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Compreendi-te

Vasco

O pessoal não perdoa as declarações despropositadas e um pouco estrambólicas de Manuela Ferreira Leite sobre a necessidade de uma licença sabática semestral da democracia. E toca de zurzir a senhora como putativa candidata a ditadora. Mal disfarçada com aquele anacrónico colar de pérolas, ainda por cima. Um exagero, um erro de análise, como reconhecerá qualquer cidadão sensato sem vontade de citar Brecht e de disparar dois tiros para o ar ao menor pretexto. Uma amiga menos intransigente, e provavelmente mais sábia, fala-me da possibilidade da irmã do advogado e comentador futebolístico Dias Ferreira ter bebido um copito a mais durante aquele almoço na Câmara de Comércio Luso-Americana. Quero acreditar que sim. Não sei porquê, é uma ideia que me agrada. E uma ideia que também me alivia um pouco.

    Atualidade, Devaneios

    Culto das aparências

    Look

    A crise no consumo instala-se e o comércio a retalho precisa quase desesperadamente de clientes. Já tinha notado um exagerado aumento da simpatia em algumas lojas nas quais era até agora tratado com uma cortesia que se aproximava da indiferença. Hoje tive a confirmação com uma mensagem de SMS – desatento, devo ter dado o número de telemóvel para uma qualquer «ficha de cliente» – na qual me prometiam quatro camisas e uma gravata na compra de um fato completo. Ainda por cima com bastante tempo para me decidir. Vou fazer-me de caro a ver se a proposta melhora um pouco, e daqui por umas semanas vou estar com um look bestial sem ter de recorrer ao cartão de crédito. Depois irei inscrever-me numa escola de tango.

      Devaneios, Etc.

      Traumas

      Mary Poppins

      Um pesado momento traumático ocorreu quando deparei com uma fotografia de Julie Andrews – responsável por continuadas tentativas de imbecilização das quais fui alvo durante a pré-adolescência, e que imaginara um ser angélico e assexuado – apresentando-se à sociedade, creio que no filme S.O.B., com uma desafiadora caixa torácica devidamente ao léu. Um outro, que terá perturbado uma geração mais recente, relaciona-se com as transformações plásticas de Ana Malhoa, a saudosa animadora das tardes de domingo do Buéréré. Outro ainda, que poderá afectar negativamente milhares de crianças, acaba entretanto de ocorrer: numa capa da Caras, reproduzida no blogue melancómico, deparei com a cidadã portuguesa Luciana Abreu, que deu corpo na televisão à assombrosa Floribella, a princesa das meninas-totós, revelando-se a quem a queira ouvir «uma mulher ousada e sensual». Não há direito. O Ministério da Educação, a Conferência Episcopal e o Doutor César das Neves deveriam tomar uma posição pública contra isto.

      Adenda – Encontrei entretanto uma evocação de Andrews na qual um leitor documenta o supra-citado efeito. Transcrevo: «(…) Quero agradecer a Deus o privilégio de ter conhecido Julie Andrews através de seu filme mais famoso “The Sound of Music” ou a “A Noviça Rebelde” em português [“Música no Coração” em Portugal]. Sua atuação é maravilhosa e terminou por marcar minha vida para sempre pela sua meiguice e talento invejável. O primeiro filme que assisti com Julie Andrews foi Mary Poppins que marcou minha infância.» Assim está bem, não há problema.

        Devaneios, Olhares

        Problemas de visão

        Fiquei a saber, através de um programa de  televisão, que em Coimbra ainda existem «lindas tricanas» (para quem não sabe, lavadeiras do Mondego que outrora faziam certos e determinados serviços aos impetuosos moços estudantes com os quais socializavam). Como moro na cidade, apenas com algumas intermitências, desde 1969, e as únicas que vi eram de barro pintado ou decoravam latas de atum em azeite puro, presumo que tenha andado bastante distraído durante todos estes anos.

          Coimbra, Devaneios, Memória

          Para o Campo Pequeno, e já!

          O M. mandou-me um link declarando serem estas coisas que o fazem sentir-se de esquerda. Digo mesmo mais, são coisas destas que me fazem recordar uma das melhores frases de Otelo. Não o Mouro de Veneza, o outro. E são coisas assim que às vezes me fazem estalar o verniz democrático. Mas recomponho-me logo.

          [Dias depois. Eduardo Pitta teve o cuidado de sublinhar a condição de private joke da sua referência. Mas alguns dos comentadores exaltados que brindaram o Lutz Brückelmann por se ter referido simpaticamente a este post levaram a coisa mesmo a sério, forçando-o a dar uma explicação. Olhem que a famosa frase do Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho sobre a hipotética deslocação dos «fascistas» para o Campo Pequeno foi logo na época tomada como uma hipérbole. Mesmo pela generalidade da esquerda radical. Claro que ninguém quer colocar aquela gente horrível que Laurinda Alves tanto aprecia no Campo Pequeno. Nem sequer para bater palmas a umas quantas chicuelinas, a umas tantas veronicas, a uma ousadíssima pega de cernelha. Era mesmo preciso dizê-lo?]

