nova Biografia. Tradução de Hugo Chelo e Miguel Morgado. Edições 70, 590 págs.

                História

                Guerra interminável

                Versão de um texto publicado na revista LER de Setembro

                A linguagem deste livro parecerá um tanto árida a quem não estiver familiarizado com a literatura sobre arte da guerra. O seu autor, Robert Smith, não é um historiador mas um militar de carreira, que remexe no passado da guerra principalmente para melhor a compreender e para preparar a sua condução no seu presente. No activo durante 40 anos, o General Smith ocupou elevados lugares de chefia nos conflitos do Iraque, da Bósnia e da Irlanda do Norte, entre muitos outros postos de responsabilidade. O ponto de partida, fundado no conhecimento da história e na experiência pessoal, é convicção de que a natureza da guerra mudou muito nas últimas décadas. Mas é também a certeza de que a nova realidade não é ainda devidamente apreendida, o que tem determinado decisões erradas e obsoletas. Sugere então a oposição entre dois paradigmas que cosnidera terem-se sucedido no tempo.

                A Europa viveu séculos de campanhas militares pouco flexíveis. Através delas, governos e governantes limitavam-se a reorganizavar os mapas dos territórios, resguardando sempre o centro de um poder que deveria permanecer inatacável. Napoleão mudou profundamente esta realidade ao servir-se dos recursos humanos e morais da nação para destruir o opositor e instalar uma nova ordem, enquanto Clausewitz deu consistência teórica a esta nova forma de combater, e as reformas aplicadas pelo Estado prussiano lograram estabelecer um poder estável assente na «guerra industrial». Para Smith, esta ter-se-á fundado na procura de uma vitória absoluta, no conflito aberto e total entre Estados, na manobra flexível dos grandes exércitos e num apoio humano e material à actividade guerreira colocado pelos governos acima de quaisquer outros interesses.

                Ao invés, o novo paradigma da «guerra entre o povo», emergente durante o período da Guerra Fria, funda-se, para o autor, na alternância entre o confronto aberto e o conflito localizado, independentemente do Estado enfrentar outro Estado ou um oponente de diferente natureza. Aqui não existe uma sequência pré-definida e a paz não é necessariamente o ponto de partida ou de chegada. Nenhum acto de força é agora decisivo, e a violência permanece disseminada no território, não distinguindo civis e militares, como ocorre hoje no Iraque, no Afeganistão ou no Kosovo. Pelo meio, Smith ocupa-se de situações no decorrer das quais o conflito entre os dois paradigmas, aquele que começava a revelar-se caduco e o que se anunciava emergente, redundou em operações que terminaram frequentes vezes – como ocorreu na China ou no Vietname, em Cuba ou em África, nos Balcãs ou no Médio-Oriente – com a vitória das forças tecnicamente pior preparadas.

                Smith insiste em que, sob a nova forma de pensar e de fazer a guerra, o objectivo central passou a ser ganhar «a batalha das vontades». Não procurar o extermínio do inimigo mas uma mudança favorável na opinião pública. O que determina a alteração da conhecida tese clausewitziana sobre a guerra como a continuação da política: agora guerra e política confundem-se no tempo e nos modos.

                Rupert Smith, A Utilidade da Força. A Arte da Guerra no Mundo Moderno. Tradução de Miguel Mata. Edições 70, 480 págs.

                  Atualidade, História

                  «Favores insignes» a baixo custo

                  Recebi na caixa do correio electrónico uma mensagem de publicidade que me deixou perplexo mas também, de alguma forma, repleto de confiança num amanhã promissor. Fazia até agora parte daquele conjunto de portugueses e portuguesas que vivia mais ou menos à deriva. Optimista céptico, ateu moderado e descrente do Portugal satisfeitinho que se mete em camionetas para ir aos comícios nacionais do PS, julgava viver já em estado de imunidade perante os grandes desígnios nacionais, órfão de exemplos e limitado a aguardar, sem réstia de esperança, pelo cumprimento do ciclo da vida, rumo à inexorável morte, ao pó e ao nada.