            Atualidade, Devaneios

            Ladrões de passados


            Saul Leiter, Café des Deux Magots, Saint-Germain-des-Prés, 1959 [mais]

            No breve mas esplêndido Paris, recém-editado pela Tinta da China, um livro que data de 1991 mas contém reminiscências muito anteriores, Julien Green falava da nostalgia que experimentava pela cidade, a sua cidade, dos tempos medievais. Uma época, dizia, na qual «o homem ainda era habitado intimamente por uma paz que nós já perdemos». Essa simpatia colocava-o numa posição inteiramente oposta à enunciada pelos românticos, para os quais a fonte de atracção pelo mundo dos castelos e das catedrais advinha de uma percepção heróica e romanesca da vida que os havia preenchido. Ou, pelo menos, da vida daqueles – cavaleiros e donzelas, príncipes e santos, bom povo devoto e respeitador da vontade dos seus padres e senhores que nesse mundo a um tempo verdadeiro e imaginado verdadeiramente contavam.

            Jamais senti uma «nostalgia em diferido» dessa natureza, uma inclinação afectiva, absoluta e incondicional, pelo silêncio e pelos seus cenários plausíveis do passado. Mas tenho-a – com a mesma legitimidade e idêntica dose de engano – por certos tempos de ruído que não vivi. Nos quais era possível experimentar rumores que, ao invés daqueles, misturados, que hoje nos seguem para todo o lado, mesmo até ao interior das casas e dos quartos onde dormimos, pareciam então o único ruído sobre a Terra.

            De todos eles, vindos de diferentes tempos, um daqueles que se afigura como mais atraente e fecundo para pessoas da minha geração, ou próximas dela, talvez seja o de certos cafés da Paris do pós-guerra, narrados e reinventados em inúmeros filmes e romances, ou pelas descrições de espectadores em trânsito como  Antony Beevor (Paris after the Liberation: 1944 -1949, já traduzido), Stanley Karnow (Paris in the Fifties) ou James Campbell (Paris Interzone. Richard Wright, Lolita, Boris Vian and others on the Left Bank 1946-1960). Nos quais a ressaca dos anos beligerantes de pólvora e morte, da desconfiança perante todos os olhares, dos futuros sitiados, parecia abrir espaço para todos os possíveis mais impossíveis, incluindo-se nestes o desfrute do excesso. O fragor nocturno/diurno das conversas cruzadas, o fumo dos cigarros consumidos até ao fim em ambientes fechados, os aromas da pastelaria fina, das bebidas alcoólicas, da roupa das mulheres, da tinta no papel: tudo parecia evocar um início de mundo.

            Dir-me-ão que, no fim de contas, nada terá sido assim, que tudo aquilo que se conta daquela Paris de depois da Libertação é coisa que vem dos livros, do cinema francês de autor, das canções usadas de Madame Gréco, dos maços fétidos de Gauloises. Mas os nossos acessos de nostalgia não vêm apenas do que vivemos: ele chegam também, e talvez em primeiro lugar, daquilo que imaginamos ter sido vivido pelos outros, daquilo que criamos a partir de indícios. Que jamais vimos fora das fotografias que recuperamos hoje com retoques de Photoshop, ou de sequências de filmes guardadas no YouTube. Das quais se vai apropriando a nossa memória, memória construída, de ladrões de passados.

              Devaneios, Memória, Olhares

              Desde que o mundo é mundo

              A partir de um post da Ana Matos Pires surgido no 5 Dias, cheguei à posse de uma preciosa dedução científica. Aparentemente proveniente de estudos desenvolvidos pela mesmíssima equipa de cientistas que terá integrado a tripulação da Arca de Noé, ela foi lapidarmente enunciada em recente data: «Bastaria observar a natureza que nos rodeia e notar como se cruzam os animais, para concluir que, desde que o mundo é mundo, este cruzamento sempre se fez entre sexos diferentes. E, se do reino animal passarmos para o reino vegetal, confirmaremos que para a produção do fruto, há sempre, embora de forma diversa, a intervenção dos dois sexos.» Tudo se mantém assim na ordem da natureza, como nos regrados tempos do bom velho Éden.