                  Eis senão quando me é proposta a aquisição de um exemplar de O Santo Condestável, contendo o fiel relato da vida de D. Nuno Álvares Pereira, esse antigo agente repressor dos camponeses alentejanos e extremenhos sublevados, e vitorioso chefe das agrestes contendas dos Atoleiros e de Aljubarrota, que um certo dia claro, à vista da luz divina, passou a ser «o Homem, o Herói e o Santo que estamos agora a ver elevado às honras dos altares por Sua Santidade Bento XVI, neste ano da Graça de 2008». Leio e releio a mensagem recebida, visito a página da Webboom que se refere a este livro da editora Planeta, e escuto os ecos de um apelo («Que o seu exemplo de Santidade nos leve a imitá-lo»), bem como os de uma promessa («Todos os seus devotos obterão, pela sua intercessão, favores insignes, de ordem espiritual e de ordem temporal»).

                  Na verdade, «na nossa época tão conturbada, quantos não são os que necessitam do seu socorro?». Inúmeros, sem dúvida: desde logo todos «aqueles que perderam a situação abastada e fácil em que viviam, os inebriados por êxitos inesperados», e depois «os que perderam o senso da medida e das elegâncias morais», o que julgo dizer-me directamente respeito. O apelo final dirige-se directamente ao mais inflexível ex-incréu, agora converso já às delícias do contacto espiritual com o «11º santo português»: «Faça, o meu caro leitor, uma boa leitura, bem como uma ainda melhor meditação ao ler esta breve biografia, e que as bênçãos de Deus, por intercessão do Santo Condestável, sejam derramadas em abundância no seu coração». Diante de tal proposta, como não desembolsar o putativo leitor os 12,60€ que lhe são solicitados como modesto óbolo destinado a custear uma tão promissora e edificante chave para a sua salvação material e espiritual? Como bónus, acrescente-se, recebe também o texto das Orações Marianas da devoção do Sto. Condestável e uma História do Carmo. Ainda há esperança para os Portugueses.

                    Devaneios, História

                    Passado que não foi passado

                    Já se sabia há algum tempo que Julius Rosenberg, executado em Junho de 1953 na prisão de Sing-Sing em conjunto com a mulher, Ethel, ambos sob a acusação de conspiração e espionagem científica a favor da União Soviética, fora realmente um agente infiltrado. Após décadas de trabalhos e canseiras durante as quais procuraram provar a inocência dos pais, Michael e Robert, os órfãos do casal Rosenberg, aceitaram a nova versão do co-arguido Morton Sobell e acabam de reconhecer a verdade. O singular é que foram precisamente a presunção da sua inocência e a campanha pela sua ilibação que fundaram, na época de arranque da Guerra Fria, o reconhecimento de uma espécie de maldade natural do sistema penal americano junto da opinião pública dita «progressista». Este reconhecimento vem pois suscitar uma reescrita do lugar do episódio na memória profunda do antiamericanismo ocidental.

                      História, Memória

                      O pesado fardo

                      Encontrei por acaso e estou a ler mais devagar do que gostaria um pequeno livro de Tony Judt já com dez anos. Em The Burden of Responsability, o historiador e director do Erich Maria Remarque Institute aborda os trajectos de Léon Blum, Albert Camus e Raymond Aron. Três intelectuais franceses do século XX – intelectuais  naquele sentido zoliano fora de moda – que partilhando a atitude de empenhamento na vida pública conservaram sempre uma certa condição de outsiders. Em tempos duros para quem o fazia, quando a pertença a famílias políticas de contornos bem nítidos determinava rapidamente convenientes apoios ou exclusões sem apelo. Quando seguir um caminho autónomo representava um fardo pesado e inevitável para quem se atrevia a fazê-lo. Todos eles pagaram de alguma forma por isso, e, no entanto, talvez também por isso a evocação dos seus percursos lhes devolva hoje parte de uma integridade roubada. Mesmo quando se não aceitam – comigo isso passa-se principalmente com Aron, muito menos com Camus – algumas das suas escolhas.

                        História

                        Castelhanos de visita

                        É triste reconhecê-lo, mas todos nós padecemos de momentos de fraqueza que nos transformam de repente em seres inanimados. Ou melhor, talvez eles não constituam algo de triste e apenas façam parte da natureza humana. Acredito que mesmo «o homem mais inteligente do mundo» terá os seus instantes de astenia, nos quais permanece imóvel estirado no sofá, de olhos em alvo pregados no tecto, escutando um daqueles cêdês que simula durante 72’56” o ruído repousante de um regato a correr por entre passarinhos e madressilvas.

                        O meu momento espiritual é bastante mais ruidoso e ocorre por volta da hora de jantar, quando ligo o televisor para mudar de canal até ao infinito. Foi mais ou menos por essa altura – aceito que perdi a noção exacta do tempo – que passei por dois concursos populares. Num deles, uma jovem com um aspecto conveniente admitia que jamais tinha ouvido falar da Padeira de Aljubarrota (calculo que a temática da panificação lhe passe um tanto ao lado). Noutro, cinco participantes (num total de cinco) no programa de cultura geral «do Malato» concediam não fazerem a mínima ideia da razão obscura pela qual todos os anos, em Portugal, o dia 1 de Dezembro é feriado. Posso reconhecer que o meu estado de consciência não seria o melhor, mas fiquei com a impressão de que os castelhanos já podem avançar, pois muitos portugueses achariam a iniciativa uma experiência curiosa, rara e nunca vista.

                          Devaneios, História, Memória

                          Jogo viciado

                          Não é argumento que integre uma qualquer teoria da conspiração. É sabido como, na lógica do «quanto pior, melhor» que presidiu quase sempre ao relacionamento entre as principais potências mundiais durante a Guerra Fria, a União Soviética se relacionou muito melhor com os republicanos americanos (Nixon ou Reagan, por exemplo) do que com os democratas (Kennedy ou Johnson). Uma posição mais maleável da parte do Ocidente teria sempre, como inevitável corolário, uma diminuição do papel de contrapeso que os soviéticos então detinham no mundo. E não havia necessidade. Mutatis mutandis, há qualquer coisa nisto que evoca a forma como o actual governo da Rússia afronta neste momento pré-eleitoral a América, beneficiando, de uma forma óbvia, aqueles que dentro desta defendem mais abertamente uma política de agressão e de intransigência. Os republicanos, pois claro.

                            Atualidade, História, Opinião

                            Esparta vs. Cocanha

                            Também eu um dia admirei Louis Antoine de Saint-Just (1767-94). Da Grande Revolução, pouco sabia. Mas entendia, das revoluções modernas, o suficiente para me manter convicto de que elas só poderiam vingar enquanto permanecessem nas mãos dos obstinados e dos que não cedem à compaixão. Aqueles para quem os princípios e os objectivos que norteiam a acção se destinam a impedir todo o retrocesso que não favoreça um novo assalto às posições do inimigo. Para quem, quando se combate pelo poder, apenas existe a vitória total ou a mais peremptória derrota: «Esse homem deve reinar ou morrer», proclamou o filho do capitão de cavalaria de Niévre quando votou na Convenção a favor da execução de Luís XVI, pois aquilo que constitui uma República «é a destruição total do que se lhe opõe».

                            Além do mais, Saint-Just era jovem e eloquente, lendariamente belo e teatral, e um exaltado, o que só poderia reforçar a cintilação que exibiu, apenas em dois anos de vida pública, numa época pouco propícia à segurança, à moderação e à prevalência dos valores do passado. E prometia um mundo novo, no qual o poder pudesse ser exercido pelo povo, os magistrados fossem desprovidos de orgulho, os cidadãos vivessem sem vícios, a fraternidade prevalecesse nos relacionamentos, o culto da virtude fosse um princípio, a simplicidade dos modos e a austeridade de carácter pautassem a vida social. O caminho para tal utopia seria, na sua opinião, aberto pelo Terror. Pelo apagamento violento e sem piedade daqueles que a entravavam.

                            Combatido pelos sectores moderados e traído por muito dos seus, morreu aos vinte e seis anos, sem direito a julgamento, na guilhotina que ajudara a erguer. Tendo, ao que dizem, ou seguindo a lenda, sido o único do grupo preso na manhã de 10 do Termidor a avançar sereno, a passo firme e em completo silêncio, para o cadafalso que o esperava.

                            Afirma-se que Danton terá dito certa vez, a seu respeito, não gostar nada «daquele extravagante» que pretendia implantar em França «uma República de Esparta» quando era de «uma República da Cocanha» que os franceses precisavam. O «anjo da Revolução», ou «da morte», ainda sobreviveu praticamente três meses a Danton, mas o combate entre os que se batem, na evidência de um indeclinável pathos, por arquétipos que situam acima do indivíduo e no campo das paixões, e aqueles outros que longe de quaisquer perigos, apelando a um previsível e racional logos, apenas preferem navegar por calmos rios de vinho e de leite, sobreviveu-lhes. Continua a ser ciclicamente renovado, ciclicamente alimentado. Jamais se entenderão, uns e outros. Jamais desaparecerão também.