                Devaneios, Recortes

                «Favores insignes» a baixo custo

                Recebi na caixa do correio electrónico uma mensagem de publicidade que me deixou perplexo mas também, de alguma forma, repleto de confiança num amanhã promissor. Fazia até agora parte daquele conjunto de portugueses e portuguesas que vivia mais ou menos à deriva. Optimista céptico, ateu moderado e descrente do Portugal satisfeitinho que se mete em camionetas para ir aos comícios nacionais do PS, julgava viver já em estado de imunidade perante os grandes desígnios nacionais, órfão de exemplos e limitado a aguardar, sem réstia de esperança, pelo cumprimento do ciclo da vida, rumo à inexorável morte, ao pó e ao nada.

                Eis senão quando me é proposta a aquisição de um exemplar de O Santo Condestável, contendo o fiel relato da vida de D. Nuno Álvares Pereira, esse antigo agente repressor dos camponeses alentejanos e extremenhos sublevados, e vitorioso chefe das agrestes contendas dos Atoleiros e de Aljubarrota, que um certo dia claro, à vista da luz divina, passou a ser «o Homem, o Herói e o Santo que estamos agora a ver elevado às honras dos altares por Sua Santidade Bento XVI, neste ano da Graça de 2008». Leio e releio a mensagem recebida, visito a página da Webboom que se refere a este livro da editora Planeta, e escuto os ecos de um apelo («Que o seu exemplo de Santidade nos leve a imitá-lo»), bem como os de uma promessa («Todos os seus devotos obterão, pela sua intercessão, favores insignes, de ordem espiritual e de ordem temporal»).

                Na verdade, «na nossa época tão conturbada, quantos não são os que necessitam do seu socorro?». Inúmeros, sem dúvida: desde logo todos «aqueles que perderam a situação abastada e fácil em que viviam, os inebriados por êxitos inesperados», e depois «os que perderam o senso da medida e das elegâncias morais», o que julgo dizer-me directamente respeito. O apelo final dirige-se directamente ao mais inflexível ex-incréu, agora converso já às delícias do contacto espiritual com o «11º santo português»: «Faça, o meu caro leitor, uma boa leitura, bem como uma ainda melhor meditação ao ler esta breve biografia, e que as bênçãos de Deus, por intercessão do Santo Condestável, sejam derramadas em abundância no seu coração». Diante de tal proposta, como não desembolsar o putativo leitor os 12,60€ que lhe são solicitados como modesto óbolo destinado a custear uma tão promissora e edificante chave para a sua salvação material e espiritual? Como bónus, acrescente-se, recebe também o texto das Orações Marianas da devoção do Sto. Condestável e uma História do Carmo. Ainda há esperança para os Portugueses.

                  Devaneios, História

                  Castelhanos de visita

                  É triste reconhecê-lo, mas todos nós padecemos de momentos de fraqueza que nos transformam de repente em seres inanimados. Ou melhor, talvez eles não constituam algo de triste e apenas façam parte da natureza humana. Acredito que mesmo «o homem mais inteligente do mundo» terá os seus instantes de astenia, nos quais permanece imóvel estirado no sofá, de olhos em alvo pregados no tecto, escutando um daqueles cêdês que simula durante 72’56” o ruído repousante de um regato a correr por entre passarinhos e madressilvas.

                  O meu momento espiritual é bastante mais ruidoso e ocorre por volta da hora de jantar, quando ligo o televisor para mudar de canal até ao infinito. Foi mais ou menos por essa altura – aceito que perdi a noção exacta do tempo – que passei por dois concursos populares. Num deles, uma jovem com um aspecto conveniente admitia que jamais tinha ouvido falar da Padeira de Aljubarrota (calculo que a temática da panificação lhe passe um tanto ao lado). Noutro, cinco participantes (num total de cinco) no programa de cultura geral «do Malato» concediam não fazerem a mínima ideia da razão obscura pela qual todos os anos, em Portugal, o dia 1 de Dezembro é feriado. Posso reconhecer que o meu estado de consciência não seria o melhor, mas fiquei com a impressão de que os castelhanos já podem avançar, pois muitos portugueses achariam a iniciativa uma experiência curiosa, rara e nunca vista.

                    Devaneios, História, Memória

                    À noite

                    É tardia aqui, a noite. Mas chega sempre, como é próprio da noite. Voltei um pouco cansado. Sobre a pequena mesa do quarto um quadradinho de papel azul. Com letras em azul.

                    Dalabóndinn í óþurrknum

                    Hví svo þrúðgu þú
                    þokuhlassi
                    súldanorn
                    um sveitir ekur?
                    Þér man eg offra
                    til árbóta
                    kú og konu
                    og kristindómi.

                    Dizem-me ser um poema de Jónas Hallgrímsson. Que nos fala de como por um pouco de sol pode um homem sacrificar uma vaca, a sua esposa e a própria fé.