                              Atualidade, História, Olhares

                              Spitting Leaders

                              [wpvideo OsJEaxS0 w=300]

                              Quatro dos mais notáveis déspotas de todos os tempos – Luís XIV, Hitler, Estaline e Franco – foram reunidos no conjunto público de estátuas-cuspideiras Spitting Leaders, da autoria do escultor madrileno Fernando Sánchez Castillo, que acaba de ser instalado na já nossa conhecida localidade galega de Caldas dos Reis. Carlos Jiménez, no Babelia, define-o como parte de uma estratégia colectiva proposta por um conjunto de artistas espanhóis que têm vindo a questionar o «imaginário residual do franquismo». Artistas que, elegendo como temas do seu trabalho os Balcãs, as Torres Gémeas, Guantánamo ou Francisco Franco, resistem «a ver a arte reduzida a um espectáculo de massas ou a vê-la confinada ao silêncio das salas». Para quem o ser humano «será o Homo ludens reivindicado por Johann Huizinga, mas nem por isso deixou de ser o Zoon politikón de Aristóteles». Este conjunto parece merecer uma visita. Particularmente aconselhável aos nossos autarcas que enchem praças e jardins de insossos mamarrachos.

                                História, Memória, Olhares

                                O álbum mais triste do mundo

                                Josef Koudelka

                                Da autoria de Josef Koudelka e editado pela Thames & Hudson, Invasion Prague 68 deve ser o álbum de fotografia mais triste do mundo. Em 1968, com 30 anos, Koudelka nunca tinha fotografado guerras ou revoluções. Chegara da Roménia, onde andara a perambular retratando ciganos, no dia anterior à invasão, e a partir da madrugada de 20 para 21 de Agosto não parou de disparar a câmara. Muitas das fotografias que então tirou foram divulgadas pela agência Magnum, mas foi apenas em 1986, quando os laços familiares no interior da Checoslováquia desapareceram pela morte do pai, que a sua autoria foi revelada. Quarenta anos depois, 250 dessas fotografias – uma grande parte delas aqui mostrada pela primeira vez – foram seleccionadas para esta obra impressionante. (mais…)

                                  História, Memória, Olhares

                                  Três revistas

                                  Mesmo em tempo de Internet, as revistas especializadas de grande circulação publicadas em papel dão-nos imenso jeito como fontes de informação actualizada, veículos de opinião ou pontos de partida para aceder a determinados temas. As que circulam entre nós são quase exclusivamente estrangeiras, com um claro destaque, em campos como a história, a literatura, a filosofia ou as ciências sociais, para aquelas que se publicam em França. O que apenas será estranho se não considerarmos que a maioria dos seus compradores pertence a um segmento social e etário cuja formação conservou ainda o francês como segunda língua. São pois em francês os três números temáticos de revistas que aqui destaco e podem ser encontradas em alguns quiosques e livrarias.

                                  A Philosophie Magazine é sobre um tema – XXe siècle. Les philosophes face à l’actualité – particularmente útil numa época de desvalorização do papel interventivo do intelectual e da sua revisão como conceito operativo. Comporta largas dezenas de fragmentos de intervenções públicas de importantes filósofos, colocando-os em confronto com as suas circunstâncias. De Bergson, Berdiaev, Kraus ou Benjamin até Baudrillard, Zizek, Enzensberger e Amartya Sen, sucedem-se intervenções participativas sobre temas como a guerra, a revolução bolchevique, a ascensão dos fascismos, o Holocausto, a questão colonial, os feminismos, os acontecimentos de 1968, a conquista do espaço, a queda do Muro, o neoliberalismo, o «choque de civilizações», a globalização ou o conflito real-virtual.

                                  Já o Magazine Littéraire publica um número especial que tem como assunto La Passion – théâtre de l’existence. Aqui o objectivo é coligir cerca de três dezenas de artigos publicados na revista, ao longo de mais de vinte anos, tendo sempre em conta uma dupla abordagem da paixão, seja esta afirmada por um ser amado, por uma causa, por uma actividade ou por uma ideia. A primeira abordagem é talvez a mais antiga, e é associada a um certo desregulamento da personalidade, a uma forma de exaltação ou de doença. A outra, mais recente, aproxima-a do desejo, da vertigem, da exaltação. Flutuando sempre entre a melancolia e a acção.

                                  Para fechar, o bimensário Manière de Voir, editado pelo Le Monde Diplomatique, preocupa-se na edição de Agosto-Setembro com De Lénine à Poutine: Un siècle russe. Esta será, sem dúvida, a mais controversa das três publicações. Por ser a única que oferece textos centrados num tema cujas ondas de choque permanecem, tanto ao nível das representações de um passado recente como no que diz respeito aos contornos do mundo contemporâneo, plenamente activas. Estes distribuem-se por três partes organizadas cronologicamente: a primeira vai da Revolução de Outubro à resistência perante os nazis, a segunda parte da Guerra Fria e fecha com o aparecimento da perestroika, e a última ocupa-se do tempo preenchido com as presidências de Yeltsin e de Putin. É na primeira parte, centrada nos fundamentos do regime soviético e na perversão do Gulag, que se torna possível detectar os textos mais polémicos. Mas os mais perturbantes são aqueles que revelam a Rússia actual como um território que se mantém perigosamente inflamável.

                                    História, Opinião

                                    Dos malefícios do esperanto

                                    «- Sou esperantista, compreende? Trata-se de uma linguagem universal. Para mim não é inglês básico. Foi por isso que fui condenado. Sou membro da Sociedade de Esperantistas de Moscovo.
                                    – Você quer com isso dizer Artigo 5, Parágrafo 6? Espião?
                                    – Obviamente.
                                    – Dez anos?
                                    – Quinze.»

                                    Varlam Shalamov, Kolyma Tales

                                    Em Abril de 1973 começava a cumprir o serviço militar quando fui por duas vezes interrogado por um inspector da PIDE. Tive sorte e não fui demasiado apertado: sei que a minha condição de militar no activo e o facto de os interrogatórios terem decorrido dentro do quartel e com conhecimento do comando me deram alguma protecção. O pide era do tipo paternalista, vagamente sorridente e na aparência cheio de tédio por estar a perder tempo com o que lhe parecia ser peixe miúdo. As perguntas foram vagas e nunca me pediu nomes ou moradas. Enquanto escutava aquilo que eu tinha a dizer sobre a minha própria vida – omitindo no questionário, por exemplo, quaisquer referências à organização na qual eu militava, o que confirmava uma certa dificuldade da PIDE no cruzar das informações – tomava apontamentos e ia-me dando alguns conselhos como «tenha juízo», «veja lá o que anda a fazer» ou «não estrague a sua vida». Em ambas as sessões, porém, um tema permaneceu recorrente: ele insistia em saber se eu conheceria alguém que estivesse ligado à divulgação do esperanto. Na altura não percebi muito bem os motivos da insistência, mas sei hoje algumas coisas sobre o movimento esperantista que me ajudam a entendê-la.

                                    O esperanto surgiu em 1887, o ano da publicação de Unua Libro – o primeiro livro sobre o assunto, da autoria do judeu russo Ludwik Lejzer Zamenhof –, como uma língua franca, muito útil em viagem, na troca de correspondência, no intercâmbio cultural ou na organização de encontros internacionais, e teve particular divulgação durante primeiras três décadas do século XX. Foi sem dúvida a sua capacidade para derrubar fronteiras e para criar um universo de comunicação paralelo que instigou a desconfiança, e depois a acção repressiva, por parte dos regimes totalitários. Sob Hitler e Estaline foi mesmo proibido e inúmeros esperantistas foram perseguidos, detidos ou mortos. Entretanto, a nova língua começara a ser divulgada entre as correntes libertárias, que procuravam um meio capaz de facilitar as ligações entre organizações de trabalhadores de vários países, o que acabaria por levar a um aumento da suspeição por parte das autoridades.

                                    Em Portugal, terá sido sobretudo por influência do anarco-sindicalismo que o esperanto obteve alguma influência, chegando a ser acolhido pelo PCP, na sua primeira fase, como instrumento de mobilização. Talvez fosse em parte por aí que o regime, como todos os regimes que temem a circulação sem barreiras da informação e da opinião, o tenha passado a olhar com desconfiança, se bem que nos inícios da década de 1970 – e daí a minha estranheza com a insistência do pide – ele parecesse estar bastante frágil e confinado a pequenos núcleos de entusiastas mais ou menos isolados. Mas até poderia ter acontecido que tudo aquilo resultasse de uma qualquer mania do indivíduo. Um tema que não me importaria de conhecer melhor e um pequeno mistério que gostaria de desvendar. Quem sabe se por esta via lá poderei chegar?

                                      História, Memória