                      Devaneios, Olhares

                      O bom homem, a beldade búlgara e o cavalheiro

                      Posso? A direcção do Expresso que não leve a mal a intrusão mas penso – sinceramente e sem ponta de sarcasmo – ser um grande equívoco a inclusão da coluna perpétua de João Carlos Espada na secção Editorial & Opinião, devendo esta transitar para uma página par do suplemento Única. O seu «tema de Verão» de hoje ilustra na perfeição a pertinência do alvitre. Apenas para quem esteja menos treinado no pensamento social do referido autor aqui vai um aviso: esta é só mais uma pequena peça do seu assombroso cubo mágico. Resisti a sublinhar algumas frases extraordinárias.

                      Um dos mais difíceis temas de Verão é o da influência da temperatura no código de vestuário. O assunto terá perdido alguma premência com a nova moda masculina de prescindir da gravata – uma tendência entusiasticamente promovida pelo actual Presidente do Irão, cujo nome me escapa. Mas a gravidade do tema está ainda presente nalguns sectores.

                      É o caso do Oxford & Cambridge Club, em Londres. Todos os anos a «newsletter» de Julho inclui uma nota sobre o calor e o traje. Recorda ela, basicamente, que as altas temperaturas não anulam o «dress code» do Clube, embora algumas atenuantes sejam concedidas. Estas incluem a não obrigatoriedade de gravata até às 11 da manhã, aos dias de semana, e ate as 18h, nos fins-de-semana. Mas o casaco continua a ser obrigatório a todas as horas, a menos que um dístico à entrada, nos dias mais quentes, assim o anuncie.

                      A nota prossegue recordando que, nestas excepcionais ocasiões, os cavalheiros sem casaco devem usar camisas de manga comprida abotoadas no punho. E adverte, em tom decidido, que «T-shirts e outras camisas sem colarinho, mesmo quando usadas com casaco, nunca são permitidas no Clube».

                      Tendo lido esta nota numa manhã de lazer, decidi promover um inquérito sobre o tema. No balcão do bar, interroguei o velho empregado, um imigrante grego há décadas instalado nesta área do Clube. O bom homem pareceu surpreendido com a minha pergunta sobre a razão de ser do «dress code». O assunto parecia-lhe óbvio: «Este é um ‘gentlemen’s club’, sir».

                      Resolvi insistir com a dúvida cartesiana: «por que razão devem os ‘gentlemen’s clubs’ dar tanta importância ao código de vestuário?». A resposta foi pronta, após ligeira hesitação: «Porque, caso contrário deixariam de ser ‘gentlemen’s clubs’».

                      Interroguei em seguida a jovem beldade que se encontrava na recepção do clube, logo à entrada do 71 Pall Mall. Chegara há uns meses da Bulgária, e gostava imenso de Londres, assim como de trabalhar no clube. Código de vestuário? É claro, disse-me ela, trata-se de um ‘gentlemen’s club’. E eu concluí, já instruído pelo grego do bar: se não tivesse código de vestuário, deixaria de ser um ‘gentlemen’s club’? Ela envolveu-me num amplo sorriso: «Esse é exactamente o ponto, sir. É como dar gorjeta: não pode dar gorjeta aos empregados, nem estes podem aceitá-la, num ‘gentlemen’s club’». Finalmente, com um novo sorriso envolvente, rematou: «Eu realmente adoro este vosso clube. Devíamos ter clubes destes, na Bulgária. Mesmo assim, eu preferiria Londres».

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                        Odobenus rosmarus

                        Eu cá não tenho inveja alguma de Michael «billion dollar baby» Phelps. O que pode parecer uma atitude um pouco estúpida, pois deveria cobiçar-lhe a juventude, a ausência de dores nas cruzes, o número de flexões que consegue fazer, a destreza na água, as medalhas, a fama e o dinheiro. Mas aquela cabeça marcada pelo prognatismo, as pernas assim curtas e sapudas, a propulsão de animal aquático, os músculos de Exterminador, o grito vitorioso à odobenídeo (odobenus rosmarus) de morsa satisfeita, remetem-no para uma espécie diferente, vinda do Waterworld e apenas semi-humana, à qual não desejo pertencer. Talvez seja essa, aliás, a causa profunda da admiração por Phelps manifestada por George W. Bush. Deve ser isso.

                        P.S. – Este post partiu da leitura de um artigo sobre o carácter anómalo de algumas das características físicas de Phelps e a sua relação com a capacidade atlética fora do comum do nadador (mais dados aqui). E pretendeu ironizar um pouco em volta do processo mediático de construção do novo mito. Mas admito que a referência a uma determinada patologia possa ser interpretada de forma diferente. Peço desculpa aos leitores que eventualmente se sintam incomodados. Mas mantenho o texto por este incluir já alguns comentários, por entretanto ter sido citado e sobretudo por saber que muitos outros o não entenderam dessa forma.

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